Tristes Figuras
por
Edson Athaíde
Crónicas no DNA

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Até breve.

ÀS VEZES IR É TRISTE MAS FICAR NÃO É MELHOR. PARTIR também é quebrar, romper, destroçar o que está mais para o enguiço do que para o que está a funcionar. Partir para outra, como se a outra fosse a amante fogosa, aquela que faz tudo na cama ou na lama, a sedutora despudorada, melhor que a vidinha lá de casa, a vidinha rezingona e despeitada, a vidinha de sempre, mulher obtusa e sem graça, de rolinhos no cabelo, avental sujo de ovo e chinelas gastas. Ir sem data para voltar. Sem saber se vai à ou para, sem saber de nada.

Depois de 13 anos por aqui, estou neste momento (partindo do princípio que hoje é sexta e que está a ler este DNA entre as 10 da manhã e as 10 da noite) dentro de um avião da TAP de regresso ao Brasil, mais precisamente ao Rio de Janeiro. Não, não estou a ir para sempre. Pelo menos essa não é a intenção. Mas quando aqui cheguei também nunca poderia imaginar que viveria quase uma década e meia em Portugal. Que aqui faria tantas coisas a ponto de poder publicar uma «carta de despedida» num jornal. Coloco as aspas pois não se trata de uma despedida verdadeira. Daquelas que alguém que sabe que não voltará escreva para arrancar soluços e choros de quem vai ficar. O plano não é esse. Apenas decidi viver numa ponte aérea continental entre o Rio e Lisboa, as cidades que amo no planeta (e olha que fui bastante infiel na minha procura da cidade perfeita, dando verdadeiras voltas à Terra, fazendo juras de amor eterno a Barcelona para depois abandoná la sem nem deixar um bilhete, tendo flirts passageiros com Nova lorque, namoros intempestivos com Londres, "one nigth stands" com um sem número de localidades). O plano (se é que há um plano) é esse. Quero tornar me no telemóvel de mim mesmo. Está aqui e em outra lugar. Sempre contactável e sempre contactando. Conectado em tudo. Mas completamente unplugged, um cidadão acústico do mundo.

Aí pergunta você: «e o que é eu tenho a ver com isso?» Sei lá. Você é que é meu leitor. De si, acho eu, nunca li nada. Nunca fui mexer nas gavetas da sua vida, nem na lata de lixo da sua alma. Nessa relação completamente desproporcional entre um autor e o seu leitor, não controlo as razécs do seu interesse nos meus textos. Mas suponho que de vez em quando preciso dar uma satisfação sobre o que está a acontecer comigo até para que você entenda melhor o que escrevo.

O que escrevo: durante seis meses publiquei aqui pequenas histórias sobre tristes figuras, habitantes de um universo bem pouco realista. Agora, tal proposta chega ao fim. Daí mais uma despedida. Volto para a semana ou daqui, no máximo, a quinze dias, num novo formato de crónica (mas sobre isso, nada melhor do que o Pedro Rolo Duarte, editor desse albergue espanhol, que publica coisas até mesmo de um cronista como eu, explicar).

Então é isso. Até breve. E um abraço do tamanho do oceano atlântico.


Anónimo

Cidadão anónimo, por acaso, tinha um nome e uma morada e um BI. Era anónimo, mas era feliz. Nunca tinha aparecido na TV, nem respondido aos inquéritos dos jornais sobre a incrível moda dos gelados de banana, nem mandado SMS para os concursos vários que dão bilhetes para festivais de rock de Verão ou elegem a rapariga mais bonita do quarteirão, O cidadão anónimo, além de ser anónimo e feliz, cultivava o saudável hábito da alienação. Não lia Jornais, nem revistas, nem livros. Não que fosse analfabeto, pelo contrário, havia aprendido a ler muito cedo, apenas não queria se chatear com o que quer que fosse, nem com as notícias sobre golfinhos enfermos nem com os comentários de políticos torpes. Não tinha mulher, nem filhos, tinha um cão, teve um gato, queria ter um papagaio e isso já era o bastante, tendo em vista que o basta não precisar ser necessariamente muito, nem grande, nem louco. O cidadão anónimo não dava nas vistas, mais que um personagem, ele fazia parte do cenário, objecto perdido, sem brilho nem mácula, como urna espécie de candelabro barato no castelo do Conde Drácula. Até que o cidadão fez uma grande besteira, ou cometeu um acto genial ou se calhar mais do que banal, mas que caiu no gosto dos media, catapultando o anónimo para o reconhecimento geral, tornando o no nove ídolo dos reformados, dos miúdos rebeldes, dos betos, dos queques e até de algumas tias. Famoso da noite para o dia, o cidadão anónimo deixou cair a sua máscara. Afinal, tinha ideias sobretudo, tinha a sua estranha visão do mundo e propostas concretas para salvar a humanidade ou para ajudar quem tinha problema de estrias. Na boleia da fama, fez um filme e gravou um CD. Participou em anúncios, deu entrevistas na rádio, posou para fotografias ao lado de belas modelos, simulou dois ou três romances com algumas loiras de plantão, até que casou com um morena e foi de lua de mel para o Ceilão. Na volta, deparou se com um dilema: na sua ausência, tendo em vista as necessidades da assistência, outro anónimo havia sido promovido e era o famoso da hora. O anónimo ficou uma fera, saudoso da exclusividade de outrora, poiso outro nem era assim tão anónimo, tendo participado quando jovem de uma cena marada qualquer e por isso sido preso e tido a fotografia publicada num jomal regional ali para os lados de Alenquer. Na briga entre os dois, o público dividiu se. Uma parte preferia a boçalidade de um enquanto outra parte preferia a imbecilidade do outro. A disputa durou algumas semanas, tendo sido resolvida no dia em que em plena televisão o povo pôde participar de uma mega eleição. O resultado foi um empate, o que não era nenhum disparate, tendo em vista que entre os dois venha o diabo e escolha. O que foi feito em seguida. Satanás, chamado para dar o seu voto de minerva, preferiu o anónimo de segunda. Declarou o seu voto enquanto príncipe das trevas, soltando fogo e vomitando pus. Claro está que o resultado era roubado, pois nos bastidores o vencedor já havia vendido a sua alma por pouco mais que três tostões e um lugar numerado no novo estádio da Luz. Caído em desgraça, o cidadão anónimo voltou para a sua vidinha sem graça. Hoje anda por ai, no papel de mais um ilustre desconhecido da praça. Parece um tipo comum, mas só por fora. Por dentro remói um plano de vingança. E mais cedo ou mais tarde cometerá um desatino, provocará uma guerra. Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo vai se manifestar. Votando no partido errado, crucificando um cristo ou simplesmente desrespeitando as leis do transito. E aí, amigo, vai ser o fim do mundo em cuecas. Pois o cidadão anónimo pode ser invisível mas tem a marca da besta eternamente tatuada na testa.


Short Cuts

DIÁLOGO NUM NOTÁRIO

Bom dia. Gostaria de dar um nome ao meu filho.
Pois não. E qual vai ser?
Sei lá, não pensei muito no assunto. Que nomes o senhor tem?
Eu só tenho um: Adalberto. Mas é meu. Sinto muito, não posso emprestar.
Compreendo. Tenho uma tia que se chamava Magali e emprestou o nome para uma vizinha que precisava dele para ir a uma festa. Nunca mais o viu.
Emprestar o nome é um perigo. E como chamam a sua tia desde então?
Chamamos de Garibaldo, que é um nome que o nosso bisavô italiano deixou em testamento.
Garibaldo até é um bom nome. Rima com «caldo» e com «saldo», o que dá um certo jeito. Mas voltando ao seu filho, como é que o vai chamar?
O senhor tem alguma sugestão?
Hum, deixa me ver..
É isso! Muito obrigado! É isso!
Isso o quê?
Hum Deixa me Ver da Silva! Grande nome! Pode registar.


DIÁLOGO AO TELEFONE

Está? É da Linha Tele Sexo Político?
Sim, camarada, estou. Estamos sempre sempre aqui à espera do momento histórico em que as massas nuas vão avançar sobre a burguesia e fazer a grande orgia de classes que a sociedade reprimida tanto precisa.
Peço desculpa, mas preferia falar com alguém de direita. Nunca gostei de comunas. E fico mais excitado a debater números da macroeconomia, numa lógica pouco humanista, com a argumentação a ser interrompida por urros e gemidos.
Mas, camarada, compreenda: a esquerda é que é o verdadeiro centro do prazer. Marx, por exemplo, teve imensas amantes. Proponho, a nível de debate, que tenhamos juntos um orgasmo colectivo, enquanto cantamos o hino da Internacional Socialista, na versão popularizada pelas «Las Ketchup», é claro.
Obrigado, mas dispenso.
Está bem, está bem. Acho uma coisa abjecta, mas, como o freguês tem sempre razão, se faz tanta questão, posso sussurrar ao seu ouvido um plano de privatização de uma empresa de uma área estratégica ou tecer loas aos cortes na segurança social.
Não me parece mal de todo. Sai caro?
Não, está tudo em promoção. As ideologias de direita vivem em saldo.
Já agora, não tem aí alguma miúda que imite a Margaret Tatcher?
Margaret Tatcher? Não, não temos algo assim há décadas. O senhor é mesmo saudosista. Serve um gay com a voz parecida com a do Aznar?
Uau! É isso que eu chamo de pouca vergonha! Pode chamá lo, pode chamá lo!


DIÁLOGO NUM BAR

Já reparaste que toda gente pisca?
Claro. Qual é o problema?
Tenho medo de parar de piscar. Desde pequeno tenho esta paranóia.
Estás a falar a sério?
Ninguém percebe mas piscar é importante.
Óbvio que é importante. Como arrotar é importante. Espirrar é importante. E tirar macacos do nariz é mais do que importante, é delicioso e fundamental.
Não estás a perceber. O espirro é acidente, é uma casualidade. Podes passar anos sem espirrar que nada acontece à tua vida. Piscar não. Tu piscas todos os dias desde que nasceste. Aliás, se calhar até desde antes. Os fetos piscam?
Sei lá, devem piscar. Não há muito o que fazer lá na barriga da mãe. É mais provável que pisquem do que participem em torneios de karaoque.
Eu não disse! Eu não disse!
Não disseste o quê?
Piscaste!
Não pisquei coisa nenhuma. Não sou homem de ficar a piscar para os outros.
Piscaste outra vez!
Se pisquei foi sem querer. Vamos mudar de assunto que esta conversa já está a irritar me.
Repara bem. Tu acordas e piscas. Tu, quando beijas, piscas. Quando comes, piscas. Quando casas, basta olhar para as fotografias da cerimónia, estás sempre a piscar. Não paramos de piscar um só minuto das nossas vidas. E sabes o que acontece quando deixamos de piscar?
Não, não sei.
Morremos. Só o morto não pisca. Morrer é a piscadela definitiva, derradeira, fatal.
Fez se um silêncio na mesa. Já era tarde.
O Sol punha se. Ficaram a olhar um para o outro, a pensar na vida, no mundo, nas coisas. E a piscar, a piscar, a piscar ....


