Crônicas 3
por José António Baço
(Textos publicados no jornal "A Notícia")

 

65 - Os códigos de Da Vinci

Saber as regras de etiqueta é tão fundamental para o destino da humanidade que deveria haver cursos nas faculdades. É inacreditável como a patuléia desconhece as mais elementares noções do convívio social. As maiores pataquadas acontecem quando se está à mesa.
Um tema tão elevado que levou muitos pensadores a sérias reflexões. É o caso de Leonardo Da Vinci, homem habituado a ambientes refinados e que escreveu um livro chamado "Notas de Cozinha". Se você, leitor, tem alguma dúvida, siga os conselhos do gênio italiano.
Um problema à mesa: é falta de educação repetir o prato? Óbvio. Reuniões de gente rica não são para esfomeados. Agüentem-se, pois. E fiquem avisados por Da Vinci: "Não se deve tirar comida do prato do vizinho, sem antes lhe pedir autorização".
Outra dúvida cruel. Você experimenta a comida e não gosta. Que fazer? O pensador recomenda: "Não deve colocar no prato do vizinho partes desagradáveis ou semimastigadas da sua própria comida, sem primeiro pedir autorização". Mas se gostar e quiser levar comida para casa? É um problema. Segundo Da Vinci, "não se deve retirar comida da mesa, colocando-a na bolsa ou na bota para consumo ulterior". Hummm... será que na bota o sabor melhora?
Outra questão crucial é saber se a pessoa pode ou não pôr os cotovelos sobre a mesa. Não pode. E não só. Vejam o que diz Da Vinci: "Convidado algum se deve sentar em cima da mesa, nem de costas voltadas para ela, nem ao colo de outro comensal". Entendeu? Então, pare com essa coisa de sentar no colo dos outros.
Há mais um trauma. As pessoas têm dúvidas quanto a comer de boca aberta. Tudo bem, mas tenha cuidado. Ao mastigar de boca aberta vai absorver muito ar e formar gases. O risco é soltar um "pum" perto dos outros convivas. Se acontecer, há um segredo para eliminar o cheiro: acenda um fósforo, porque os gases entram em combustão. Mas cuidado com os acidentes. Da Vinci explica que é falta de educação "atear fogo ao vizinho enquanto se encontra à mesa".
De todas as regras de etiqueta do italiano, a mais útil é a que vem sob o título "de como atribuir ao assassino o lugar correto na mesa". Diz o seguinte: "Se está planejado um assassínio durante o repasto, então o mais conveniente é sentar o assassino ao lado daquele que irá constituir a matéria dos seus talentos, na medida em que confinando o decurso do evento a uma área reduzida, causar-se-á menor transtorno à conversação". É mesmo uma chatice essa mania que as vítimas têm de espernear e gritar.
É como diz o velho deitado: "De louco e de louco todos temos um pouco".


64 - Não me convide para o seu casamento

A vida social tem rituais que são um tremendo pé-no-saco. Os casamentos estão no topo da minha lista. É só aterrissar um convite no meu correio e o alarme vermelho dispara. Dá sempre um comichão. Já notou, leitor, que muitas vezes você é apenas um "conhecido" e não tem a menor intimidade com os noivos? Ou pior: às vezes, nem imagina quem são as duas criaturas.
O início do estresse é ter que comprar o presente. Você, claro, pensa numa coisa de bom gosto. É um erro. Porque quase sempre o casalzinho está mais para a novela das oito do que para filmes do Fellini. Aliás, devia ser permitido dar livros de presente. Porque ninguém se atreve a reclamar, mesmo que vá usar o livro como calço de mesa.
O pior é que no fim das contas o investimento acaba saindo mais caro que o benefício. Afinal, o que os noivos têm para oferecer? Ah... a tal festa de casamento. Festa? É uma coisa fascista. Ou você vai vestidinho de acordo com o figurino ou as pessoas vão te olhar como um macaco bêbado numa loja de cristais. Era preferível vestir a roupa do dia-a-dia, um jeans e camiseta. Mas quem ousa? Não importa se está um calor de rachar mamona, mas você tem que vestir pelo menos um incômodo blazerzinho.
Pior é o caso das mulheres. As coitadas têm que passar horas e horas no cabeleireiro, maquiadora, manicure, pedicure e o escambau. É um sistema estranho. A escolha da roupa começa uns dois meses antes do casamento, mas cinco minutos antes da festa elas ainda não se decidiram. Mulheres. E quem decidiu que elas devem usar os tais "longos"? Pô, são uns vestidos idiotas num clima tropical. E fazem mesmo as boazudas parecerem autênticos sacos de batatas. Pode ficar bem na "Gilda", mas nem todas as mulheres são a Rita Hayworth.
Há outra coisa que sempre me impressionou. Os familiares dos noivos passam semanas e semanas a decidir quem vai ficar em qual mesa. A coisa tem o rigor de uma quase-ciência. Às vezes, fico a perguntar se é preciso ter pós-graduação para conseguir entender a nobre arte de formar as mesas num casamento.
Mas não funciona no meu caso. A chatice é que sou conhecido como um tipo "zen". Então, os caras põem as pessoas mais esquisitas na minha mesa. Deve ser para testar a minha paciência. Fica sempre a parecer que estou numa espécie de twilight zone.
Então, fica o pedido. Por favor, não me convide para o seu casamento. É sério. Eu não vou ficar chateado.
É como diz o velho deitado: "O amor é um sonho. O casamento é o despertador".


63 - Você é muito gostosa, Robocop

A geração "silly-cone" é uma coisa difícil de entender. A febre que obriga as mulheres - as que têm grana, pelo menos - a entrarem numa autêntica corrida pelos silicones, botox ou cremes tão milagrosos quanto caros. É quase uma obrigação social.
Tentar ser desejável é compreensível num mundo baseado no hedonismo e no culto do corpo. Mas a coisa não bate certo. De onde surgiu, por exemplo, essa obsessão que as mulheres brasileiras têm de ser "mamalhudas"? Por que têm essa estranha necessidade de encher os peitos com baldes de silicone? Sem querer psicanalisar, acho que deve ser o "fator Barbie". As mulheres querem ser loiras, altas e peitudonas como a boneca.
É antinatural. A Barbie é americana, as brasileiras são brasileiras. O traseiro arrebitado e redondinho é a marca da "raça". Desculpem as feministas (se ainda existir alguma), mas o que realmente interessa numa brasileira é o bumbum. Pode parecer conversa de vestiário masculino, mas no jogo da sedução qualquer brasileiro olha primeiro nos olhos e depois dá aquela conferida no traseiro. Ou não? Atenção, leitor, não vale mentir só porque a patroa está aí ao lado.
A mulher brasileira não precisa de peitões. Se elas as tivessem a sensatez de perguntar o que os homens preferem, iriam perceber que o padrão brasileiro é muito diferente do estilo Barbie. Menos peito, mais bunda. Aliás, as mulheres correm o risco de ficar conhecidas por números.
- Cara, a minha namorada tem uns peitões de 340 ml de silicone.
- Ih... que muxibinha. A minha tem 430 ml e quase nem encontra sutiã que segure tudo aquilo.
Confesso que nunca pus as mãos em seios siliconados. Mas imagino que a sensação seja a mesma de namorar o Robocop. É pegar numa coisa artificial, falsa, industrializada. Mais estranho ainda é essa obrigação de trocar a prótese periodicamente. Pô... é mais ou menos como levar o carro à oficina.
- Olha, doutor, vim fazer a revisão dos dez anos. Posso implantar um modelo tala-larga?
E depois não venham as mulheres reclamar que os homens não as entendem. Porque a coisa fica estranha se os caras souberem que estão a tocar em borracha (o silicone não passa disso). Mas o grande efeito colateral dessa nova mania é mesmo o surgimento de uma nova geração de mulheres, a "geração chester": muito peito, muita coxa... e já vêm sem cabeça.
É como diz o velho deitado: "Por que será que ninguém se lembra de siliconar os cérebros?"