Destinos

LÍGIA PEREIRA DE ALMEIDA E SOUSA, 75 anos, solteira, prima em terceiro grau da Condessa de Ourique, moradora de um T5 no Restelo. Vive na companhia de Tareco, gato, cinco anos, rafeiro, sem parente conhecidos, um presente de Octávio Francisco Magalhães de Almeida e Sousa, 43 anos, "bon vivant" e sobrinho querido. Lígia tem a mania da limpeza e costuma banhar o Tareco uma vez por dia. Neste momento, Ligia está a pôr o Tareco, todo molhado do seu último duche, a secar dentro de um forno de microondas. Tareco ainda protesta mas Lígia não se incomoda. Fecha a porta do microondas. Liga o no máximo. Enquanto isto no Algarve, Paulo Monsanto de Carvalho, quatro anos, mais conhecido como Bebé, está a construir um castelo de areia na Praia do Gigi. Neste preciso momento, Tomás Cardoso de Oliveira, sete anos, sardento, caixa d'óculos e mau carácter, prepara se para chutar o castelo de Bebé. Tomás não sabe, mas Bebé jamais irá esquecer o dia em que o seu castelo foi destruído. O trauma por ver uma obra sua deitada, literalmente, abaixo transformará Bebé num homem eternamente ressentido, incapaz de acabar um curso, formar uma família, fazer uma carreira e que acabará por entregar se ao álcool. Passados 30 anos deste fatídico dia, Bebé encontrará casualmente Tomás, executive bem sucedido, presidente de uma empresa importadora de bananas africanas, numa rua escura, ali pelos lados de Alfama. Não me pergunte porquê mas Bebé estará armado com uma pistola de alto calibre. Bebé reconhecerá as sardas e os óculos de Tomás imediatamente. Tomás mal terá tempo de pedir perdão. Em segundos, estará no chão como o castelo que neste exacto momento ele chuta. Enquanto isto, Alfredo Redondinho Costa, 33 anos, publicitário e serial killer, devora o seu pequeno almoço num café ao pé do Marquês de Pombal. O sonho de Alfredo era ser um artista plástico reconhecido internacionalmente. Porém, devido ao intenso ritmo do seu trabalho, a criar anúncios para vender lixívia de uma marca branca de supermercado ou hambúrgueres de uma conhecida rede de fast food, feitos a partir de restos de carne de porco, cavalo e papel jornal, nunca encontra tempo para dedicar se à arte. Para compensar, costuma assassinar desconhecidos. Costuma matá los usando com uma certa violência um taco de basebol. Depois esfola as suas peles, arranca os seus cabelos e com este material constrói urna instalação na arrecadação da sua casa. Alfredo tem o hábito de escolher as suas vítimas pela manhã no café onde está neste momento. E é por isso que concentra a sua atenção em Vanessa Pires Moutinho, 27 anos, mulata brasileira de compleição física avantajada, nascida Sebastião Pires Moutinho, objecto de uma cirurgia de mudança de sexo na Suécia. Vanessa repara nos olhares de Alfredo e corresponde. Passados alguns minutos trocam os telefones. Alfredo fica empolgado com a possibilidade de acrescentar um tom de pele mais escura à sua já imensa obra prima. Não sabe que Sebastião, digo, Vanessa, antes de se tomar dançarina de um bar de strippers da 24 de Julho, era porteiro de uma boite em Recife. Dona de uma força descomunal, será simples para Vanessa empalar o psicopata com o seu próprio taco de basebol. Surpreendentemente, Alfredo morrerá com dor; mas morrerá feliz. Enquanto isto, Pedro Saldanha Soares, 38 anos, filósofo formado numa universidade francesa, caminha pelo centro da cidade. Está a reflectir sobre a sua tese de doutoramento baseada no conceito da não existência do destino. Pedro defende que o homem, através do raciocínio dialéctico e da argumentação entrópica, pode controlar todos os passos da sua vida. Pedro acredita que o destino não passa de uma invenção das almas ingénuas, uma herança abstracta da origem tribal da humanidade. Pedro está a pensar nisto enquanto atravessa a rua sem perceber que um autocarro da linha Chelas Rossio vem na sua direcção. Joaquim da Silva, 44 anos, ex interno da Casa Pia, motorista, ainda tenta travar o autocarro mas é tarde demais. Enquanto isto, Tareco arranha o vidro do microondas e dá a sua miada final.


Desalmado

«COMPRA SE ALMA. PAGA SE BEM.» LIA SE perfeitamente a frase num pequeno anúncio de Jornal. Fausto achou a proposta interessante. Como nunca foi crente ou poeta, sempre achou a própria alma algo de grande inutilidade. Fausto tinha uma alma como quem tem um par de meias vermelhas com bolinhas azuis, presente de alguma tia gortia e daltónica. Guardava a alma na gaveta das cuecas e poucas vezes tivera motivos para a tirar de lá. Mas agora havia um: dinheiro. Desde que a proposta fosse boa, Fausto iria trocar a alma por uns cobres. Poderia não ser o acto mais católico do mundo, mas Fausto não era católico, nem budista, nem protestante.Atransação foi simples. A maquia era boa. Bastou uma assinatura ao número do contribuinte. Em minutos, Fausto era um homem desalmado. Fausto nem perguntou o que iriam fazer da sua alma. Era um assunto pouco importante. Saiu da loja como bolso cheio notas e um grande sorriso estampado no rosto. Desde então Fausto prosperou. Aplicou o dinheiro na bolsa e ganhou. Com o lucro comprou uma empresa falida e transformou a num grande negócio. Meteu se nos mais arriscados projectos sem nenhum medo, pois quem não tem alma não teme. Tornou se num empresário de sucesso. Deu entrevistas a todos os jornais do país, ficou famoso e cada vez mais vaidoso consigo mesmo. Um belo dia, estava Fausto no seu apartamento de três andares em Nova Iorque quando a morte chegou.
Vim buscara sua alma.
Deve ter se enganado no apartamento. Já não tenho alma há muito tempo.
O senhor não se chama Fausto Matias de Sousa?
Sim, é o meu nome.
Então não há engano algum. Por favor, entregue me a sua alma sem grandes resistências. Tenho hoje uma agenda cheia. Dentro de vinte minutos haverá um atentado no metro, ali pelos lados do Harlem, e só isso vai ser o suficiente para ocupar me a tarde inteira.
Caríssima morte, já disse que não tenho alma alguma. Vendi a faz mais de trinta anos. Se duvida, olhe aqui o recibo.
Hum... Tanto? Pagaram lhe bem. Já vi gante que vendeu a alma por muito menos.
Era uma boa alma, quase sem uso. Praticamente não a tirava de casa. Só tinha ido corn ela uma ou duas vezes à igreja.
Bem, o recibo parece me verdadeiro. Peço desculpa pelo incómodo. Deve ter havido um erro. Desde que instalaram os novoss computadores lá no inferno, aquilo tem se tomado um inferno, se me permite a redundância.
Não há problema. Mas, já agora, uma curiosidade. Se veio biscar a minha alma é sinal de que alguém ainda a tem e esse alguém irá morrer hoje. É possível saber quem é essa triste figura?
Sim, sim. Posso usar o seu telefone?
Claro. Está logo ali naquela mesa, por baixo do Picasso falso.
A morte arrastou a sua foice até o telefone. Fez a chamada. Enquanto isso, Fausto fumava um charuto cubano. O apartamento foi tomado por uma cortina de fumo, tresandando a charuto e enxofre.
Ora bem, senhor Fausto, já descobri o equívoco. Na verdade, a sua alma pertence hoje a um famoso cientista, que mora do outro lado do Central Park.
E ele vai morrer de quê?
Vai escorregar no sabonete e bater com a cabeça na banheira. Vai ser uma grande partia. O tipo estava prestes a descobrir uma vacina para uma epidemia que irá alastrar se pelo mundo dentro de dois ou três anos a que irá matar toda a população do planeta.
Toda a população?
Sim. Vai ser uma trabalheira. O mundo vai ficar reduzido às baratas e aos desalmados como o senhor que como não têm alma não podem morrer.
Somos muitos?
Imensos. Só em Nova lorque há mais de dois milhões.
Pena. Estou a ver que os engarrafamentos vão continuar.
Bom, tenho de ir. Passar bem.
Fausto despediu se da morte. Foi para a varanda e pôs se a olhar a cidade. Estranha era a vida, pensou. Pôs se a reflectir no futuro atroz da humanidade. Era trágico que só por uma questão da troca de uma alma morresse o tal cientista no seu lugar e, com ele, toda a esperança do mundo. Nesse exacto instante, Fausto avistou uma pequena barata ao pé de um jarro de plantas. Olhou fixamente e percebeu que entre os dois havia coisas em comum. A mesma ausência de sentimentos ao mesmo destino: partilhar o planeta só porque eram representantes de duas espécies impuras. Fausto foi tomado então por uma comoção. Sentiu que precisava fazer algo. Não podia aceitar o futuro que se avizinhava de maneira passiva. Caminhou em direcção à barata e sem pestanejar tomou uma atitude que iria marcar todo o resto da sua eterna vida.
Menos uma! gritou ao pisar a barata, sem piedade..


Um e outro

ONDE UM ERA ÁGUA, OUTRO ERA MÃO. UM escorria pelos dedos, enquanto o outro desesperado agarrava em vão. Um não era nada, o outro era tudo, menos tudo o que queria ser. Como eu. Como você. E seguiam juntos pela vida, como se a vida fosse para algum lugar, mas não, não vai. Nem vem. A vida é uma estrada de ninguém. Um era astronauta sem foguete, outro era avião. Mesmo Céu, mesmas estrelas, mas continuavam presos ao chão. O que faz lembrar que pior do que nada ser é ser apenas quase. Pois quase é perto, mas não é lá. Quase é o demónio que engana o homem sério, quase é o melhor atalho para o inferno. É o que faz acreditar que no fim tudo vai fazer sentido. E é aí, amigo, que mora o perigo. Pois nada sentido faz. Nem fez. A vida é sempre de vocês. Um era rebuçado, o outro papel plástico amassado. Um era teorema, o outro resposta na página ao lado. Um era lâmpada acesa, o outro vela sobre a mesa. Um era bom cigarro, o outro não passava de um comentário do ministério implicado na solução final para o problema prioritário do cancro nacional. Onde um era água, outro era mão. Água molha, mão segura. Água verte, mão na luva. Água mole, pedra dura. Tanto bate até que a mão esmurra. Água esguicha, mão partida. Mão doente, água quente. Mão enferma, água cura. Se ao menos à paixão fosse um copo, um até poderia sonhar. Esquecendo o claro risco de, por uma gota, ver o outro transbordar. Onde um era água, outro era mão. Até que no inverno, veio a solução. Água virou gelo. E gelo foi para a mão. E a partir daí puderam seguir juntos pela vida. Como se a vida fosse para algum lugar. Mas não, não vai. Não vai não. A vida só vai até a próxima batida do coração. Ou, no caso, até nascer o Sol na primeira madrugada do primeiro dia do próximo Verão.