62 - Vá de retro, pastor

A queda-de-braço entre a Globo e a Record também está a fazer barulho em Portugal. No início de abril, a TVCabo, principal empresa de televisão em sinal fechado do país, deixou de transmitir o sinal do GNT, canal da Globo que estava presente no mercado português há oito anos. Em seu lugar entrou a programação da Record.
A mudança está cheia de coisas estranhas. Em primeiro lugar, o GNT era um dos líderes de audiência na grade da televisão paga e tinha um público fiel. Outro aspecto que chama a atenção é o fato de a TVCabo ter dado uma banana para os seus assinantes: simplesmente procedeu à substituição sem dar qualquer explicação.
Quem também ficou a falar para as paredes foi o pessoal do GNT. Os dirigentes da emissora brasileira afirmam que sequer foram informados da substituição. Antes de sair do ar, o GNT limitou-se a exibir chamadas que alertavam os telespectadores. Coisas do gênero:
- Atenção, telespectador, a partir de abril você pode ficar sem o "Programa do Jô".
Não adiantou. Fora do ar, o GNT ameaçou recorrer à Autoridade da Concorrência para resolver a questão. Por enquanto, resta apenas uma mensagem no site da emissora a informar que está temporariamente fora do ar. Mas prometendo voltar. "Neste momento, buscando soluções para continuar levando até você o que de melhor há na televisão brasileira e continuar estreitando os laços entre Portugal e Brasil", diz a nota.
Não se pode dizer que a entrada da Record na programação da TVCabo tenha sido muito bem digerida pelos telespectadores. As revistas genéricas e da especialidade têm trazido manifestações de desagrado de muitas pessoas. Até porque a emissora, que insiste em novelas, futebol e alguns programas de humorismo requentado, pouco acrescenta em termos de programação. É quase o mesmo que se encontra em muitos outros canais (inclusive o GNT).
Mas o ponto mais debatido é a ligação da Record à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Os portugueses têm uma certa birra com o modus operandi da IURD, que consideram apenas uma seita. Muitos dizem que a TV Cabo abriu mão de uma emissora voltada para a cultura lusófona, pondo em seu lugar uma outra dedicada ao proselitismo religioso.
Uma coisa é certa: de vez em quando passo pelo canal e tem um time de pastores a vender o peixe nuns programas de nomes esquisitos como "Conquistas Financeiras", "Fala Que Eu Te Escuto" ou "Em Que Posso Te Ajudar".
É como diz o velho deitado: "Em que pode me ajudar? Que tal sair da minha televisão..."

61 - A revolução dos slogans

Os estudantes franceses voltaram de novo às ruas.
Protestos por todo o país.
Ocupações de universidades.
Ferrovias bloqueadas.
A polícia baixando o cacete.
Faz lembrar toda a agitação de 1968. Foram tempos interessantes, uma espécie de "revolução dos slogans". Poucas vezes houve tanta riqueza de frases a espelhar um determinado momento histórico.
A mídia eram as ruas. As mensagens estavam nos muros, nas fachadas e nas palavras de ordem das manifestações. Há slogans antológicos que marcaram 1968 e até poderiam ser reutilizados (se ainda se falasse em mudar a sociedade, claro).
Irreverentes
"Sejamos realistas. Exijamos o impossível."
"A chatice é contra-revolucionária."
"Eu sou marxista da tendência Groucho."
Poéticos
"Felicidade é a nova idéia."
"A poesia está na rua."
"A sua felicidade está sendo comprada. Roube-a."
Libertários
"É proibido proibir."
"Não queremos um mundo que promete que não vamos morrer de fome, se o risco for morrer de tédio."
"Numa sociedade que aboliu a aventura, a única aventura é abolir a sociedade."
Engajados
"Trabalhador: você tem 25 anos, mas o seu sindicato é do século passado."
"Não vamos reivindicar nada, não vamos pedir nada. Vamos tomar, vamos ocupar."
"Um simples fim de semana não-revolucionário é mais sangrento do que um mês de revolução permanente."
Disruptores
"Corra, camarada, o velho mundo vem aí atrás de ti!"
"A cultura é o inverso da vida."
"A revolução é inacreditável porque é real."
Heréticos
"Mesmo que Deus existisse, teria que ser suprimido."
"Nem Deus, nem senhor."
"Como pode uma pessoa pensar livremente à sombra de uma capela?"
Afirmativos
"A libertação da humanidade será total. Ou não será."
"A imaginação ao poder."
"Vim. Vi. Acreditei."
É como diz o velho deitado: "Vivre sans temps mort, jouir sans entraves".


60 - La revolución del viño con coca-cola

Quer fazer uma revolução?
Então corra para o supermercado e compre algumas garrafas de refrigerante e o vinho mais vagabundo que puder.
Parece brincadeira? Não se engane.
Essa é a fórmula que os jovens espanhóis encontraram para lutar contra os males da sociedade. E também para protestar contra as ações da polícia, que está sempre a fazer prisões. Hoje em dia, nos países de barriga-cheia, já não existe o tal mal-estar da civilização. Restou um insignificante tédio existencial que se combate com uma overdose de cachaça. Ou melhor, com uma esquisita mistura de vinho rasca e Coca-Cola (el calimocho).
Hoje, a revolução é feita com os famosos botellones (garrafões). Um fenômeno arraigado na Espanha, mas que ameaça se espalhar para outros países europeus. Como funciona a coisa? Os adolescentes fazem vaquinhas para comprar bebidas mais baratas nos supermercados (cerveja, refrigerantes, destilados). Depois, vão para um local público beber a noite inteira até cair.
Para driblar a polícia, a rapaziada marca os tais botellones (agora há até macro-botellones nacionais) pelo celular e a internet. E o que se tem é uma tremenda algazarra, jovens nos prontos-socorros dos hospitais por excesso de álcool e um fedor de urina e vômito nos pontos de encontro.
Uma pesquisa ouviu os jovens para saber quais são as causas dos porres homéricos que todos os finais de semana acontecem pelo país. E, como era de se esperar, as respostas indicaram que estamos à frente de um caso seríssimo de exclusão social. O maior percentual de respostas (41%) denuncia que beber álcool nos bares é muito caro para os jovens. Em segundo lugar (22%), dizem que a causa é a má qualidade das bebidas alcoólicas nos bares.
É inacreditável que um governo de um país de Primeiro Mundo deixe os seus cidadãos numa situação como esta. Onde está o welfare state? O que é feito do dinheiro dos impostos? Afinal, por que os políticos não arranjam logo um subsídio para garantir bebidas alcoólicas mais baratas para os adolescentes nos bares? Isso acabaria com a exclusão desses jovens injustiçados (quase metade tem idades entre 14 e 18 anos).
Tempos estranhos. Já lá se vão os tempos das gerações jovens que lutavam contra o autoritarismo e formavam barricadas nas ruas para pedir liberdade e uma vida melhor.
Agora parece que a luta se resume a ter álcool mais barato. O que terá mudado?
É como diz o velho deitado: "Pelo menos não há coquetéis molotov. Porque os caras bebem tudo o que estiver numa garrafa".


59 - Uma humilhação literária

Um dia destes, um leitor enviou, pela internet, uma lista com os cem maiores romances do século 20. Apesar das boas intenções de quem faz uma lista dessas (acho que foi um jornalão brasileiro), será sempre uma iniciativa pretensiosa e questionável. Afinal, a literatura - e a relação do leitor com um texto - não é uma ciência exata.
Mas há uma utilidade prática. Uma lista como essas serve de baliza para analisar os caminhos das nossas leituras. Eu confesso: no meu caso, foi uma covardia. Afinal, como tenho dedicado o meu tempo a leituras de interesse acadêmico (filosofia, sociologia, comunicação etc), acabei por negligenciar os romances. Li apenas 14 desses livros:
"O Processo" - Franz Kafka ; "Doutor Fausto" - Thomas Mann; "Grande Sertão: Veredas" - Guimarães Rosa; "O Castelo" - Franz Kafka; "O Estrangeiro" - Albert Camus; "O Inominável" - Samuel Beckett; "Cem Anos de Solidão" - Gabriel García Márquez; "Admirável Mundo Novo" - Aldous Huxley; "1984" - George Orwell; "A Peste" - Albert Camus; "Macunaíma" - Mário de Andrade; "O Amante de Lady Chatterley" - D. H. Lawrence; "O Lobo da Estepe" - HermaHesse; "Revolução dos Bichos" - George Orwell.
Eu, por exemplo, acho que "A Revolução dos Bichos" e "O Amante de Lady Chatterley" são presenças questionáveis nessa lista. Sou capaz de lembrar muitos títulos mais interessantes e relevantes.
Aliás, para diminuir a minha humilhação, os senhores que organizaram a lista podiam abrir um precedente. Ver o filme também deveria contar, porque assim eu subia aos 25. Só o "Dr. Jivago" eu vi mais de uma dezena de vezes. A Globo sempre passava o filme perto das eleições, para mostrar aos eleitores os perigos de votar na esquerda.
Se ter lido poucos livros da lista é uma humilhação, pior mesmo é não conhecer alguns dos autores incluídos na lista. Não faço a menor idéia de quem sejam Italo Svevo, Lawrence Durrell, Dino Buzzati, JuaRulfo, Carlo Emilio Gadda, Ignazio Silone, Georges Perec, Michel Butor, RomaiRolland ou Pär Lagerkvist. Shame on me.
Pelo menos a lista serviu para mostrar que preciso me esforçar mais. E vou já começar a ler logo o primeiro lugar: "Ulisses", de James Joyce (tentei quando era adolescente, mas desisti). É uma forma de recuperar o tempo perdido. Aliás, o clássico "Em Busca do Tempo Perdido" é o segundo da lista. Mas esse eu não vou ler. Já tentei e acabei por concordar com aquela pessoa que escreveu, certa vez, que ler Proust é como tentar arar o campo com agulhas de tricô.
É como diz o velho deitado: "Só faltam mais 86 livros. Se viveres até aos 150 anos terás tempo de sobra".