Cabeça perdida.

MIGUEL NÃO TINHA MESMO JEITO. ERA UM despistado. Sempre foi. Esquecia coisas nos sítios, trocava os nomes das pessoas, apanhava autocarros errados. No dia do casamento entrou numa igreja que não era a sua. Já estava a caminho do altar quando reparou que aquela rapariga de branco que lá estava era um bocado diferente da Laurinha, a sua noiva. A Laurinha era morena e aquela era loira. Ou será que a Laurinha é loira e eu nunca reparei?», pensou. Na dúvida, quase casou com aquela mesma. Mas noutro dia o Miguel exagerou. Perdeu a cabeça. Literalmente. A princípio ninguém notou. Era tão despistado que mais cabeça, menos cabeça não fazia lá grande diferença. O primeiro a dar pelo facto foi o seu chefe. Chamou o à sua sala.

Miguel, Miguel... Que se passa contigo? Estive a reparar que andas com a cabeça perdida.
Como assim, Dr. Sousa?
Miguel, não tenta disfarçar. Há dias que estás sem cabeça para o trabalho.
Oh! Meu Deus! O doutor tem razão! Onde será que está a minha cabeça?
Eu é que sei? Ah, Miguel! Não tens mesmo jeito...

O problema é que Miguel não sabia onde estava com a cabeca. Procurou a por todo o escritório, mas nada. Tentava recordar se onde a havia visto pela última vez. Na quarta feira, sim tinha sido na quarta pela manhã. Tinha feito a barba e lembrava se perfeitamente de ter visto a sua cara no espelho. E, se havia cara, havia cabeça. Mas depois disto, tudo ficava um pouco confuso. Foi para casa.

Laurinha!
O que foi, Miguel?
Viste a minha cabeça por aí?
A tua cabeça?
É Devo tê la deixado por aí e agora não a encontro.
Já olhaste no quarto das crianças? Se calhar apanharam a tua cabeça para brincar e deixaram na lá naquela confusão. Ou a Dona Rosa, anteontem, quando fez a limpeza, a deitou fora.
Será? A Dona Rosa não ia fazer isso. Afinal era uma cabeça. A minha cabeça. Ela não ia deitar fora uma coisa que tinha utilidade?
Utilidade? A tua cabeça? Ah, Miguel, não tens mesmo jeito!

Laurinha deu de ombros e foi fazer o jantar. Na verdade, até achou que ele ficava melhor assim. Pelo menos não tinha mais que beijá lo todas as manhãs e arranhar o rosto com aquela barba malfeita. Mas o Miguel não se conformava. Aquilo era mesmo uma dor de cabeça. Ou não? »Dor de cabeça sem cabeça?», Miguel já não tinha o que pensar. O Dr. Sousa acabou por concordar que desde que o Miguel cumprisse os horários e fosse simpático com os clientes, tanto lhe fazia. O Dr. Sousa achava se um homem moderno, sem preconceitos. Não ia mandar embora um funcionário tão antigo só porque um dia ele havia perdido a cabeça.
O tempo foi passando. Um dia o Miguel estava a remexer num armário à procura do BI, »aonde foi o que o meti?», e encontrou a cabeça atrás de uma pilha de cuecas. A Dona Rosa jurou que não foi ela, mas aquela também era um pouco despistada. Bom, mas o importante é que a cabeça estava lá. Um bocadinho arranhada e a faltar uns dentes, mas ainda assim era uma boa cabeça. Miguel
jurou que a partir daí iria tomar um pouco mais de cuidado com as suas coisas. Laurinha deu de ombros e foi fazer o almoço. O problema é que a cabeça já não encaixava mais no pescoço do Miguel. Causava incómodos, pendia para o lado, às vezes saltava para fora e caía no chão. Quando isso acontecia no cinema era uma chatice. Toca a procurar a cabeça e a estorvar as pessoas. Até que há duas semanas o Miguel pôs a cabeça ao contrário e sentiu se confortável. Deixou a assim. Laurinha, como sempre achou natural, deu de ombros e foi fazer o pequeno almoço. Mas nada mais foi o mesmo. Miguel passou a chegar em casa mais tarde, passou a beber, atendia telefonemas misteriosos de madrugada. Laurinha desconfiou que algo estava errado. Ontem, ela teve a certeza. Foi guardar o casaco do Miguel e encontrou um longo fio de cabelo louro. E ela, afinal, era morena. Desesperou se. Fez as malas, apanhou as crianças e foi chorar para a casa da mãe.

O que foi, minha filha?
Uma desgraça, mãe, uma desgraça! Eu descobri, eu tenho a certeza! Oh, meu Deus, como eu fui cega! O Miguel está de cabeça virada!
Sim, filha, eu já vi, e daí?
O Miguel está de cabeça virada para outra mulher!

ooooooooooooooooooooooooooooooooooo

Realismo Mágico.

ELE É UM RESPEITÁVEL EXECUTIVO BETINHO. Ela uma respeitável octogenária. A acção decorre toda dentro de um elevador.

Que horror!
O que disse, minha senhora?
Que horror! Que horror! Um traque!
Um quê?
Não se faça de desentendido. O senhor sabe multo bem o que é um traque.
Claro que sei o que é um... um..., perdoe me a expressão, um traque.
Tanto sabe que deu um. Incrível, não se pode mais andar num elevador e vem logo um anormal a dar traques. No meu tempo...
Minha senhora, por favor, acha que eu tenho cara de quem dá traques.
Ah, quer dizer que o rapaz nunca dá traques?
Claro que dou... Quer dizer, não dou muitos... Desculpe me, é um assunto embaraçoso de se tratar.
Embaraçoso é estar num elevador com um mau cheiro destes.
Sinceramente, não fui eu que dei coisa alguma.
Se não foi o senhor, quem foi?
Foi... Foi... Foi a senhora, pronto. É isso mesmo, foi a senhora.
Ah! Além de javardo é mentiroso. Que horror! Que horror!
Não vejo piada nenhuma em debater este assunto. Que situação! Já agora este elevador está a levar séculos para chegar ao meu andar.
Não vai chegar tão cedo. O autor é um principiante. Não tem controlo sobre a lógica narrativa.
Como?
Por favor, não se faça de ingénuo. Acredita mesmo que seja possível uma octogenária respeitável como eu estar a falar sobre traques e ainda mais num elevador que nunca chega a lugar nenhum? E óbvio que estamos metidos num conto de um autor inexperiente.
A senhora é louca!
E o senhor é parvo. Qual é o seu nome?
O que é que tem o meu nome?
Não importa. Responda me, qual é o seu nome?
É... É... É... Que coisa! Não me lembro do meu nome?
Bingo! O senhor não se lembra do seu nome porque o senhor não sabe o seu nome. O autor não pós o seu nome na introdução desse conto. E essa a explicação.
A explicação, minha senhora, é que eu estou nervoso com esta conversa, é por isso que eu não lembro do meu nome. A senhora é louca, este elevador é lento, aqui faz um calor insuportável e eu não estou a passar bem.
Aposto que comeu feijoada ao almoço.
Por acaso comi.
Eu sabia! Vi logo pelo traque.
Oh, não! Esta história do traque outra vez?
Quer queira ou não, é essa a nossa história. Repare bem: somos duas personagens estereotipadas. Enquanto fios condutores de um drama, somos rasos como um pires. Como diriam os ingleses, somos «flats. Qual é o nosso passado? Qual é a nossa real motivação para estarmos num elevador? Você é casado ou solteiro? Eu devo ser viúva. Velhinha octogenária num texto cómico só pode ser viúva. Mas por que tudo é encaminhado para que eu pareça uma louca desvairada? Não tente responder. Você não sabe. Confesse. Nem eu. Que azar! Caímos nas mãos de um autor incompetente. E muito hesitante. Ele nem deve saber como é que vai acabar essa história.
Eu sei onde é que vai terminar. Vai terminar comigo a sair do elevador e a chamar um manicómio para interná-la!
É parvo! Não vai fazer nada disso, porque a porta do elevador nunca vai se abrir. Se o elevador se abrir o conto acaba.
Minha senhora, assunto encerrado.
Então está bem. Ficarei calada. Vamos esperar que a porta se abra.
Óptimo. Hum, hum...
...
...
...
...
Que demora!
Não disse?
Oh, meu deus! Será que a senhora tem razão?
Meu filho, eu sou uma octogenária. Não sabe que enquanto arquétipo os velhos representam a sabedoria num mundo simbólico?
E será que não há uma maneira de sair desse pesadelo?
Bem, eu tenho uma teoria. Imagino que a nossa história acabaria com um de nós a assumir a autoria do traque. Como esse é o nosso único «plot» narrativo, o autor seria obrigado a dar o conto como encerrado. Não sem antes introduzir um elemento qualquer tipo realismo mágico, uma coisa típica desses escritores moderninhos.
Então, está bem. Pronto, fui eu que dei o traque! Satisfeita? Fui eu, sim! Sou um betinho depravado que come feijoadas e passa a vida como um sátiro a dar traques nos elevadores da cidade. Além disso, uso roupa interior feminina. Pronto. Não vale mais a pena esconder a verdade. Fui eu que dei o traque, sim senhora! Dei e daria outro! Daria não, dou! Pruuuuuum!
Ah, ah! Eu sabia! Porcalhão! E eu aqui a ter que inventar esta história toda de literatura e personagens só para poder apanhá lo!

Foi nessa hora que a porta se abriu e o elevador foi invadido por uma legião de pigmeus canibais famintos. Do betinho e da octogenária só sobraram os ossos. E fim.


Doida de mais.

... A CULPA É DELE, SOU INOCENTE. EU SEMPRE
fui assim, Senhor Polícia, maluca. Dei em doida ainda em miúda. Ele, o Pacheco, sabia. E, não casou enganado. No primeiro dia em que saímos, disse lhe: "Pacheco, cuidado comigo, que eu não sou boa da cabeça'. Se não acreditou o problema é dele. A minha mãe também era chanfrada. Castrou o meu pai. E, cortou a pila dele e deu aos cães. O coitado até hoje faz xixi por uma palhinha de borracha. Rá, rá, rã! E sabe o que ele tinha feito, Senhor Polícia? Nada. E, minha mãe olhou para ele e disse: "Peste, marido inútil, não fazes nada. Todas as minha amigas são cornudas e tu aí a fazer palavras cruzadas. Não tenho assunto para contar. Peste, vais pagar!" E cortou lhe a pila. Mereceu. Os homens não valem nada. A prova é o Pacheco. Matei e matava outra vez. O senhor diz que foram sete e sete facadas. Rã, rã, rã! Por mim, dava mais umas vinta Sou maluca, sempre fui. Quando vi o desgraçado com aquela loira falsa, pensei: "Dei em doida'. E dei mesmo. O Pacheco era um descarado. Uma loira falsa, imagine. Se fôsse verdadeira não fazia nada. O que eu não suporto é mulher que pinta o cabelo. Uma vez disse ao Pacheco: "Mulher que pinta o cabelo tem parte com o demo". Ele deu de ombros. O Pacheco tinha essa mania, dava de ombros, onde é que eu estava com a cabeça quando casei com aquele imprestável? Eu, que era tão bonita. Olha para o meu corpo, Senhor Polícia, olha para os meu peitos. Põe a mão neles. Pode pôr a mão, não tenho mais homem, sou viúva. Isto, está a ver? São durinhos. Peitos duros, sempre tive, desde miúda. Como é que uma mulher com os peitos duros foi casar com um homem tão feio? O Senhor Polícia viu a cara dele? E, percebo, está difícil de ver, mas não tenho culpa, a faca é que era muito afiada. A culpa é dele, linha a mania de afiar as facas. Acho que ele sempre soube que teria este fim. Afiava as facas como a dizer: "Celeste, mata me que eu vou sair com uma loira falsa". E saiu. Apanhei os dois na porta do cinema. O Pacheco nem gostava de cinema. Aliás, o Pacheco não gostava de nada, homem sem piada estava ali, Senhor Polícia Eu falava: "Pacheco, vamos ver as marchas?' E ele dizia: «Ah, Celeste, não gosto, vai tu sozinha que eu fico aqui a afiar as facas'. Que homem chato! Pois hoje, estava eu a sair do Lidl, quando vi o Pacheco e a loira falsa na porta do cinema. Comiam pipocas. O Pacheco era um safado, sabia que não podia comer pipocas, aquilo é só manteiga, o médico já havia avisado que ele tinha o colesterol alto. Fiquei tão nervosa que quase dei uma bolachas ali mesmo. Mas depois pensei: "Celeste, tu és doida, dar bolachas é pouco, tens mais é que matar". E fui para casa. Os miúdos estavam a ver TV. Pensei em matá los também, adoro ver criança morta, quando eu era miúda morreu o filho da vizinha, fui ao velório e achei tão bonito o defuntinho... Mas desisti de matá los. Criança para morrer grita muito e eu estava com uma dor de cabeça insuportável. Levei os miúdos para a casa da vizinha, a Dona Soraia, penso que ela é árabe, terrorista, é outra que não vale nada. E fui fazer o jantar do Pacheco. Fiz sopa e pus vidro moído. Eu sou assim, Senhor Polida, cruel. Rã, rã, rã! Aí o Pacheco chegou. Servi a sopa e fiquei a olhar. Comeu tudinho. Nem desconfiou. Homem burro. Depois começou a passar mal. Disse: Celeste, a minha úlcera estoirou!' E caiu no chão. Foi quando eu saltei sobre a barriga dele e comecei a dançar o twist. Sempre fui boa no twist Foi tão gostoso. Não dançava há séculos. O Pacheco começou a vomitar sangue. O homenzinho virou um vulcão escarlate. Eram tripas, pipocas, esparguete por todos os lados. Rã, rã, rã! Não queria morrer o safado. Gritou: "Celeste, és louca!' Finalmente, percebeu, o trombudo. Foi aí que eu olhei bem nos olhos dele e vi a morte chegar. Nos olhos do Pacheco. Depois do twist E não é que a morte é linda? E o Pacheco, que sempre foi feio, até parecia o Alain Delon. Então, estava eu ali a dançar na barriga do desgraçado, naquela poça de sangue, quando ele começou a enrolar a lingua e a dizer: "Ceeeeeleeeeesteeee, euuuuu adooooooroooo teeee!' Só não perdi a cabeça porque nunca tive. Foi comer pipoca com a loira falsa e agora dizia que me adorava. Apanhei a faca e comecei o serviço. Dei facadas a torto e a direito. Rá, rã, rã! Foi divertido. Aí ele morreu. De vez. Mas não fossem vocês chegarem, aposto que foi a Soraia que chamou a policia, não foi?, sabia, não disse que ela não prestava?, não fossem vocês, continuava a matar o Pacheco, rã, rã, rã!, sou doida, Senhor Polícia, sempre fui, eu dizia para o Pacheco: "Cuidado com mulher que pinta o cabelo, olha que eu não sou boa da cabeça, vamos ver as marchas, não como manteiga", não quis me ouvir, a culpa é dele, sou inocente, põe a mão aqui nos meus peitos....


Inconstitucional

INCONSTITUCIONAL ERA UM REI TRISTE. Disputava com o seu irmão Paralelepípedo o trono do País das Palavras. Era uma refrega sangrenta. Com um incontável número de línguas mortas em combate. Houve mesmo palavras que de tão estropiadas caíram em desuso. E crescia cada vez mais, naquele empobrecido país, a quantidade de blasfémias e termos chulos. Inconstitucional preocupava se. Paralelepípedo perdera a última batalha mas não a guerra. Paralelepípedo era duro como uma pedra. E, junto com a sua amante chamada Quimera, a despeitada marquesa careca, tramava o seu regresso ao poder com um plano de guerrilhas, executado por um grupo de mercenários chamados Gírias. Segundo rumores, o Reino dos Números ajudava o de maneira camuflada, infiltrando zeros, disfarçados de ós, em palavras dúbias como Orangotangos e Quiprocós.
Os números desejavam destruir o País das Palavras. Eram invejosos. Sempre foram ricos, somavam e multiplicavam cifras ao infinito, mas sabiam que as palavras quando queriam eram muito mais simpáticas. Os números odiavam principalmente o Exército das Poesias, pois sabiam que era o mais poderoso. E que as Poesias usavam armas ardilosas, eram dificeis de atacar, ao colocar as palavras foram do habitual contexto. Para ter uma ideia, uma vez os números despejaram uma carga na simplória palavra «cesto», sem saber que fazia parte de um poema de um desconhecido escritor bissexto. Quando perceberam já era tarde, o «cesto» afinal representava o próprio universo, num sentido, é claro, pouco concreto. Não foram poucos os pares e os ímpares que no ataque desapareceram, como que engolidos por buracos negros. Com tantos problemas, Inconstitucional sentia que algo estava errado. Qual seria o futuro do seu país? Como não poderia deixar de ser, ele era um rei letrado. Mas o que aprendera do passado já de nada servia. Os tempos eram outros. Recordava se amargurado de antigos aliados. Suspirava de saudades por Aristóteles e Platão. Os gregos, esses sim, é que eram bons. Mas o que fazer num tempo em que dominavam os fundamentalistas do Calão, uma estranha religião, um tempo em que nada mais era estupendo, glorioso, magnífico, no máximo era giro, era fixe. E o pior, Inconstitucional já não tinha mais sequer adjectivos bons para expressar o tamanho da sua tristeza. Se ainda mantinha a realeza era porque os adjuntos, adverbiais e nominais, ajudavam. Mas eram cada vez maiores os problemas de conjugação. Inconstitucional estava diante do espelho a reflectir, metaforicamente falando, sobre a situação, quando o palácio foi invadido por uma horda de ícones chineses, liderados por um indecifrável anagrama alemão. Inconstitucional quis resistir mas fora abandonado por todos. Só lhe restava a fidelidade da sua secreta amada Esperanto, mas que era obviamente uma língua inútil. Desesperado, ainda tentou escrever uma carta de suicida mas faltaram lhe palavras. E assim morreu Inconstitucional. Ao lado do seu corpo foi encontrado apenas um papel com o seu nome, umas aspas e um ponto final. •


O pato

ELA ERA A RAINHA DA TELECIJLINÁRIA. ELE apresentava o telejornal. Ela conquistava as audiências da manhã com bolos fabulosos, pastéis e rissóis. Ele ganhava a vida a falar com ar carrancudo sobre guerras, epidemias e defuntos. Ela acordava cedo, depois dos desenhos animados. Ele deitava se tarde, nunca antes do fecho de emissão. Ela era divorciada de Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo, aquele que apresentava números sem graça no telecirco de domingo. Ele tinha várias namoradas, incluindo a enfermeira chefe da série sobre médicos e a rapariga bonita da meteorologia. Os dois encontraram se por acaso num talk show nocturno que debatia um tema qualquer obscuro. Ela sentia se só. Ele demasiado acompanhado. Depois do programa foram tomar uns copos. Ela falou do dia em que em frente às câmaras matou um pato. Ele de como era amigo de secretários de estado. Ela reparou que ele estava magro. Ele de como ela ficava bem com aquele penteado. O empregado avisou que o bar ia fechar. Ele fez questão de pagar a conta. Ela convidou o para jantar.
Olá, cheguei cedo?
Não. Entre e fique à vontade.
E a sua amiga da SIC Mulher não veio?
Desistiu. Algum problema de em vez de três sermos dois?
Prefiro assim. Detesto multidões.
O jantar está quase pronto.
Hum, que cheiro bom.. O que é?
Pato assado. Estava a falar do seu perfume.
Ah... Chanel n. 5.
Mal possp esperar para prová lo.
Calma. Não vá rápido demais. Há muito que não recebo um homem em casa.
Estava a falar do pato.
Ele comeu como um rei e repetiu três vezes. Ela bebeu demasiado vinho. Ele revelou que estava cansado de apresentar o telejornal, que queria ser valorizado como um bom jornalista e não apenas mais um rosto bonito. Ela não ouviu. Estava concentrada naquela covinha charmosa que ele tinha no queixo. Foram para a cama.
Foi bom para ti?
Sei lá, bebi demais. Não penses que sou dessas.
Não penso nada. A noite foi óptima. Há muito que não comia um pato como esse.
A receita é da minha avó. O Asdrúbal não gostava.
Ele é um palhaço.
Não fales mal do Asdrúbal que eu não gosto.
Estava apenas a citar a profissão dele.
O Asdrúbal quando comia em casa nunca repetia.
E além do pato do que mais ele não gostava?
De mim. Hum... Posso repetir?
No dia seguinte ela estava de cabeça tão perdida que durante o seu programa ensinou a pôr pimenta numa receita de pudim flan. Ele estava tão feliz que teve um acesso de risos enquanto lia a notícia da demissão de um ministro. Ele passou a jantar na casa dela todas as noites. Os sinais da paixão eram visíveis em ambos. Ele cada vez mais gordo a apresentar o telejornal. Ela com umas olheiras enormes em seu progmama matinal. Ele terminou com as outras namoradas. A rapariga bonita da meteorologia tornou se numa triste. Só falava de tempestades e de nuvens sombrias a sobrevoar o litoral. E a enfermeira chefe passou a deixar morrer um paciente atrás de outro. Um dia, ela foi surpreendida pela visita do Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo. Asdrúbal, apesar do sorriso vermelho pintado na cara, chorava. Dos seus olhos saíam esguichos de lágrimas. Andava pelo apartamento a arrastar os seus longos sapatos, a derrubar coisas, a levar tombos involuntários. E a dizer, por gestos descoordenados, que estava arrependido e que queria voltar. Ela, sensibilizada, perguntou se ele não queria ficar para jantar. Fez lhe um teste, assou um pato. Asdrúbal comeu com prazer. Repetiu seis vezes. E mais tarde na cama, idem.
Temos que terminar.
O quê?!
O Asdrúbal. Ele pediu para voltar.
Aquele palhaço?
A profissão dele não importa.
Mas quem falou de profissão? Ele é um palhaço mesmo.
Não fales assim. Estou confusa. Acho que ele merece uma segunda oportunidade.
Não posso crer. Mas o que ele faz por ti que eu não possa fazer?
Ele faz me rir.
E foi assim que tudo terminou. Sem os pratos saborosos que ela lhe fazia, ele voltou a emagrecer. Cadavérico e feio, ganhou respeito e um prémio como jornalista do ano. Casou se com a rapariga da meteorologia, que desde então passou a só prever um bom tempo. Ela abandonou o programa de culinária e passou a cozinhar apenas em casa. Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo, pintou o cabelo de ruivo e passou a fazer números com imensa piada. A enfermeira chefe mudou se para uma telenovela venezuelana onde agora faz de freira. E o pato? Está óptimo, obrigado..