58 - 10 dicas para escrever um artigo de sucesso

O leitor já pensou em publicar um artigo de opinião, uma crítica ou uma crônica? É fácil escrever um texto de sucesso. Mas se sofre da tal síndrome da folha em branco (ou a tela do computador em branco), arrisco a dar uma fórmula muito eficaz. Siga as dicas.
Dica 1 - É a mais fácil. Caia de pau sobre o presidente George W. Bush e os seus "falcões". Diga que são imorais, gananciosos e que fazem tudo pelo petróleo. Um aviso: é um bom negócio arrasar o governo norte-americano, mas evite falar mal dos Estados Unidos. Todos os brasileiros gostariam de viver na terra de Tio Sam.
Dica 2 - Fale mal de Lula e da corrupção no governo. É tema de sucesso garantido entre as classes médias que lêem jornais. Meta o dedo na ferida: Lula não fez faculdade. Ironize, achincalhe e diga que é uma vergonha o Brasil ter um sem-diploma como presidente.
Dica 3 - Seja duro também com o senhor anterior, o sociólogo. Mas faça ao contrário. Avacalhe com o valor dos diplomas. Relembre o "esqueçam tudo o que eu escrevi". Ironize e trate o senhor por termos que indiciem soberba: príncipe, rei, filósofo, ilustrado.
Dica 4 - Fale de cinema. Qualquer idiota pode ser crítico (aliás, digamos que ser idiota é essencial para ser crítico de qualquer coisa). Não é preciso ter curso, ter feito filmes, saber de coisas técnicas. Como todo mundo se julga expert em cinema, sempre terá ibope.
Dica 5 - Pegue numa frase feita e destrua a nossa auto-estima. "O Brasil não é um país sério", por exemplo, é receita certa. Culpe o governo, culpe os políticos, culpe os brasileiros. Todos são culpados menos você, que está heroicamente a escrever um texto (é fazer algo, afinal).
Dica 6 - Se for de Santa Catarina, mostre respeito pelos velhos caciques e oligarcas. Elogie. Puxe o saco sem pudor. Diga que são velhas raposas. E omita que muitos estiveram ligados à ditadura.
Dica 7 - Incorpore o paladino da ética e da moral. Seja agressivo. Diga que está indignado com toda essa bandalheira (não precisa especificar, há bandalheira em todos os lugares). Use palavras fortes como "lixo", "nojo", "repugnância" etc.
Dica 8 - Lance um slogan. Proponha coisas do tipo "não reeleja". É uma idéia totalmente idiota, mas os slogans são mera publicidade e não estão sujeitos à verificação.
Dica 9 - Falar mal de integrantes dos movimentos populares é tiro certo. Use termos como baderneiros, invasores, criminosos, terroristas.
Dica 10 - Culpe os políticos por tudo. Diga que são todos iguais. Ninguém vai perguntar se você, alguma vez na vida, levantou o traseiro da cadeira para tentar mudar as coisas a sério. Afinal, como já foi dito, você está escrevendo um texto para denunciar toda essa sacanagem. E isso é fazer muito.
É como diz o velho deitado: "Ignorar a própria ignorância é o primeiro passo para o sucesso".

57 - Minganaquieugosto

Há pessoas que acreditam em conceitos como a "verdade". Mas será que ela existe? Afinal, toda história tem várias versões. Vejamos alguns exemplos esclarecedores.
Um lado - Lula criou o programa Bolsa-família, e os opositores dizem que é uma forma de comprar o voto dos eleitores mais pobres e desinformados. Há quem vá mais longe e afirme que o sistema sustenta quem não quer trabalhar.
Outro lado - Na União Européia há uma coisa parecida: o Rendimento Mínimo Garantido. Apesar de uma ou outra crítica dos malucos da extrema-direita, todo mundo elogia a existência desse apoio às famílias mais pobres.
Um lado - Há seis meses Ariel Sharoera uma das pessoas mais odiadas do mundo. Violento defensor do muro entre Israel e Palestina, tem o nome banhado no sangue das vítimas de brutais chacinas.
Outro lado - Um dia Sharotem um problema vascular cerebral, acaba entrevado numa cama e se torna uma espécie de mártir. Só falta alguém pedir a beatificação do homem.
Um lado - A Europa começa a desenvolver anticorpos contra os imigrantes (brasileiros inclusive), em especial os que vivem na clandestinidade. Há claros sinais de xenofobia.
Outro lado - A mesma Europa não se importa de cobrar impostos desses imigrantes, que ocupam os postos de trabalho que os europeus já não querem. Ah... pagam muitos impostos, mas não têm direitos sociais.
Um lado - Até bem pouco tempo, as cabeças bem pensantes do planeta torciam o nariz para o cantor country Johnny Cash, que consideravam brega.
Outro lado - Depois do sucesso do filme sobre a sua vida (até rendeu um Oscar para Reese Witherspoon), o homem parece ter sido alçado à condição de gênio musical. A trilha sonora do filme liderou a lista da "Billboard" por semanas.
Um lado - Parte da imprensa diz que o crescimento econômico do Brasil em 2005 (2,3%) é uma vergonha, por ser muito pior do que os números de China e Índia.
Outro lado - Outros jornalistas dizem que o crescimento foi maior do que o de muitos países da Europa. E que seria o crescimento possível em ano de crise na economia mundial.
Um lado - Na época de maior bochicho do "mensalão", alguns políticos (em especial do PSDB) usavam os números dos institutos de pesquisas para dizer que o presidente Lula estava politicamente acabado.
Outro lado - Com a virada de Lula, que agora lidera as pesquisas, os mesmos políticos põem em dúvida a credibilidade dos institutos de opinião.
É como diz o velho deitado: "Nem sim, nem não. Muito pelo contrário".


56 - Que tal privatizar os orgasmos?

Imagine o mundo neoliberal total. Não é difícil, porque já estamos bem pertinho. Aliás, para quem não sabe, aqui na vizinha Bolívia, a empresa concessionária dos serviços de águas fez o que poderíamos considerar um delírio: privatizou a água da chuva. Parece piada? É a mais pura verdade (pode conferir, em Cochabamba os camponeses não podiam armazenar água da chuva sem pagar à concessionária). O neoliberalismo não está aí para brincadeiras.
E como seria o paraíso neoliberal?
- Os professores da rede estadual ganhariam melhor, mas com uma pequena contrapartida. Teriam que dar aulas usando um uniforme cheio de marcas de produtos. Mais ou menos como os pilotos de Fórmula 1. O sistema de som da escola anunciaria a cada 20 minutos: "esta aula é um patrocínio do refrigerante Boca-Bola e dos hambúrgueres bovinos Boi-Ola".
- A vida sexual das pessoas também seria privatizada. Uma empresa implantaria um chip nos órgãos sexuais do casal. O dispêndio de esperma e líquidos vaginais seria rigorosamente controlado e, em caso de exageros, a conta no final do mês seria pesada. Os sexaholics estariam em sérios problemas. Uma mulher que tivesse orgasmos múltiplos certamente acabaria no SPC-Serviço de Proteção ao Crédito. As relações extra-conjugais obrigariam ao pagamento de taxas extras.
- O ar que respiramos seria privatizado e iria valer a lei da oferta e da procura. Tudo ia depender do orçamento das famílias. Em meses de crise, um ar poluído de Cubatão. Nos tempos de fartura, uma brisa marinha. Nos finais de semana, um ar do campo. Em caso de dificuldade, seria possível ir até ao vizinho pedir emprestada uma garrafa de ar serrano. É claro que apenas a burguesia poderia respirar os ares da Amazônia (já internacionalizada pelos EUA depois de uma invasão ordenada pelo Bush).
- Outra inovação era privatizar as idas ao banheiro. É o lado positivo. Os dejetos seriam usados como matéria-prima para produzir energia elétrica e quem mais defecasse mais descontos receberia. É fácil imaginar os pais a desancarem os filhos: "escuta lá, ó estróina, tu tens que ir mais vezes ao banheiro". A expressão "vai cagar" passaria a ser tão respeitável quanto o famoso "vai trabalhar". As pessoas com prisão de ventre seriam os marginalizados da sociedade.
- A literatura, assim como já acontece no cinema (que tem marcas em todos os lados), também se renderia à lógica do mercado. Imaginem, por exemplo, o momento em que Baleia (a cadela de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos) está a morrer. O novo texto traria a inserção de um parágrafo inédito: "se a Baleia tivesse um plano de saúde canina AnimalMed, nada disto teria acontecido". E prossegue com a história de Fabiano e Sinhá Vitória.
É como diz o velho deitado: "Espaço reservado para a sua marca. Anuncie aqui".
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José António Baço, jornalista e publicitário