Amor na multidão.

ELES SE ENCONTRARAM NO TEMPO EM QUE o mundo estava cheio. Lembra se? Naquela época havia gente por todos os lados. Cada um era para o outro um verdadeiro emplastro. O mundo parecia, às vezes, uma imensa Tóquio. E Tóquio havia afundado com o peso dos japoneses. Com o mundo tão cheio não havia privacidade. Em cada canto da cidade, em cada casa, em cada quarto havia sempre vinte, trinta, quarenta pessoas a disputar uns parcos centímetros. O mundo estava cheio e eles não podiam estar a sós nem só como seu amor. Foi num elevador. Nas pequenas colunas do tecto, Aretha Franklin cantava I say a line prayers. Talvez tenha sido aquele leve toque no braço ou a maneira dela respirar, o facto é que ele, se houvesse espaço, teria caído para o lado no exacto instante que se apaixonou. Com ela não foi diferente. Muitos homens já haviam passado pela sua vida mas não como aquele. E, de repente, era como se não houvesse mais nínguem na sua frente. Saíram do elevador e foram para o lounge do hotel. Ao fundo, sob a luz de um lustre cor de mel, "Garota de Ipanema". era executada por uma pianista claramente derrotada pela vida. Não deixava de ser irónico uma música tão ensolarada ser tocada por pessoa tão sombria. Ele lhe fez um sinal com o olhar. Ela respondeu levantando ligeiramente a pestana. E, isso é que foi bacana, dali teriam, se possível fosse, ido directamente para a cama. Mas o mundo estava cheio, lembra se? O sexo era difícil. Só os mais desinibidos conseguiam fazer de conta que não estavam ali a serem vistos, durante o acto, por completos desconhecidos. Há muito que já não havia portas. Todos viviam como em vidros de compota, agarrados uns nos outros e, como é óbvio, sozinhos como ninguém. Mas a vontade era tanta que eles se amaram mesmo assim, sob o olhar de reprovação de cinco freiras que rezavam e diziam amen. Depois do amor dormiram, de pé como era o costume, pois já não havia no planeta espaço para as camas. Dormiram e sonharam com pradarias virgens, onde corriam cavalos selvagens. Com nuvens fofinhas onde se podiam deitar. Com praias desertas onde podiam rolar pela areia como num filme americano antigo, daqueles que passam de madrugada na televisão. Mas a verdade é que não, tudo aquilo eram apenas sonhos. Quando acordaram já trinta pessoas reclamavam para que eles fossem um pouco mais para o lado pois queriam passar. Ela ainda pensou que ele iria agarrar na sua mão e tentar fugir dali, correndo contra a multidão. Ele, um espirito prático, despediu se em silêncio, deixando se levar pela corrente. Ela, como uma demente, chorou desesperada enquanto ele sumia no meio daquele turbilhão de gente. E pensou, horas depois, resignada, que certa estava a sua avó que sempre que podia dizia "minha filha, antes só do que mal acompanhada"...


O Poema Feliz

O POEMA FELIZ ERA DE AMOR. QUE, É CLARO, rimava com a palavra flor. Como todos os poemas felizes, era estúpido, envergonhado, deserdado pelo próprio autor. Durante anos viveu escondido num caderno mas, como nenhum segredo é eterno, um dia foi descoberto por um literato que tirou o Poema Feliz da sua aldeia e o levou para a cidade, com o objectivo confesso de exibi lo numa grande feira. O Poema Feliz não era inteligente, diria mesmo que, apesar do grande coração, tinha pouca cabeça. Confrontado com a súbita fama, reagiu de estranha maneira. Em pouco tempo podia ser visto acompanhado de críticos, artistas, intelectuais, políticos e rameiras. Comprou roupas de marca, passou todas as marcas, acreditou poder ser modelo, sem perceber que o que hoje é belo amanhã é feio. Na boleia da fama, frequentava os bares da moda, dava entrevistas, aparecia na televisão, sem perceber que os seus novos amigos de borga, não eram amigos, não eram felizes, eram a sua perdição. O Poema Feliz, que fora um ingénuo, passou a beber demais, a fumar demais, a cheirar coca. Estava sempre trémulo pelo Bairro Alto à procura de drogas. Aos poucos o seu estilo mudou. Esqueceu se que era um poema. Soberbo, imaginava se prosa. E nem reparou quando a flor da sua poesia murchou. Então, porque já não tinha piada, porque já não era um poema, porque já não era feliz, foi abandonado por todos a troco de nada, a troco de um novo poema que abusava da letra e, isso que era de mais, praticamente não tinha vogais. Daí para a prostituição foi um pulo. Vendeu as suas rimas para um trovador caolho e chulo. As metáforas, perdeu nas Docas de Alcântara numa rusga onde uma navalha cortou do seu corpo a palavra esperança. O Poema agora era uma triste figura, dormia na rua a pensar, nas noites sem Lua, em praticar um haikai. Foi quando o Lar do Poema Abandonado o recolheu e ofereceu lhe tratamento. Passado um tempo, o Poema era outro. Recuperado, hoje vive numa vila ao sul do Tejo. Mas o Poema sabe que Feliz nunca mais. Perdera aquele seu ar de criança, que alguns chamavam pateta, mas que era apenas a opção de um esteta inábil com as palavras mas cheio de amor. E quanto à sua flor, definitivamente morreu, nunca mais germinou.


PAUL NEWMAN ERA EM PRETO E BRANCO.

Marion Brando era em preto e branco. João era em preto e branco. Ana era colorida. James Dean era em preto e branco, como todas as coisas deveriam ser. João, por exemplo, era em sépia quando queria, mas nunca abusava do efeito, sabia que, mais cor menos cor, um homem poderia se pôr a jeito. Já a Ana tinha a mania da policromia. João não era um problema de impressão, era assim por opção, decidira ainda miúdo não ligar para as cores do mundo, não ser verde como a relva, nem azul como um sonho, preferia ser a imagem no espelho de um radical daltónico, retrato velho dé um saudoso crónico. Ana era pastel às quartas e quintas, ton sur ton segundas, terças e sextas, berrante aos domingos e aos sábados irreal arco íris. Bogart era em preto em branco, João também usava sobretudo e sobre tudo não tinha mais que uma pálida opinião. João era um tipo discreto, até meio cinzento, daqueles que não gostam de festas, não vão a bailes, usam galochas no invemo e tratam doenças com unguentos. Ana era daquelas que se faziam notar, com suas roupas de hippie, cabelos ao vento, sandálias no ar. Era daquelas que se alimentam de risos, que já nasceram sem sisos incapazes de pensamentos sombrios e torpes, que acreditam num mundo em technicolor, em amores de cinemascope. João e Ana se encontraram por acaso numa exposição de pintura. João tinha ido interessado numa série de gravuras feitas em carvão. Ana, claro que não, só tinha olhos para um certo pintor mipressionista. O certo é que, como num cliché de uma gráfica antiga, os opostos se atraíram, não fosse cupido um irresponsável artista. E assim, Ana e João se apaixonaram em frente ao quadro daquele espanhol cubista. No início a coisa até não correu mal. Ana pintou o sete com a alma de João. E ele imprimiu sombras na aguarela da amada, o que só tomou as suas cores ainda mais bonitas. Mas, há sempre um mas, com o tempo aquela paixão enfim desbotou. João deixara de ser genuíno, já não era preto e branco como a opinião de um menino. João tornara se garboso como um pavão e passou a ter casos com raparigas de cartazes de oficina. Ana ainda saiu com dois ou três cromos da bola só para fazer ciúmes mas mal conseguia disfarçar o seu negro azedume. Desesperada, viciou se em tinta da china enquanto João andava enrolado numa lasciva e falsificada serigrafia. Um dia, vermelha de raiva, verde de inveja, amarela de desespero, Ana morreu de overdose com uma caneta tinteiro. João, em lágrimas, percebeu o erro mas era tarde de mais. Pálido com a perda do amor, ele que permitira se enfeitiçar pelo mundo da cor, deixou de se armar em bom, deu em maluco e fundou uma brigada terrorista que explode os cartazes de rua da Benneton.


O endireita

ELE ERA UM ENDIREITA, GOSTAVA DE ENDIREItar o mundo, o tudo, o todo. Gostava mas não conseguia. E portanto endireitava colunas, deixava erecto quem chegava no seu consultório feito num oito. Por força do oficio, acostumara se a sentir se como um palhaço de circo, daqueles que arrancam sorrisos até de quem está cheio de dor. Cada cliente era um número, uma cena, um sistema. Cada coluna, um palco, um picadeiro, um teorema. Em seus sonhos secretos, imaginava se um mago capaz de transformar a gorda com a marreca numa ginasta romena hirta e bela. O reformado reumático, após uma massagem, saltava da maca como nadador salvador de um colorido parque aquático algarvio. A grávida problemática, dona de um ar pesado e doente, tornava se uma lasciva dançarina do ventre, daquelas que seduzem serpentes e encantam meninos. Ele era um endireita dos corpos alheios, só não conseguiu endireitar o próprio destino. Um dia o primeiro presidente do mundo caiu duma escada durante uma gala e magoou a espinha. Ficou preso numa cama dum quarto sem janelas, onde o Sol não entrava, nenhum pássaro voava e nem uma flor nascia. O presidente perdeu o contacto com o mundo. O que acontecia fora do quarto passou a ser apenas as folhas de um relatório diário lido num tom monocórdico por um mordomo com um sotaque húngaro que, por acaso, era um anão. E o presidente, que já havia dado a volta ao planeta a bordo de um balão, contentava se em dizer quem sim ou que não, sem poder levantar se do seu leito nem que fosse para beijar a mão de uma doce princesa ou abraçar um amigo do peito. E ele que antes era um governante alegre, sábio e justo, passou a tratar o planeta com desprezo e escárnio. Tomou se um déspota rezingão que cuspia por cada narina um trovão, fazendo do mundo um lugar obscuro. O mordomo anão era uma boa pessoa e gostava do presidente, apesar de ser tratado sempre com extrema desfeita. E um dia, visitando uma tia na Hungria, soube da fama do endireita. Contratou os seus serviços na esperança dele curar o presidente do mundo e com isso acabar com aquele triste absurdo. O endireita vestiu a sua roupa de missa e foi até a casa do presidente tratar da tarefa. Assustou se como que viu. No lugar do antigo senhor do planeta, líder sereno e impávido, encontrou um homem pequeno, contorcido e inválido. O trabalho não foi fácil. O endireita passou sete dias e sete noites a tentar endireitar o enfermo. Não comeu, não bebeu, não dormiu. Atirou se numa luta sem fim contra a coisa mais torta que um dia viu. Gritou, blasfemou e até sussurrou algo que pareceu vagamente um puta que o pariu. Foi quando o presidente finalmente reagiu. Num movimento brusco, levantou se da cama e deu três pulinhos. Depois rodopiou pelo quarto como se o mordomo anão tivesse um violino e tocasse uma valsa. E, sem sequer pestanejar, deu um salto mortal e fez o pino. O endireita de tão cansado só conseguiu esboçar um sorriso. Caiu para o lado e deu o seu último suspiro, com a certeza de ter feito o certo, o justo, o recto. Endireitara o homem mais poderoso do mundo. E quem sabe com isso o futuro de todos. Nem viu quando o presidente, num estabanado movimento, tropeçou no anão, caindo de cara no penico, morrendo afogado no próprio excremento. O mordomo, ao contemplar a cena final, pensou em chorar, não sem antes formular a moral desse conto triste e porco: "Afinal, mundo que nasce torto, morre torto".


Metamorfose

NAQUELA MANHA, OCTÁVIO ACORDOU E DEScobriu que se tinha transformado num telefone celular. Ficou, obviamente, desesperado. Tentou falar com Mirtes, a sua mulher, que estava na casa de praia com as crianças, mas foi impossível. Ela tinha o telefone ocupado. Ligou para o trabalho e avisou que estava doente. «Oh, meu Deus! O que será de mim?, perguntou se, enquanto andava pela casa atrás de uma ficha para recarregar a bateria. Pela hora do almoço, encomendou uma «telepizza» e tentou planear o futuro naquela nova condição. Pensando bem, havia algumas vantagens em ser um telefone celular. Para já, estaria sempre contactável. Poderia comunicar se com todos à hora que bem entendesse. Como gostava de música e o seu toque era polifónico, seria um prazer trocar de melodia a cada nova chamada que recebesse. Os chatos ele despacharia por «SMS». E com um pouco de sorte, ainda poderia navegar na internet nas horas vagas. Talvez a Mirtes não gostasse da história. Mas com o tempo ela iria acostumar se. E, ora bolas!, ela sempre quis que ele comprasse um celular topo de gama. Passados alguns dias, Octávio já resolvia negócios, comprava e vendia acções, sempre pelo telefone. De vez em quando ligava para uma linha erótica, o que assustava as operadoras de sexo, devido o seu estranho interesse por unhas pintadas e dedos. Mirtes continuava na casa de praia, sem desconfiar de nada. Mas tanto foi passando e a solidão do apartamento começou por deixar Octávio deprimido. Foi quando a campainha tocou. Octávio abriu a porta e deu de caras com uma batedeira de bolo. Era Magali, a vizinha do 4º andar que também havia sofrido uma metamoforse. Magali queria uma chávena de
chá de açúcar emprestada pois estava a bater um suflé de morangos. Octávio pediu para ela entrar. Talvez pelo insólito da situação, acabou por surgir um clima entre os dois. Além do mais, a Magali era um borrachinho com um lindo design italiano. Nem uma hora depois estavam na cama. Com o Octávio a sublinhar o ambiente romântico a tocar, através de si mesmo, o tema do «Barco do Amor». E a Magali a mexer sensualmente com as suas pás nas teclas do Octávio. De repente, a porta do quarto abriu se. Era Mirtes. Raivosa, gritou: «Eu sabia, meus grandes safados!» Deu três tiros em cada um e depois matou se. Magali ficou feita em bocados na cama, com as suas pás ainda a mexerem se sozinhas, apesar da sua morte cerebral. Mas Octávio fora atingido apenas de raspão. Ligou imediatamente para a esquadra. E ficou a meditar na história que iria contará policia. •


O homem de la Mancha

O RAPAZ SEM BRAÇOS E SEM PERNAS QUERIA nadar. Sonhava em atravessar o Canal da Mancha. Queria mesmo bater o recode mundial dessa travessia. E por isso ele podia ser visto pelas manhãs nas margens do canal a passear na sua cadeira de rodas prateada. Era nesses passeios que ele treinava. Dava braçadas ilusónas contra ondas irreais Não tinha braços, não tinha pernas, mas tinha sonhos. O rapaz não tinha pais, parentes, descendentes. A única pessoa que algum dia vi com ele foi a sua enfermeira, gorda como uma baleia. Era ela que empurrava de cá para lá, de lá para cá a sua cadeira. Gostava de levá lo para passear no canal por causa das gaivotas e dos ventos. Havia lido, nuns quaisquer documentos, que os espaços abertos contribuíam para a tranquilidade de uma alma sofrida. Mal sabia das intenções secretas do pobre rapaz. De qualquer maneira, pensava, «passear mal não faz.. A enfermeira, além de gorda, também se achava muito sabida. Passados alguns anos, o rapaz sem braços e sem pernas já era um atleta. Nadara milhares de quilómetros dentro da sua cabeça. Ganhara medalhas de ouro, prata e bronze, todas atribuidas por um juiz que existia apenas em seu cérebro. E por mais que pareça absurdo, dentro do seu ranking etéreo, ele ocupava o primeiro lugar do mundo. Um belo dia, o rapaz sem braços e sem pernas cansou da ilusão. Se ele queria atravessar o canal, teria que cair na água, sair do chão. Faria isto de qualquer maneira, contra tudo, contra todos, contra a enfermeira. Ele não tinha braços, nem pernas, mas era um homem duro. E depois de tantos anos de treino, sentia se seguro. Conhecia cada palmo da Mancha, sabia que se o seu desejo fosse verdadeiro, se a sua vontade fosse muita, podia atravessar o canal e ser recebido na outra margem com uma grande festança. E então não seria mais o rapaz que braços e pernas não tinha, seria um herói nacional, mundial, interplanetário. Dedicaria a vitória a todos os que ultrapassaram barreiras algum dia. E mostraria que, mesmo sem metade do corpo, estava no páreo. A enfermeira nem viu quando o rapaz, a utilizar apenas a força da mente, soltou o travão da cadeira, que saiu ladeira abaixo em desabalada carreira. Não demorou o cair na água. E então o rapaz sem braços e sem pernas descobriu o que era um mergulho de verdade. Sentiu as ondas a acariciarem lhe o corpo, a deixarem no louco. Nesse momento ele tornou se um puro de espírito, um ser sem vaidade. Riu, sorriu, gargalhou. O seu sonho mais secreto tomara se verdade. Foi aí que o rapaz deixou de ser ele mesmo e passou a simbolizar todos nós, a representar na sua débil estrutura os nossos mais íntimos desejos, as nossas mais estúpidas loucuras. Ele iria atravessar o Canal da Mancha não mais para ganhar um prémio, para vencer uma aposta, nem porque gosta, ele iria fazer aquilo como um santo moderno para salvar nos do inferno. E, pela primeira vez em décadas, parou de chover na Mancha e os raios de um sol muito forte iluminaram as águas. Quem lá estava relata, talvez num exagero de prosa, que as nuvens tornaram se algumas azuis e outras cor de rosa. E pouco provável, mas o rapaz pensa ter visto um golfinho a indicar lhe o caminho. E ao mover a cabeça, ao girar o tronco, ao agitar o dorso, bendito seja, encontrou a paz necessária para cumprir o seu destino, para sentir se uno, para sentir se inteiro, para sentir se todo.
Levaram uma semana para encontrar o seu corpo.


Meridional

O SEU NOME E MERIDIONAL. TEM UM ENORme sorriso no rosto como a dividir os pólos. Meridional é negro mas ninguém percebe. Acham que é mulato, compram gato por lebre. Ele é lobbista de um hotel da Baixa. Fica pelos cantos do lobby o tempo todo a dizer "bom dia". Mete conversa com franceses, chineses, ingleses, faz se de turista. Quem olha diz que acabou de chegar, quando na verdade nunca foi nem há de voltar. O gerente põe no louco, quer que invente histórias para daqui a pouco. É que está a chegar um lote novo de coreanos e Meridional tem de ser rápido. Para deixar claro, Meridional não é vigarista Apenas é pago para falar com turistas. Houve um tempo em que não tinha hotel fixo, era lobbista free lancer, alugado à hora, ao tempo, ao tanque. Bepois do bom dia, Meridional conta sempre histórias de malas perdidas, de voos calmíssimos e filhos distantes. Os viajantes flcam tranquilos ao ouvir tal falar, e pensam: Há alguém parecido comigo nesse mundo que está a acabar.. Meridional então simula um ataque de tosse, pede desculpas e parte para outra. Mas hoje Meridional está assustado. É que história para coreanos ele nunca teve. A sua especialidade são histórias para texanos e malteses. O gerente assobia, Meridional desconfia e treme. Os coroanos entram no lobby adentro. Entre a cruz e a calderinha, Meridional não hesita, improvisa. E aos primeiros olhos puxados que esbarra, Meridional abre a boca, solta a fala E conta uma história sobre uma viagem ao Evereste, no dorso de um lhama. Fala de uma seita exótica e de um longo período de jejum, que durou meses. E de como encontrou a chama chama divina primeiro que lodos os homens. E de como o seu corpo foi elevado ao ar até onde a vista não alcança, tendo quase sido ceifado por um misterioso avião da Lufthansa. Fala de como depois caiu em cima de um pântano e de como passou a vaguear pelo mundo à procura da sua tribo. Fala tudo isso em pouco mais de um segundo e já ia estender a mão com um ar de até mais ver quando é surpreendido com a imagem do coreano a ajoelhar se no chão. E todos os coreanos em volta, ao entenderem o sinal, erguem os braços aos céus a agradecer a dádiva recebida. E então o mais velho dos coreanos, pelo menos duzentos anos em cada perna, debruça se sobre o ombro de Meridional e sopra lhe no ouvido: «Mestre». Desde então Meridional nunca mais deu notícias. Consta que o gerente teve um destino terrível.