55- Boa noite, Homer Simpson

Não sei se o leitor acompanhou a recente polêmica envolvendo William Bonner, editor do "Jornal Nacional", e um professor universitário que fez uma visita à Globo. A origem de tudo foi uma inconfidência. O acadêmico revelou a forma como o jornalista identifica o espectador médio do jornalão televisivo: Homer Simpson. Ou seja, um sujeito burróide que passa as noites à frente da televisão, comendo porcarias e com uma lata de cerveja na mão.
Houve um pequeno debate-boca. Bonner disse ser exagero e que o seu Homer é apenas um pai de família trabalhador. O professor reafirmou tudo o que havia dito. E no final ficou muito por esclarecer. Mas hoje dou uma contribuição para resolver algumas dúvidas. Exemplos práticos para identificar o Homer Simpson do telejornal da Globo:
- Nunca lê, a não ser as notícias de polícia e futebol, mas acredita estar bem informado sobre todos os temas da vida.
- O cara acha que George Bush é um boçal. Mas na verdade não se importaria de viver nos States e ganhar em dólares, mesmo tendo o homem como presidente.
- Não tem dúvidas de que Chávez é um ditador troglodita. Isso de garantir assistência médica aos pobres deve ser um truque para se perpetuar no poder. Ter erradicado o analfabetismo não passa de um plano malévolo para a cubanização do país.
- O Homer brasileiro diz que não gosta de Lula por causa da corrupção no governo. Mas lá no fundinho tem outra razão ainda mais forte: não se conforma por ter um presidente sem diploma e que aparentemente sabe menos que ele. Não por acaso está sempre a fazer piadas sobre a "inguinorança" de Lula.
- Não gosta de política e acha que os políticos são todos iguais. E nem percebe que as coisas só são assim por causa dele, Homer Simpson, um ser politicamente abúlico.
- É ciclotímico e passa por crises de afetividade. Primeiro amou FHC. Depois odiou FHC. E agora volta a sentir um estranho carinho por FHC.
- No impeachment de Collor achava o Roberto Jefferson um canalha. Mas agora, depois que o ex-balofo e ex-deputado decidiu jogar caca no ventilador, até acha que ele tem um certo perfil de herói.
- Tem certeza de que a solução para o país é a globalização. Anseia pelos investimentos estrangeiros e nem desconfia que esse é o caminho para a perpetuação de um sistema que só beneficia os países ricos.
- O nosso Homer Simpson está atônito. Lula, um operário a governar o Brasil. Chávez, um golpista metido a revolucionário a governar a Venezuela. E agora Evo Morales, um índio a governar a Bolívia. É o fim da picada, a insanidade total.
É como diz o velho deitado: "Não importa se a televisão é a cores. Há pessoas que só conseguem ver o mundo em preto e branco".
José António Baço, jornalista e publicitário


54 - Jingle hell, jingle hell

O Natal faz despertar o que há de melhor nos homens. Ou seja, o cartão de crédito. Se tivesse o poder de mudar as coisas, a primeira seria fechar os estacionamentos dos shopping centers nestes tempos. Porque são obra do tinhoso. Primeiro a gente não consegue entrar. Quando entra não encontra vaga. E quando tenta ir embora não consegue sair porque está tudo congestionado. Deve ter sido num estacionamento de shopping que Dante encontrou inspiração para a sua "Divina Comédia":
- Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais.
Há outra coisa que eu mudaria. É uma sacanagem o Natal cair num sábado ou num domingo. Pô, é mais ou menos como ganhar meias e cuecas de presente todos os anos: não tem graça. Natal em pleno domingão e com a depressão do "Fantástico"? Fala sério. Deveria cair sempre nas terças ou quintas-feiras. A ponte no final de ano deveria ser um direito inalienável do ser humano.
A iluminação das ruas é outra coisa que não dá para entender. Os caras passam o ano inteiro pedindo para economizar energia. Fechar a geladeira. Não esquecer as luzes acesas. Usar lâmpadas econômicas. E o que acontece no fim de ano? Há cidades que têm mais luzes do que nave espacial em filme do Spielberg. Será que ninguém lembra do apagão?
Mas acho que o pior é mesmo o amigo secreto nas empresas. Se você não participa dizem que é anti-social, se entra paga o mico. E ainda tem a chatice adicional de acertar na escolha do presente. Eu, para me defender, dou sempre um livro com mais de 300 páginas. O meu amigo secreto pode achar que um livro vale tanto quanto um pacote de bombril, mas nunca terá coragem de reclamar para não parecer "inguinorante".
As pessoas sabem que eu gosto de ler. O lado bom é que eu sempre vou ganhar livros. O lado mau é que só escolhem best-sellers. Aliás, o leitor não estaria interessado em comprar seis exemplares do Harry Potter? Estão intocados. Eu ganhei todos nos amigos secretos dos últimos anos. Já percebeu que a tal JK Rowling lança os livros do Harry Potter sempre antes do Natal? Acredite: é um complô contra mim.
Outra coisa inacreditável são os jantares de Natal das empresas. Eu chego sempre cedo, em legítima defesa. É para poder escolher perto de quem vou sentar. Não há agonia maior do que ficar ao lado daquele chato da contabilidade. É um inferno. Aliás, como já disse alguém: eu bebo para que as pessoas fiquem interessantes. O pior é que você bebe e se diverte. Mas quando volta para o trabalho no dia seguinte está todo mundo a comentar o seu strip-tease sobre a mesa do chefe. Um absurdo: as pessoas convidam para uma festa e não querem que você se divirta?
É como diz o velho deitado: "Eu não acredito em Papai Noel, cegonha, coelho da Páscoa. E ainda menos no porquinho da poupança".

José António Baço, publicitário e jornalista


53 - Preparando o enterro da arte

Às vezes a publicidade vai direto na ferida. Um dos trabalhos mais irônicos que vi nos últimos tempos é a campanha criada pela DM9DDB (raios, é difícil pronunciar esta sopa de letras) para o Masp (mais letrinhas). É na mouche. Os publicitários sacaneiam com essa mania que os brasileiros têm de cultuar tudo o que existe no exterior e esnobar o que é brasileiro.
O prédio do Masp é transplantado para a paisagem de lugares considerados chiques, como Nova Iorque ou Paris. E os títulos pegam na veia:
- Se o Masp estivesse em Nova Iorque, você arranjaria tempo para ir.
- Em Paris, pegaria bem ir no Masp.
Certíssimo. Já escrevi aqui mesmo que um pequeno burguês brasileiro é capaz de ficar três horas na fila do Museu do Louvre apenas para ver o sorriso da Mona Lisa. Mas no Brasil é incapaz de perder 30 segundinhos a olhar para uma obra de arte mesmo que lhe seja posta à frente do nariz. Ninguém pode ter dúvidas de que as classes médias brasileiras - mesmo as pessoas que gostam de tomar "banhos de cultura" no exterior - padecem de uma absurda mediocridade cultural.
Acha que é exagero?
A ligação dos brasileiros à arte é tão débil que sequer um ladrão de quadros consegue ganhar a vida no País. E olhem que é um grande negócio ao nível mundial. As autoridades internacionais estimam que os crimes envolvendo obras de arte (a maioria roubos e seqüestros) movimentem um valor próximo dos 2 bilhões de reais. Tanto que em alguns países já há policiais especializados nesse campo. É uma verdadeira indústria.
Mas o que acontece no Brasil?
Os nossos ricos, que têm acesso a educação, informação e boas escolas, são quase sempre analfabetos em arte. Imagine então o que acontece com os pobres, sem comida e sem instrução. Pelo menos é uma forma de ignorância muito democrática, porque não escolhe classe social e atinge a todos, ricos e pobres.
Só uma iliteracia generalizada poderia originar a comédia de erros que foi o roubo do quadro "Preparando Enterro na Rede", de Cândido Portinari. Que país civilizado veria uma obra com essa importância negociada em praça pública (ainda mais roubada)? E o pior: o quadro está avaliado em 2,5 milhões de reais e os ladrões, à falta de compradores, acabam tentando vendê-lo a preço de liquidação, uns míseros 20 mil reais.
É uma ironia. Sem querer torcer pelos bandidos, o episódio só mostra uma coisa: que no Brasil o negócio da arte não prospera. Nem mesmo o crime.
É como diz o velho deitado: "No Brasil o crime é quase uma arte. E a arte é quase um crime".
José António Baço, publicitário e jornalista


52 - De terroristas e ratos

Os sem-terra são terroristas, como querem certos políticos? Talvez. Mas onde estão os outros? Afinal, há por aí gente muito mais perigosa e que até desfruta
de prestígio social. Dou aqui as minhas sugestões para atualizar a lista dos terroristas no Brasil.
- Os pusilânimes que navegaram nas águas sujas da ditadura e, quando o barco da repressão começou a afundar, pularam fora como ratos. Depois foram se
abrigar na legalidade de partidos "dissidentes". Há quem os chame "raposas políticas", mas continuam a ser apenas ratos.
- Os velhos-corruptos que sempre mamaram nas tetas do poder público e agora arrotam moralidade para julgar os novos-corruptos.
- A récua enquistada nos meios de comunicação que desinforma, deforma e avilta. É gente dedicada a lamber as botas dos poderosos por pequeninos
privilégios. Rasteiros.
- As classes médias que, do conforto dos seus condomínios fechados com elevadores de serviço, não percebem que são o veículo usado para a reprodução do ódio de classe.
- Os obstinados em fazer desaparecer a história. Os heróis de ontem são os bandidos de hoje.
- Os canalhas de ontem são os exemplos de hoje (Roberto Jeffersonão me deixa mentir).
- Os políticos que se elegem em nome do povo e prometem governar para o povo. Mas na hora da decisão são incapazes de quebrar os laços com os oligopólios locais e internacionais.
- Os oligarcas botocudos que, em pleno século XXI, fazem recrudescer distorções medievais como o coronelismo, o clientelismo, o messianismo e outros "ismos".
- Os governantes incapazes de rupturas com um sistema que ignora os pobres. Essa gente que empurrou o Brasil para a pior distribuição de renda de todos os tempos.
- Os que nada fazem para combater a pobreza e depois exigem a posse de armas para se defender dos pobres.
- Os mentores e mantenedores de um sistema de ensino que dá dinheiro à escola dos ricos e impossibilita o acesso dos pobres à educação.
- Os cães-de-guarda do sistema que invadem a mídia a vociferar em defesa da lenga-lenga neoliberal. Nem se importam se o sistema exclui a maioria da população mundial e difunde a miséria em escala global.
Como vê, leitor, há muito mais terror para escolher. É como diz o velho deitado: "Dizem que o homem é um animal político.
Hummm... os ratos são animais, certo?"
José António Baço, jornalista e publicitário


51 - Sexo, vibradores e o tamanho do dito-cujo

Até chegar a esta crônica, o leitor já leu outras páginas do jornal. E acredita estar bem informado sobre política, polícia, esportes ou economia. Mas eu tenho um conselho: se quer conhecer o mundo real, então, leia os anúncios - em especial os classificados. Duvida? Eu faço isso todos os dias.
Hoje, por exemplo, dei logo de cara com o anúncio de uma clínica especializada em saúde sexual. Mostra um daqueles avisos de porta de hotel com a mensagem "Do Not Disturb" e o desenho de dois bonequinhos no rala-e-rola. Há imensa filosofia no anúncio. Para começar, a mulher está por cima, o que insinua a liberação feminina. E uma frase em tom de promessa:
- "Sexo onde, quando e como quiser".
Como o jornal é um daqueles que são distribuídos gratuitamente no metrô, eu olhei para a morena boazona sentada à minha frente. Quem sabe ela estaria a ler o anúncio e também cheia de idéias? Sexo em qualquer lugar, a qualquer hora? Uau! Mas não. A moça estava a ver o anúncio de um cinema que não fala em filmes. Mas dá as pipocas. Afinal, quem quer saber o nome do filme que está a ver se houver pipocas grátis?
Não resisto e vou logo para os classificados. O primeiro anúncio tem o seguinte headline: "Sexo grande: aumente e engrosse o seu pênis com o PeniMaster". É um produto alemão que aumenta o dito-cujo em até sete centímetros. Ou mais, dependendo do desespero. Tudo em segredo. Aliás, discrição é também o que garante o anúncio logo a seguir. "Peça catálogo erótico grátis - enviamos em carta fechada, no máximo sigilo". Dizem ter mais de 30 tipos de vibradores. Ah... o leitor sabe o que é uma "bomba de vácuo"? Também há muitas em estoque.
Logo a seguir vêm os médiuns e videntes africanos. Há um sem-número deles, todos chamados "professor-qualquer-coisa". Professor Karamba, por exemplo. O mais interessante é que todos prometem a cura para a impotência sexual em menos de 15 dias. Ai, caramba. Será que nunca ouviram falar no Viagra? A resolução de problemas financeiros é outra promessa. E a ajuda começa ali, pois todos os videntes aceitam pagamentos em prestações.
Mas os meus anúncios favoritos são os mais inocentes, das pessoas que apenas procuram companhia. É publicidade sem falsas promessas, de gente que só quer conviver e fazer amizades.
"Ex-futebolista bem dotado, potente, ativo, passivo, convive com cavalheiros por prazer". "Lourinha carente procura homens para aventura louca e sem compromisso". "Morena safadinha convive com cavalheiros por prazer". Não é bonito? É gente querendo um inocente convívio, apenas por prazer e sem qualquer interesse.
É como diz o velho deitado: "Os anúncios revelam mais sobre uma sociedade do que os noticiários".
José António Baço, jornalista e publicitário


50 -Fornecedores de carne humana

Faz alguns dias os jornais portugueses publicaram uma reportagem  que deixou muito barbado à beira de um ataque de nervos.  Uma prostituta brasileira morreu de Aids e, segundo depoimentos,  teria transado com quase mil homens depois de saber que estava  contagiada. É claro que esse número é um  exagero da imprensa, mas mesmo assim não deixa de ser  assustador.
 O caso ganhou contornos de escândalo nacional. Mas é apenas a história de uma das milhares de brasileiras que todos os anos vão para o Velho Mundo viver da prostituição.  É gente a mais. As autoridades estimam que pelo menos  75 mil mulheres brasileiras estejam trabalhando como prostitutas  na Europa: a maioria na Espanha (20 mil), na Alemanha (7 mil)  e em Portugal (7 mil).
 Nem todas vão para a prostituição. Muitas  são enganadas por promessas de uma vida melhor, empregos  decentes e salários impossíveis de ganhar no Brasil.  Mas quando pisam o solo europeu percebem que estão desembarcando no meio de um pesadelo. Os passaportes são confiscados pelo proxenetas e elas são obrigadas a se prostituir para pagar as dívidas e reconquistar a "liberdade".  É claro que, por mais que trabalhem, as dívidas  nunca acabam. Há denúncias de que algumas mulheres  chegam a fazer mais de 15 programas por dia para cumprir o "contrato".
 Coisas da tal globalização neoliberal.
 O leitor pode perguntar o que o neoliberalismo tem a ver com  isso. Quase tudo. É um modelo econômico baseado na exclusão e que contribui para acentuar a miséria  nos países do chamado "terceiro mundo", incapazes  de ir na contracorrente do totalitarismo do mercado. Só  um mundo alicerçado numa lógica economicista, que  desvia o olhar do ser humano, poderia dar origem a uma excrescência chamada "indústria do sexo". É um segmento  muito rentável que, segundo estimativas das autoridades internacionais, todos os anos movimenta valores que podem ir  até aos 7 bilhões de dólares.
 Uma indústria tradicional precisa de fornecedores de matéria-prima,  de comerciantes e de clientes. Não é diferente  com o sexo. Os países pobres como o Brasil (também  outros da América Latina, África, Ásia e  Leste europeu) são os fornecedores de carne humana. Dados oficiais informam que todos os anos cerca de 4 milhões de mulheres e meninas são compradas ou vendidas para a  prostituição em todo o planeta. Tudo isso sem falar  nas mulheres aliciadas por propostas enganosas de uma vida melhor.  Os clientes, claro, estão nos países ricos do Hemisfério  Norte.
 O problema é que a lógica economicista não  pára apenas nas máfias que traficam, aliciam e  obrigam mulheres à prostituição. É  certo que ainda há muita gente preocupada com a degradação  e a destruição da dignidade dessas mulheres. Mas  é assustador o surgimento de uma fraseologia da "economia  do sexo" também no discurso político.
 As intervenções de algumas autoridades denunciam  uma tendência no mínimo estranha. Qual é  a solução proposta por muitos governantes? Nos  dias de hoje, o problema da prostituição tornou-se  uma questão de "economia informal". Ou seja,  é preciso legalizar a atividade e fazer com que as prostitutas  paguem impostos. Simples.
 É uma das delícias dos ventos neoliberais: para  o mercado não há moral ou ética. Se der  dinheiro, vale tudo.