Bilingue

O HOMEM COM DUAS LÍNGUAS FALAVA DE mais. O problema é que uma das suas duas línguas só falava estrangeiro, era poliglota. A outra traduzia em simultâneo, tornando as conversas com ele numa estranha experiência auditiva, como se estivéssemos a bater papo com uma entrega do óscar ou uma sessão da ONU. O homem com duas línguas ainda tentou ser locutor de uma rádio pirata, cantor da Operação Triunfo, provador de vinho do Porto. Mas não deu. Por um desses tristes azares do destino, tipo Deus escreve certo por linhas tortas, eis que o homem com duas línguas também era gago. O fracasso fez degenerar o seu carácter. Na falta do que dizer de si mesmo, tomou se bufo, o que não teria nada de errado não fosse ele parar várias vezes ao hospital por estar sempre a dar com a língua nos dentes. Foi num desses internamentos que ele encontrou um jornalista inglês que o levou para Londres para participar num reality show televisivo. Foi lá, no programa, ao lado do homem com cinco orelhas e do rapaz de três rabos, que ele descobriu a mulher com duas vaginas. Foi amor à primeira vista. Sairam do estúdio directo para a cama. Hoje o casal vive num subúrbio parisiense com a mulher a trabalhar como prostituta. Como tem dois sexos, factura o dobro e cansa se a metade. Quanto ao homem com duas línguas, vive calado mas feliz.


O novo homem

QUANDO ACORDOU, ELE NÃO SE SENTIA UM homem novo, ele era um novo homem. Literalmente. É verdade que todos os homens são iguais, mas aquele, por destino, magia ou milagre, ficara diferente. Não tinha mais os defeitos banais da raça, nem tão pouco as suas reduzidas qualidades, sequer era gente como a gente. Não era um homem de trazer por casa, nem um daqueles que as mulheres do interior mandam comprar na cidade. Ele era distinto por dentro e por fora. E como brincadeira tem hora, o novo homem, que já não era nenhum menino, exigia respeito e atenção. Logo, logo, para passar a sua mensagem, apareceu na televisão. Surpreendendo todos, o novo homem não queria poder, dinheiro ou ouro. Não queria ser rei, presidente nem papa tão pouco. Ele dizia que não queria nada. E, como é óbvio, ninguém acreditava. Por mais que por detrás dos seus três lindos olhos só emanasse sinceridade. O novo homem virou então uma moda sem igual. E ele que era um ingénuo nem percebeu como estava a ser usado, nem mesmo quando a sua imagem apareceu numa embalagem de cereal. A Madonna fez uma música em sua homenagem, que resultou num clip onde ela fazia sexo com quatro gaivotas, três doninhas e um texugo selvagem. Em breve, em todos os supermercados do planeta, as prateleiras estavam cheias com os produtos do novo homem: o iogurte que fazia crescer cabelos, o sabonete com três cheiros, a sopa de letras que tinha zeros em lugar de ós, a pasta de dentes para banguelas, a carne da vaca que nadava e tinha guelras, o peito do frango que cantava tango em vez de fazer cocorocó. O novo homem a tudo assistia sem perceber o que se passava na realidade. O novo homem nascera para pregar a honestidade, para defender tudo o que tinha um bom valor, esquecendo que não era o primeiro a sofrer nas mãos dos vendilhões do templo do senhor. Foi então que o presidente dos Estados Unidos da América, que não estava preparado para reconhecer a bondade, declarou guerra. Mandou prender o novo homem para fazer uns exames, antes que os vírus supostamente presentes no seu sangue contaminassem o planeta. O novo homem, que apesar de tudo continuava sem eira nem beira, foi uma presa fácil. Ninguém lhe quis dar abrigo, pois em relação ao presidente dos Estados Unidos o melhor é ser amigo. O novo homem, depois de abatido, foi dissecado ao milímetro. Não encontraram, claro, nada de errado. Mas o equívoco até deu jeito. Morto e enterrado, o novo homem deixou de ser um problema, deixou de, só pela sua existência, ser urna pedra incómoda no sistema. De uma forma ou de outra, o novo homem não tinha futuro. Passada a novidade, os seus produtos já não vendiam mais. A sua mensagem de amor e de paz era muito quadrada. E a Madonna, que não era boba nem nada, já estava noutra, compondo um rock bacana em parceria com a banana profeta, a fruta que nascera dizendo ser a encarnação de um deus asteca que previa o apocalipse para o fim do ano. Coisa que ninguém levou a sério. O que explica o grande mistério de o mundo ter entrado, naquele Dezembro, alegremente pelo cano.


E se...

SE ELE NÃO ENTRAR NAQUELE ELÉCTRICO, ele que é tão racional, tão terra a terra, tão céptico, nunca vai ver, na outra esquina, a rapariga que vende flores embrulhadas num jornal. Ela, tão magra, mirrada, pequenina, fugiu daquele filme do Chaplin e jurou não mais voltar. A rapariga vive em câmara lenta, sempre com um solo de piano a sublinhar os seus gestos. Passa a vida a olhar os carros que passam, as pessoas que passam, à espera do seu grande amor, de um homem que lhe dê valor, mesmo sabendo que ela é muda como nos filmes do passado, daquelas que falam com os olhos, acreditando por todos os poros num ardor temerário, que o amor não é um filme falado, multo pelo contrário, que o amor é gesto e silêncio, é um momento sublime suspenso no vento. Se ele não entrar naquele eléctrico não vai, numa obra do tal acaso, esse sujeito tão imprevisível e tão parvo, apaixonar se pela rapariga das flores. Não vai descer quatro paragens antes da sua, voltando correndo e suando para o Terreiro do Paço, com o coração aos saltos, esbarrando em homens baixos e altos, que circulam pela Baixa com propósitos desconhecidos, talvez a caminho dos empregos ou apenas a fugir de medo, o que é normal entre aqueles que não sabem os próprios destinos. Se ele não entrar naquele eléctrico não terá motivo para, enquanto corre debaixo da chuva fina, repassar toda a vida. Não lembrará o primeiro beijo, nem a última noite de desejo, nem o vazio da manhã seguinte, o cheiro de cigarro no quarto, nem aquela dor, espécie poética de enfarte, típica de quem está sentado na beira da cama, ao lado de uma qualquer fulana, perto de quem acaba de fazer amor mas longe de alguém que posse chamar de amor. Se ele não entrar naquele eléctrico não vai, dali a pouco, trocar olhares de louco com a rapariga das flores. E ela não vai por um instante tão curto acreditar que o seu sonho absurdo finalmente se realizou. Ela não vai seguir o movimento do eléctrico com a cabeça, esquecendo que está a atender uma freguesa que pediu três rosas, dois lírios e um cravo, um ramalhete que servirá de desagravo no encontro com uma paixão antiga, do tempo em que ainda era tão menina que nem tinha todos os dentes. Se ele não entrar no eléctrico, não poderá olhar pela janela, nem a rapariga das flores terá vontade de se levantar e correr atrás daqueles olhos febris, que circulam pela cidade num veículo amarelo da Carris, nem ficará afinal sentada, assistindo a tudo desesperada. Ela não irá agarrar, transtomada, numa qualquer flor, nem irá ferir a sua mão nos espinhos, nem sangrará na calçada. Se ele não entrar no eléctrico não terá motivos para sentir se o melhor dos homens quando, depois de correr toda a rua Augusta, avistar do outro lado da praça aquela rapariga que vende flores e que saiu de um filme raro da cinemateca. Nem, por isso, irá saltar distraído para a frente de um autocarro da linha Benfica Marateca que perdeu os travões. Não irá ser atropelado e morrer. Não irá ficar estendido na rua, motivo de pena e escárnio de anónimos peões. Nem terá o corpo coberto pelos jornais do dia enquanto não chega a polícia. Nem irá emocionar se, apesar de morto que está, quando a rapariga depositar sobre o seu peito todas as flores que teria que vender naquele dia. Nem vai chorar, nem vai sorrir quando ela se afastar e decidir regressar para a sua velha fita. Onde ao lado do CharIot vai tentar, sem conseguir, esquecer que um dia o seu grande amor encontrou. Se ele não entrar no eléctrico nada disso vai acontecer. E a sua vida seguirá, sem graça, patética e vulgar, até morrer de velho, de gripe, de sarna ou de nada. Mas, graças a Deus, ele entrou.