José António Baço, especialista  em pensamento contemporâneo pela PUC-PR/ byjose.antonio@bycom.com.pt


49 - Quem quer dar porrada no presidente?

Mais um escândalo político, leitor. A arapongagem grampeou o meu telefone. Tudo estaria bem, porque nada tenho a esconder, mas a verdade é que recebi uma ligação comprometedora. O presidente ligou para a minha casa e os arapongas captaram a conversa. Como sou pela transparência, transcrevo aqui o diálogo gravado.
Presidente - Alô, Zé. Preciso da tua ajuda.
Eu - Pô, presidente. Será que sou o Zé certo? Não está me confundindo com o Zé Dirceu?
Presidente - Não. Quero falá com você memo. Preciso que cê seja meu assessor pessoal.
Eu - Ih, presidente. Não sei. Os seus assessores acabam envolvidos em patranhas.
Presidente - É diferente. Eu tô seno ameaçado.
Eu - Ameaçado, presidente? Que loucura é essa?
Presidente - Cê num viu? O senadô Virgilo ameaçô de me dá uma surra. O ACMzinho disse que também vai baixá o sarrafo.
Eu - Ora, presidente. Não se preocupe. Cão que ladra não morde, ainda mais pequinês.
Presidente - Eu sei que você é professô de artes marcial e quero que me ensine defesa pessoal.
Eu - Mas por que tanto barulho?
Presidente - Eles tão reclamano da arapongagem da ABIN. Dizem que tão seno vigiado.
Eu - Mas por que a ABIN andaria atrás dos caras? Não é agência brasileira de inteligência? Se é inteligência, então têm que procurar em outro lugar.
Presidente - Não brinca, Zé. O caso é grave.
Eu - Peraê. Ou a minha televisão encolhe as imagens ou os caras são nanicos. O tal ACMzinho parece não ter corpo suficiente para encher as roupas que veste. E vai encher alguém de porrada? O outro não é aquele que tem um filho que gosta de mostrar o traseiro? Se foi ele quem educou o filho, não imagino que técnicas usará num combate. Pums mal-cheirosos?
Presidente - Num sei. Só sei é que eles querem o meu couro.
Eu - Para resolver esse problema, eu proponho uma luta justa, num tatame e com regras definidas. É só arranjar um estilo que lhe seja favorável.
Presidente - Taekwondo? Karatê? Kung Fu? Então eu preciso treiná.
Eu - Não, presidente. Tenho uma solução mais adequada. Em se tratando do seu perfil nos últimos tempos, proponho sumô. Com os quilinhos adquiridos nas churrascadas, almoços e jantares, o senhor é um adversário de peso. Diria imbatível. Eles não têm a menor chance.
Presidente - Fala sério. Eu preciso aprendê defesa pessoal.
Eu - Não dá, presidente. O seu maior problema são os tiros no próprio pé. E para isso não há defesa possível.
Ouve-se um click no telefone. Temendo estar sendo gravado, o presidente desliga.
É como diz o velho deitado: "Macho, macho man... I've got to be a macho! Ow..."
José António Baço, instrutor de taekwondo


48 -  Quando a mão invisível dá bofetadas

Mar Del Plata, 5 de novembro de 2005 - Manifestantes enfurecidos investem contra as forças da autoridade. Os ataques à propriedade - carros, casas e empresas - ditam o tom das manifestações. As paredes e os muros ostentam frases de protesto. Não há diálogo possível, porque a única linguagem é a dos coquetéis molotov. Fica um rastro de destruição e um cheiro de queimado no ar. Há protestos contra os políticos, acusados de serem os responsáveis pela exclusão social. A falta de oportunidades e de empregos é o foco principal da agitação. Há muitos desempregados entre os manifestantes. E entre eles estão muitos jovens que não conseguem a inserção no mercado de trabalho.

Paris, 5 de novembro de 2005 - Manifestantes enfurecidos investem contra as forças da autoridade. Os ataques à propriedade - carros, casas e empresas - ditam o tom das manifestações. As paredes e os muros ostentam frases de protesto. Não há diálogo possível, porque a única linguagem é a dos coquetéis molotov. Fica um rastro de destruição e um cheiro de queimado no ar. Há protestos contra os políticos, acusados de serem os responsáveis pela exclusão social. A falta de oportunidades e de empregos é o foco principal da agitação. Há muitos desempregados entre os manifestantes. E entre eles estão muitos jovens que não conseguem a inserção no mercado de trabalho.

A mão invisível e a panela da pressão - Se as mesmas palavras servem para falar de acontecimentos diferentes e em diferentes países, então deve haver algo em comum. E há. É o resultado das políticas neoliberais, que ao longo das últimas décadas têm imposto a exclusão social e estão a criar verdadeiros paióis de pólvora. Mas se antes o problema ficava restrito aos países pobres, hoje a história é outra. Os bolsões de pobreza existentes nos países ricos também são panelas de pressão prontas a rebentar. Foi o que aconteceu na autêntica intifada ocorrida na França.
O momento é mau para todos. Já pouca gente acredita na velha balela que de é importante, em primeiro lugar, criar riquezas para depois pensar em distribuí-las. Muito rapidamente o mundo está a perceber que a mão invisível do mercado não é capaz de pôr as coisas no lugar. Pelo contrário. Porque a riqueza vai sempre para os mesmos lugares, ou seja, as contas bancárias de poucos privilegiados.
A mão invisível está, isto sim, a dar uma bofetada na humanidade e no humanismo. E muita gente parece não estar mais disposta a dar a outra face. O crescimento dos movimentos contra a globalização - a globalização dos neoliberais - é a prova disso. Afinal, não se pode acreditar num sistema que exclui 80% da população mundial.
É como diz o velho deitado: "Há uma luz no fim do túnel. Mas é um coquetel molotov".
José António Baço, jornalista e publicitário.


47 - Que tal um sorvete de vatapá?
A sociedade de consumo tem verdadeiras maluquices. Há produtos tão necessários quanto uma banda de heavy metal num convento carmelita. A abundância produz a irrelevância.
- Imagine que em alguns países europeus está a ser comercializado um papel higiênico preto. É sério, leitor. O fabricante garante que é um produto de luxo, para pessoas que valorizam a sofisticação até quando estão sentadas no "trono". Ou seja, é um papel para o jet-set dos traseiros.
- Outra das inutilidades que invadiram o mercado são as águas com sabor e aroma. Peraí. Se tem sabor, aroma e cor, então deixa de ser água. Porque todos nós aprendemos na escola que água é um líquido inodoro, insípido e incolor. Mas há quem beba essa coisa, fabricada em sabores variados (limão, lima, goiaba, maracujá e o escambau). Difíceis de engolir são os preços.
- Ainda no campo das bebidas, também foi lançada uma cerveja com sabor de limão. A coisa parecia improvável. Fui ao supermercado e comprei um six pack. Tomei dois goles da primeira latinha. As outras cinco repousam esquecidas no fundo da geladeira faz alguns meses. Tento empurrar para as visitas, mas nenhum bebedor a sério encara. É uma espécie de limonada com espuma, uma cerveja para quem não gosta de cerveja.
- Outra das barbaridades que se vê com alguma frequência são os tênis com rodas. Nunca entendi como a coisa funciona, mas vez por outra vejo um adolescente a passar por mim como se estivesse a andar de patins. Já imaginou usar um desses calçados em ruas de paralelepídedos ou estradas de chão-batido? É patinar na maionese.
- Faz algum tempo foi anunciado o lançamento de uma nova versão do tamagochi, aquele bichinho virtual japonês. Se o original tinha já um conceito ridículo, o que dizer então deste modelo que, por ser interativo, permite comunicar com outros? Ou seja, o animalzinho poderá ter amigos e até namorar. Já imaginaram o filme? Traições, cenas de ciúmes, as tamagochis fêmeas querendo discutir a relação...
- Mas poucas invenções são mais esquisitas do que os novos sorvetes italianos (que começam a se espalhar pelo resto da Europa). É uma tendência que, segundo alguns chefes de cozinha, veio para conquistar o mercado. Os caras simplesmente se lembraram de fazer sorvetes com sabor de bacalhau, queijo parmesão, queijo gorgonzola e outras insanidades degustativas. Já imaginou, no Brasil, um sorvete de vatapá? Oxente, ia ser arretado. Aliás, se é gaúcho tenho uma boa notícia: já existe o sorvete de erva-mate. Mas nem tudo é loucura. Também foi inventado o sorvete de vinho, que parece agradar muito aos consumidores. Quanto a mim, esse vai fazer muito sucesso.
É como diz o velho deitado: "Depois da invenção da melancia quadrada já nada me espanta".
José António Baço, publicitário e jornalista.


46 - Dia do Saci: um negócio
com pernas para andar

Trick or treat?
Há coisa mais ridícula do que o halloween no Brasil? É uma festa tão oportuna quanto um prego no pé. Mas a pequena burguesia, que tem grana para pôr os filhos nos cursos de inglês, adere com um fervor comovente. E são as mesmas pessoas que ironizam a idéia do Dia do Saci, proposta como alternativa. O coro do deboche é engrossado pela voz dos intelectuais:
- Irrelevância, tolice, sem sentido.
O problema é que essa gente não tem faro para os negócios. Os caras preferem perder tempo com arengas inócuas e para o umbigo. Estranho é que os maiores críticos são justamente os defensores da economia de mercado. É que eles vêem aí um antiamericanismo "primário". Cegos pelas suas surradas crenças, não conseguem ver um palmo à frente do nariz. Se pensassem como empreendedores, teriam motivos para acreditar no sucesso do Dia do Saci.
Um dia desses um colega de trabalho, aqui em Portugal, veio me perguntar sobre o Saci-pererê. É que ele tinha comprado, para uma das filhas, um boneco do capetinha de uma perna só. Fez um comentário que chamou a atenção: a filha adora o brinquedo. E, muito interessante, as outras crianças invejam a raridade.
Há um fascínio pela figura. É o melhor estudo de mercado que um marqueteiro pode desejar: existe apetência pelo produto. Fiquemos apenas pelo boneco. O mercado mundial está saturado de barbies, kens, gi-joes e anseia por novidades. Há um nicho interessante a ocupar (logo... antes que os chineses descubram o negócio).
Uma boa estratégia de marketing poderia tornar o Saci-pererê um sucesso worldwide. É um produto das nossas raízes culturais - nunca seria finlandês ou coreano - e só pode ter marca registrada brasileira. Imagine-se, então, as peças de merchandising e outros produtos que poderiam surgir a partir da figura: camisetas, jogos, chaveiros, livros, filmes, cadernos, mochilas de escola, parques temáticos e o escambau. Há um mercado enorme a explorar. É uma forma de gerar as divisas e os empregos que tanta falta fazem ao País.
Já imaginaram, por exemplo, o turista estrangeiro, ao passar por uma free shop, se sentir obrigado a comprar um produto do universo do Saci-Pererê por ser uma "marca" do Brasil?
O primeiro passo pode ser o Dia do Saci. Mas não é suficiente. É preciso investir na criação de rituais e tornar a festa algo palpável e de dimensões nacionais. Mas como fazer passar essa idéia se nós próprios, à frente de um possível negócio, ficamos a achincalhar?
É uma forma de valorizar a cultura e gerar divisas.
Só temos que decidir: bullshit or business?
É como diz o velho deitado: "Muitas vezes quando um bom negócio bate à porta, as pessoas ficam a reclamar do barulho".

José António Baço é publicitário em Portugal.


45 - É coisa "dazelite"
Saber é poder
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Houve, no princípio do século 18, um frei chamado Luís de Nazaré, que viveu em Salvador, na Bahia. O religioso tinha muito prestígio por causa dos seus dons de exorcista. Quando encarava o demônio, o seu estilo era o que se poderia chamar pouco ortodoxo. O homem enfrentava o tinhoso com a espada.
Não entendeu? Na verdade ele acabou por se especializar em expulsar o diabo do corpo feminino. Se fosse uma mulata sensual, melhor. O método era ter relações sexuais com as mulheres "possuídas". A cura consistia em usar os fluídos resultantes da cópula para untar o corpo da mulher. Dizia o religioso, uma autoridade nas coisas das letras e do além, que era o único jeito de salvar as enfermas.
Havia um problema. É que o sexo fora do casamento - e que não servisse para a procriação - era proibido pela moral religiosa da época. As vítimas tinham medo de estar em pecado. Mas o frei puxava da sua erudição. Dizia que estava nos livros, inclusive os sagrados. E num País de gente analfabeta não se discute o que está nos livros. À frente de tão ilustrado homem, as mulheres aceitavam o destino.
É claro que o frei-espada foi apanhado - depois de algumas dezenas de exorcismos - e teve de responder aos inquisidores. Para salvar o couro, negou acreditar nos poderes curativos da "terapia" que ele próprio criou. Confessou que usava o estatuto de homem santo e de letras para convencer as mulheres, de famílias simples ou mesmo escravas, a aceitarem a sacanagem.
As elites e os "diproma" - Por que buscar uma história tão antiga? Podia ser outra qualquer, mas esta serve para mostrar que, ao longo da formação social brasileira, a educação foi sempre um fator de distinção e poder. E também para trazer à tona uma reflexão sobre um fato que ressurgiu com o "mensalão". Lula está encurralado e agora a classe média recuperou o velho prazer de escarafunchar na ferida: a falta de diploma do presidente.
Ora, digam que o homem é corrupto, mal-assessorado, incompetente. Mas falar em diploma é uma atitude terceiro-mundista. Coisa que só ocorre no Brasil, País com uma das piores distribuições de renda do mundo. Qualquer adiantado mental que tenha um "diproma" na parede se acha melhor do que as milhões de pessoas que nunca puseram os pés na universidade. É um saco ver qualquer bacharelzinho - um analfabeto funcional que às vezes sequer funciona - arrotar superioridade apenas porque tem um canudo. É coisa "dazelite" botocudas.
Se serve a informação, nunca tive de mostrar um diploma para ninguém aqui na Europa. Talvez porque seja o tal primeiro mundo.
É como diz o velho deitado: "Não se iluda: em terra de cego quem tem um olho... é zarolho".
José António Baço, jornalista e publicitário


44 - Os dez mandamentos do boçal moderninho

1. Ser expert em música - Todo boçal é crítico de música. À frente do seu "bom-gosto" os outros têm duas opções: ou concordam ou concordam. O cara sabe pouquíssimo do tema, mas tem a autoridade de um Bernstein (quem?) e a sua opinião está acima de qualquer dúvida.
2. Não ler - Em tempos de revolução digital, acha o livro coisa antiquada. Prefere ficar à frente do computador a ver sites. E tem uma explicação "inteligente": os livros são feitos de papel, o papel é feito de árvores. Então, quem não lê é ecologista.
3. Ser vegetariano - Há verdadeiras hordas de criaturas que se dizem vegetarianas. Mas a maioria odeia vegetais e assume dietas à base de alimentos de soja. Esses comedores de tofu sequer imaginam a destruição que a soja provoca no verde do planeta.
4. Estar na moda - Se a tendência são aqueles óculos horrorosos com lentes gigantes, então o cara vai para a rua parecendo um grilo drogado. Se o cabelo deve ser radical, então o otário sai por aí com um ridículo corte à Zé Bonitinho. Usam mais marcas que os pilotos de F1: mas os pilotos recebem para usar, os boçais pagam por isso.
5. Ser zen - Nada está tão na moda quanto ser zen. Mas a maioria sequer sonha o que isso significa. O boçal-moderninho-zen é uma versão achincalhada do achincalhe que era o bicho-grilo dos anos 60.
6. Cultuar o corpo - A academia deve ser uma segunda casa. Pneuzinho e celulite são ofensivos. Estranho: os boçais fazem ginástica, mas não praticam esporte. Na sociedade de consumo, o suor é um produto às avessas: os idiotas pagam para sofrer e suar.
7. Ser expert em cinema - Dentro do boçal habitam spielbergs, fellinis, bergmans. Os caras se julgam oráculos. Acreditam estar sempre um passo à frente e ter conhecimentos que os outros sequer imaginam. Nem sonham que o gosto que têm não é deles: é apenas um gosto de classe, como disse Bourdieu.
8. Ser cosmopolita - O boçal moderninho tem de viajar para o exterior. Gosta de usar expressões estrangeiras: "biutiful pípol", "maifrendji", "bédje bói", "reivi", "chilauti", "tripi", "bai naitchi", "brequifésti" e outras coisas parecidas com o inglês. Mas um idiota em português será idiota em qualquer outra língua.
9. Freqüentar lugares da moda - Os caras só vão aos ambientes freqüentados por pavões-humanos. De preferência, em locais com música bem alta. Assim ninguém percebe que nada têm a dizer.
10. Odiar política - É o maior mandamento para os boçais moderninhos. E todos têm sempre o mesmo argumento: "Nada muda, os políticos são todos iguais". E nem sonham que é por causa dessa alienação que nada muda e que os políticos são iguais.
É como diz o velho deitado: "Dez mandamentos? Mas eles sabem contar até dez?".