Fábula suburbana

MARTHA, PRONUNCIA SE "MARFA", BEM QUE desconfiou. E se antes nunca tivera motivos para suspeitar do marido, começou a passar as noites em claro, a rolar na cama, a imaginar em delírio, enquanto se masturbava, com que tipo de putinha andava ele a esfregar se por aí. Martha (pronuncia se «Marta», eu já disse!) soube de tudo pela vizinha. Desesperada, fechou os olhos para não ouvir. Por algum motivo, não adiantou. «E agora, o que será da minha vida?», murmurou baixinho, com os olhos rasos d'água e uma imensa dor na bexiga. Nesse instante entrou na sala ícaro, o filho bastardo da vizinha. Para Martha foi como uma revelação. Ele era um anjo, era um santo, era a salvação. Um odor de cânfora impregnou o ar. Martha calou o seu choro. «Deus existe!», exclamou contrita enquanto mijava solenemente sobre a alcatifa. Ela não demorou a se transformar. De rainha do lar passou a esposa ausente. Nada na sua casa era como dantes. Debaixo de uma aparente ordem, os objectos, os sofás, os jarros, as pequenas estatuetas revoltavam se, revoltam se. Sofriam ao perceber a futura tragédia da sua dona. Desgraça essa que seria também deles, objectos estáticos, objectos estúpidos. O primeiro a não resistir foi o galo de Barcelos, que num gesto tresloucado se atirou de cima do fogão, espatifando se em mil pedaços após um lindo salto mortal. Martha já não saía da casa da vizinha. Virara crente de uma obscura seita dissidente da igreja Universal Reino de Deus. Passava os dias com o crucifixo na mão, pronta a exorcizar qualquer um que lhe aparecesse pela frente. A vizinha, que também era da seita, deixava Martha dormir na sua casa em troca de pequenos serviços. E fingia não perceber o real motivo de Martha querer ficar ali alojada: Icaro, o filho bastardo, que desfila em cuecas pela sala, exibindo o seu corpo de surfista. Martha estremecia cada vez que o via. Icaro era um anjo, era Deus. E Martha já não podia viver sem ele. Não tinha mais marido, não tinha mais ninguém. Por ícaro ela faria tudo. «Tudo», repetia em pensamento, com uma estranha feição homicida. Icaro era bastardo e não sabia. Nem imaginava que a sua santa mãezinha gostava de prevaricar atrás da sacristia. O falecido marido dela sabia. E por isso batia nela todos os dias. Até que, velho e decrépito que estava, morreu, feliz da vida. Passado um mês, a adúltera apareceu no cemitério,com um ramo de flores na mão e um filho na barriga. O morto jurou revanche. E com a paciência de quem sabe que a vingança come se fria, esperou anos e anos até que o filho bastardo fosse sozinho ao cemitério lhe fazer uma visita. Nesse dia, murmurou do além no ouvido de ícaro: «Vá, meu filho. Jejue 30 dias e 30 noites para que eu possa alcançar a paz divina.» Ícaro, crédulo e parvo, foi para casa e seguiu à risca o pedido do fantasma. Não pensou em morrer de inanição. Era crédulo, era parvo, era surfista. Martha com o tempo percebeu que algo se passava com o rapaz. Martha (pela última vez, pronuncia se «Marta»!) não era boba, só era fanha. Aproveitou se então da situação. Uma tarde, agiu rapidamente, enquanto a vizinha dava um saltinho aos Olivais visitar um doente. Ícaro, de tão fraco, 28 dias sem comer, nem esboçou uma reacção. Ao contrário, delirante, parecia concordar com aquilo tudo, assumindo de vez a sua condição de anjo na Terra. Ficara ainda mais lindo magro e indefeso. Martha quase desmaiou quando o viu nu. Emocionada, meio mãe, meio amante, pregou ícaro na cruz. Depois enfiou lhe na cabeça a coroa de espinhos e ficou a admirar, embevecida, os fios de sangue a escorrer lhe pela testa. Como tudo na vida, o tempo foi o unguento que fez sarar todas as feridas. A vizinha, em vista dos acontecimentos, fundou a sua própria seita, ganhou imenso dinheiro, saiu do Cacém e vive hoje num T6 nas Amoreiras. Martha, presa num manicómio, tornou se numa estranha pitonisa e está sempre a prever o fim do mundo para a semana que vem. E quanto a Ícaro, surpreendendo todas as expectativas, ao terceiro dia não ressuscitou.


Pálida Polaroid

COMO UM LAMPIÃO NUM POSTE. ELE ERA anacrónico. Tinha uma timidez intrínseca, uma desesperança anímica e um ar levemente cómico. Ela, ao contrário, já nasceu em berço esplêndido, boca, lábios siderados, pernas, coxas de marquesa, seios fartos, generosos como apóstolos numa santa ceia. Ele tropeçava em vírgulas, era gago e muito feio.
Apanhava na escola dos miúdos, dos valentes encartados, seis gonçalos, vários nunos e um talvez chamado pedro. Ela dava certo em tudo, era a musa do recreio, frequentava os sonhos lúbricos de todos os caixa d'óculos, onde sempre aparecia nua e lívida, enigmática, uma mini monalisa. Como um velho cromo do jovem Eusébio, ele era anacrónico. Fazia ilusionismo no intervalo para um escasso público: duas professoras gordas, um amigo cego e outro surdo. Tranformava lenço em flores, tirava pombas da cartola, sem receber um simples aplauso, um elogio, uma gala. Houdini desencantado, deixou se prender em livros, gostava de Pessoa, de Eça, de O'Neill mesmo sem perceber palavra. Ela, ao contrário, era fútil, inconsequente. Miúda rica, filha única de um demente, estava mal acostumada. Encontraram se, por acaso, numa ida ao Gran Circo. Ela de vestido e brinco, simplesmente um arraso. Ele quase teve um treco só de ver tal epifânia, meio metro de beleza tão rara quanto estranha. E jurou amor para sempre, sem nem saber seu nome. Mas sabendo lá por dentro que o que é do homem o bicho não come. Ela disfarçou o incómodo, sempre impávida e serena, assistiu ao espectáculo com a altivez de uma sereia. Aproveitaram o entreacto para ir comprar farturas. Ele num rompante de coragem aproximou se da medusa. Tocou seu lindo braço e sorriu com o aparelho. Ela desceu do pedestal, permitiu tal investida. Apesar de tão miúdos, apaixonaram se num segundo. Deliram no espaço, esqueceram o pobre mundo. Ele era anacrónico. Ela era estupenda. Ele era desolado. Ela era uma encomenda. Ele era execrado. Ela era um pesadelo. Encantados que estavam nem toparam o grande pânico. Pipocas voaram pelo ar, gritos, corre corre súbito. Fugia lépido um leão, solto, livre, esfomeado. Terror total na multidão. Enquanto eles parados como um quadro, freeze frame da paixão. A fera aproximou se rápido, pronta para dar o bote, engolir a rapariga, estraçalhar a pnncesinha e arrotar seu laçarote. Ele num gesto de magia, improvável Harry Potter, paralisou a grande besta. Valente como nunca, agarrou a sua cauda e rodou no ar o mau leão, provocando a sua morte afogado num tufão. Raios e corriscos, cobras e lagartos, grande tempestade, chovia por todos os lados. Ele levitou incrédulo. Ela desmaiou de medo. Perderam se de vista ia a tormenta ao meio. Nunca mais se encontraram. E os anos se passaram. Ele seguiu com aquele circo, tal Mandrake redivivo, deu a volta ao planeta, só não voltou, no grande giro, a passar pela cidade. Dela quis o destino pouco mais que o medonho. Formou se em contabilidade. Casou, pariu, enviuvou. Sem esquecer aquela noite do sorriso, da fera e do sonho. De como ela era tão menina. Que ele tinha um aparelho. Que ela era tão bonita. Que ele era grande, bobo e feio. Mas, o que é irónico, foi o único que ela amou. Ele que era um tanto anacrónico. Como um pai natal no inverno. Como uma pálida polaroid. Como um conto de amor eterno.


Sem coração

NÃO TINHA CORAÇÃO. NASCEU SEM. NÃO que isso fosse um problema, uma crise no sistema, uma questão por aí além. Não tinha coração. E isso era até uma vantagem, sublime malandragem, tendo em vista que quem tem coração costuma ser bobo. E ele, que não era nenhum menino de coro, nasceu para se dar bem. Como não tinha coração, também não tinha sangue, como as santas, as baratas e as vamps Mas tinha um propósito na vida, seria o dono do mundo, ou não se chamaria Raimundo, o que além de uma rima era uma solução. Viveu sem escrúpulos, roubou doces aos miúdos, vendeu a mãe várias vezes mas nunca entregou. Seguia à risca o seu plano selvagem, para tudo tinha coragem, até que um dia, daqueles normais em que apetece dar banho ao cão ou visitar a tia, Raimundo encontrou Maria Rita (ou Rita Maria, nunca soube ao certo), doce menina dos olhos verdes e sorriso aberto. Rita Maria (ou Maria Rita) tinha ido á cidade fazer uma promessa, pois sofria de uma terrível mazela: amava ao próximo como a si mesma. O problema é que o próximo era sempre o que estava mais perto, fosse branco, preto ou amarelo, sem nenhuma descriminação de idadé, sexo ou credo. Maria Rita com tanto amor para dar, recebia muito pouco. Sofria com aquele amor sem morada, sem nome, sem nexo, sem cara. Daí ter feito uma promessa tão rara: se pudesse não amar um homem, fosse ele um politico, um mendigo ou artista, subiria o Everest de joelhos. Raimundo, reparou em Rita Maria na igreja e apaixonou se à primeira vista. Para quem não tinha coração, aquilo era muito, um despautério, um absurdo. Daí que Raimundo sentiu urna dor no peito. Era um coração que ali nascia meio sem jeito e quanto mais ele mirava Maria Rita mais o órgão crescia, crescia, crescia. Rita Maria, afinal, deu pelo Raimundo, o outrora dono do mundo, mas agora um simples mortal. Como por um milagre, não se apabianou. Pelo contrário, sentiu escárnio, viu em Raimundo um pobre, um lixo, um chulo. Raimundo, apaixonado, perdeu o rumo, perdeu o chão, perdeu tudo. Passou a andar pelas ruas como um cão, a beber, a fazer poesias patetas, típicas de um ébrio esteta que amava pela primeira vez. Maria Rita sabia daquele amor impossível e ria por dentro do amante falhado,: sem eira nem beira, vestido de trapos, que fazia vénias quando ela passava em direcção da padaria, da farmácia ou da missa. Em pouco tempo o coração de Raimundo já estava do tamanho de uma bomba, daquelas de cartoon, tipo assim redonda, com um pavio aceso na ponta, prestes a rebentar. Rita Maria não só sabia da triste história como alimentava a paródia, fazia olhinhos sempre que o encontrava, mas depois travava qualquer investida. Várias foram as vezes em que na tasca entrou a sacripanta para tripudiar do cretino, que chorava aos seus pés como um Deus menino, enquanto ela, indiferente, bebia uma Fanta. Depois de uns tempos e de uns ventos de monção, Raimundo não aguentou e a bomba do seu coração estoirou, voando pedaços de paixão para todos os lados, emporcalhando jardins, muros, telhados. Raimundo morreu num instante, desprezado enquanto amante, mas misteriosamente feliz. Como todos os apaixonados, mesmo os renegados, Raimundo teve, por um triz, a sorte madrasta de saber para que servia era um coração de verdade. E Maria Rita, na sua sublime maldade, aquela que amava a todos menos um, decidiu, um bocado na pressa, pagar sua promessa, rumando para o Nepal. Mal lá chegou, apaixonou se por um monge budista, chamado Ming, meio santo, meio autista, que diziam as más línguas era amante do Sting. O monge, com um certo azedume, desprezou solenemente a donzela. Que morreu como uma cadela, congelada de joelhos bem pertinho do cume. O monge, não sem uma suspeita alegria, no lugar onde Rita Maria jazia, tentou sem sucesso plantar um arvoredo. De Raimundo, o que queria ser dono do mundo, ninguém guardou memória. E essa é a moral da história: quem tem coração, tem medo. •
(28 de Novembro de 2003)

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