José António Baço, jornalista e publicitário


43 - O caga-regrismo é uma droga

O homem se levanta e anuncia:
- Companheiros, estamos recebendo um novo membro. E, como ocorreu com todos nós, vamos tentar ajudá-lo na recuperação.
O outro sujeito, tímido por ser o alvo de tantos olhares, balbucia:
- Obrigado. Já tentei todos os tratamentos, até o exorcismo, mas não consegui me livrar do vício.
- Todos nós já passamos por isso. Mas a cura é possível e a Associação dos Intelectuais Anônimos está aqui para ajudar.
- Obrigado. O vício está destruindo a minha vida. Perdi a família, os amigos, já ninguém consegue estar comigo por causa dessa mania de querer ser intelectual.
- Bem para começar gostaríamos de ouvir a sua história.
- Ora, eu comecei com coisas leves. Uma opinião sobre cinema, outra sobre literatura, mais outra sobre arte. No começo era só com os amigos, na mesa de bar. Mas depois era o tempo todo, com qualquer pessoa e em qualquer lugar
- Não tenha vergonha. É a história de todos aqui
- Bem a dependência foi crescendo. Eu achava que era o dono da verdade e acabei me tornando o pior dos caga-regras. De repente, o vício começou a interferir no trabalho. As pessoas fugiam de mim, já ninguém tinha paciência para me ouvir.
- Sabemos como é isso. A gente acha que tem as respostas e que os outros são todos uns bocós.
- Eu já nem sabia rir. Um intelectual tem de ser sério. Se falava de sexo, era por um viés freudiano. O futebol só podia ser analisado à luz da psicologia de massas. Até a cerveja era motivo para reflexões filosóficas: "o copo vazio está cheio de ar". Enfim, um intelectual chato.
- Desculpe, mas intelectual chato é pleonasmo.
- O pior é que virei boneco de ventríloquo. Todas as minhas frases começavam com "Platão argumenta que ", ou "segundo Kant", ou "de acordo com Nietzsche", ou "para Adorno". Os outros falavam pela minha boca.
- É verdade. E depois agrava porque começa a fase do delirium tremens: os "ismos"
- Isso. Foi quando o vício chegou ao estertor. Eu vivia falando em relativismo, perspectivismo, materialismo, hedonismo, subjetivismo. A palavra que não terminasse por "ismo" não era digna de ser pronunciada.
- O caso é grave. Você está num estado terminal de caga-regrismo. Só há uma cura. Deixe de falar em sexo: faça sexo. Não faça análises sociológicas sobre o futebol: jogue uma peladinha. Evite filosofar sobre a cerveja: beba uma loira com os amigos. No fim vai ver que o mundo dos seres normais é muito divertido.
É como diz o velho deitado: "Ser intelectual? Mesmo que a fêmea bovina exale sons do aparelho respiratório. Ou, em linguagem de gente, nem que a vaca tussa".
José António Baço, jornalista e publicitário


42 - Cadê o Schwarzenegger e o Stallone?

Quando ocorreram os atentados terroristas do 11 de Setembro, em Nova York, pensei comigo:
- Esse Bin Laden tá ferrado. Não demora nadinha e os americanos põem as mãos nele. Ninguém consegue escapar aos soldados, às armas poderosas e às engenhocas de última tecnologia.
Mas hoje, passados quatro anos, ninguém sequer avistou o turbante do homem, que continua por aí a abrir o saco das maldades.
Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque e prometeram capturar Saddam Hussein, pensei comigo:
- Esse Saddam tá ferrado. Não demora nada e os americanos põem as mãos nele. Os caras têm satélites que vigiam tudo ao detalhe. E o Iraque nem é tão grande assim.
Mas passaram meses até que os soldados dos EUA encontrassem Saddam enfurnado num bunker. Demorou mais do que o esperado. Aliás, esse tempo arranhou a credibilidade política de George Bush e Toni Blair, que só respiraram de alívio quando o ex-ditador foi capturado.
Quando as autoridades alertavam para o perigo do furacão Katrina, há poucas semanas, pensei comigo:
- Tudo sob controle. É um país rico e os caras sabem como tratar de desastres naturais.
Mas a tragédia - a destruição de Nova Orleans e os mortos - revelou que país tem a sua porção "terceiro mundo". É lógico, portanto, as pessoas imaginarem que há algo de distorcido na imagem dos EUA. Desconfio que essa imagem não é formada pelo país real, mas pelos filmes produzidos em Hollywood. Tenho a impressão - e imagino que o leitor também - de que se fossem o Schwarzenegger ou o Stallone estava tudo resolvido. O Bin Laden já tinha sido capturado. E o Saddam nem teria liberdade suficiente para a barba crescer. Quem não se lembra do Schwarzenegger no filme "Comando"? O fortalhão invade sozinho um país latino-americano para salvar a filha. Lembro de conseguir contar os primeiros 70 latinos-bandidões mortos, mas desisti. E o que dizer do Stallone travestido de Rambo e a invadir o Vietnã sozinho? O cara dizimou o exército adversário e venceu a guerra que os EUA haviam perdido na realidade.
Mas quanto ao desastres naturais? Sem problemas. Qualquer pessoa com um pouco de memória cinematográfica é capaz de lembrar o espírito heróico para enfrentar - e mesmo evitar - as tragédias. Afinal, os caras conseguem vencer vulcões ("Volcano, a Fúria" ou o "Inferno de Dante"), tornados ("Twister"), tremores de terra ("Terremoto"), inundações ("O Dia Depois de Amanhã") ou ondas gigantes ("O Destino do Poseidon").
Nas telas do cinema os americanos são muito poderosos. Mas há uma pulguinha atrás da orelha a insinuar que isso não corresponde à realidade.
É como diz o velho deitado: "Já assistiu ao filme 'O Declínio do Império Americano'?"
José António Baço, jornalista e publicitário


41 - As revelações de Katrina

Quem diria. O gigante tem pés de barro.
A passagem do furacão Katrina provocou mais do que mortes e a impiedosa destruição de New Orleans. Também pôs a nu as contradições dos Estados Unidos, a superpotência que pretende ser dona do mundo. Foi uma vergonha. Tantas fragilidades - surpreendentes para mim e, imagino, também para o leitor - obrigam a algumas indagações:
- Se os EUA são apontados como a grande "democracia" do mundo, por que, raios, só havia negros e idosos entre os refugiados?
Porque isso de "democracia mais desenvolvida do mundo" é conversa para boi dormir. Se há pouquíssimas décadas havia um apartheid racial (lembremos que até os anos 1960 ainda se apartava, torturava e assassinava negros), hoje a situação evoluiu para um apartheid social. Alguém tem dúvidas depois de ver as imagens pela televisão? Eu, por exemplo, lembro de um idoso que não fugiu por ter apenas US$ 4 dólares.
- Por que o Estado foi incapaz de reagir rapidamente?
Porque o neoliberalismo, que tem dado as cartas em todo mundo desde Thatcher e Reagan, impõe o desmantelamento de tudo o que faça lembrar o welfare state. Ou seja, o serviço público foi totalmente desarticulado e tornou-se incapaz de dar respostas em momentos dramáticos como os de Katrina. E um grande contingente de homens da Guarda Nacional da Louisiana está no Iraque.
- Por que um país com gastos militares que chegam aos R$ 33 mil por segundo deixa boa parte do seu povo à mingua?
Para a administração Bush parece ser mais fácil sair pelo mundo a dar tiros e a distribuir a morte do que cuidar da paz e da vida. É sempre bom lembrar que os pobres vêm aumentando nos EUA desde o início deste século e que 37 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza (números de referência do governo).
- Será que esta catástrofe natural pode levar o governo Bush a repensar a sua política ambiental?
Talvez seja um aviso a ter em conta. Porque os Estados Unidos são responsáveis por 25% da poluição do planeta e a administração Bush continua a dar uma banana para o Protocolo de Kyoto. A ironia é que algumas empresas americanas, sensibilizadas para os danos ambientais, estão na contramão da política de Washington e, por iniciativa própria, decidiram trabalhar na contenção da poluição.
- Está a se cumprir o velho adágio segundo o qual cada povo tem o governo que merece?
Não. Ninguém merece Bush. Há acusações de que o seu governo teria discriminado a região. O democrata Jesse Jackson diz que Bush despreza as cidades onde foi menos votado. O presidente atribui à "fatalidade" o rompimento dos diques que protegiam New Orleans, mas sabe-se que estudiosos vêm alertando para o problema há anos.
É como diz o velho deitado: "É duro ser pobre. É duro ser negro. E piora quando se tem um presidente incompetente".

José António Baço, jornalista e publicitário