"Os Trintões" 1
Textos de Edson Athayde
Publicados no DNA

 


Polaroids da vida

A CRÓNICA É, VIA DE REGRA, UMA MENTIRA CONSENTIDA. É um fotograma de uma película de longa duração (que poderíamos chamar de vida). O próprio filme é uma ilusão. Ele só existe nas nossas cabeças, fruto de uma vigarice óptica que também consentimos. Os fotogramas passam a 24 quadros por segundo, tempo suficiente para nos dar a impressão que estamos vendo pessoas, cavalos, carros, rios e mares em movimento. Não, não estamos. Só vemos luzes e sombras como os chineses.

De certa maneira o jornalismo faz um pouco como o cinema: quer ser percebido como a realidade e não apenas um simulacro espectaculoso de algo vagamente parecido com a vida real. A crónica difere nisso. Ele se sabe mentirosa ou, no mínimo, fantasiosa. Ela é, já disse, apenas uma foto ampliada de um momento, distorcendo em muitos casos a compreensão do filme inteiro.

Vamos falar então de retratos.
Um deles, entreouvido no vagão de um comboio. A nova fala do seu amor (marido?, noivo?, namorado) perdido. Fala, fala, fala. A velha finge que ouve (o que é, como todos sabemos, uma ficção: ninguém ouve ninguém, apenas balançamos a cabeça a espera que o outro pare de mexer os lábios, indicando que a nossa vez de produzir ruídos ininteligíveis). A dada altura, a velha interrompe a nova e diz: "Falar de amor não é igual a ter amor".

Saí do comboio mas a frase não mais saiu da minha cabeça. «Falar de amor não é igual a ter amor». Há qualquer coisa aí de superficialmente profundo que me interessa. E que tem a ver com o tema básico dessa rubrica sobre os trintões: a dificuldade de ao meio da vida reconhecer que falamos mais do que fazemos, ruminamos mais do que sentimos, perdemos tempo a verbalizar sentimentos em vez de, por exemplo, sentir o verbo amar em todas as suas possibilidades.

Coloquei a minha tese a prova naquela noite, numa reunião de antigos. «Falar de amor não é igual a ter amor», repeti a frase vezes o suficiente para ser decorada e incomodar todos os presentes. Quem ali tinha realmente um amor ou um amor para dar? De certa maneira, éramos todos amantes teóricos, românticos verbais, abstratos amorosos.
Ninguém ali amava ou era amado com a intensidade de um poeta ou com a vibração de um louco. Alguns gostavam. Alguns eram gostados. Outros nem por isso.

«Falar de amor não é igual a ter amor». Sim, tínhamos todos passado a juventude a falar de romances proibidos, de paixões platônicas e, last but not least, de sexo, sexo, sexo. Para alguns, mesmo depois de adultos e casados, o assunto não estava arrumado. Muito pelo contrário. A escolha da parceira definitiva pesava nas cabeças dos comprometidos e era um farol de dúvidas na vida dos não engajados. Era aquilo amor? Se calhar era. Mas não peça para um grupo de homens debater o assunto. Isso não é tema de conversa. Podemos falar da bola, do trabalho, de aventuras (na maior parte das vezes, fictícias) em geral, mas não de amor na sua forma filosófica. Isso é conversa que combina com torradas e chá quente, não com percebes e cerveja gelada. Alguém lembrou de Roland Barthes e citou uma frase qualquer do seu «Fragmentos de um Discurso Amoroso». Outro lembrou Milan Kundera e a sua «Insustentável Leveza de Ser». Outro foi mais prático: mudou de assunto. Como, de resto, é o que eu vou fazer.

Mais um retrato: leio em vários jornais e revistas sobre os fiashs mobs. A coisa é tão nova que é possível que você ainda não tenha reparado no assunto. Os flashs mobs apareceram há poucos meses e já estão a se tomar num fenómeno global. Trata se da comemoração do nada, do elogio ao vácuo, da celebração do zero.

A partir de uma convocatória, que pode ser através da Internet ou de mensagens sms, um grupo de desconhecidos marcam um encontro num ponto qualquer da cidade. Nesse encontro, que simula uma espécie de manifestação instantânea, fazem um qualquer gesto que já está pré combinado e depois de alguns minutos separam se, provavelmente para nunca mais se verem. O gesto tem que ter um caracter surrealista, niilista, iconoclasta, desprovido totalmente de conteúdo. Por exemplo: em Nova Iorque, um grupo com cerca de 100 pessoas reuniu se numa loja de brinquedos e rosnou durante alguns minutos para um dinossauro de borracha. Em São Paulo, outras cem pessoas atravessaram ao mesmo tempo uma das principais avenidas da cidade e, durante o trajecto, retiraram os sapatos e bateram com eles no chão. Outros flash mobs apareceram um pouco por todo o mundo. E não é dificil imaginar que algum esteja a acontecer neste momento em Portugal. Em comum todos têm o mesmo traço: são unia das coisas mais idiotas que a nossa civilização conseguiu inventar (e eu que pensava que depois da Macarena nada mais levaria o ser humano a um nível tão baixo).

Fico a imaginar como seriam os flash mobs promovidos pelos trintões. Sugiro alguns:
i) Um grupo reúne se no auditório da Fnac do Chiado, antes de um debate qualquer sobre linguística ou da leitura pelo autor de um novo livro de poesia concreta. Cantam em coro uma música qualquer da Cândida Branca Flor. Dispersam.
2) Uma centena de executivos, todos de óculos escuros, invade o parlamento durante um debate sobre a utilidade da barragem do Alqueva. No momento em que o Francisco Louça for discursar, levantam cartazes a dizer. "Vasco Granja, volta. Estás perdoado. Dispersam.
3) 50 casais de gays e lésbicas encontramse na varanda da discoteca Lux num sábado. Quando der meia noite declamam com um ar solene a letra do jingle do pudim Boca Doce. Atiram se da varanda. Dispersam.

Como vê, as possibilidades são infinitas. Como infinita é a estupidez humana.
E infinitas podem as polaroids do cotidiano. Mas não me peça para dar um sentido lógico às imagens. Eu não sou filosofo, nem professor de semiologia. Na verdade não passo de um mero e pobre retratista. •

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O tempo não pára.

«És um senhor tão bonito
quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo
Compositor de destinos
tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo
Por seres tão inventivo
e pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
és um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Que sejas ainda mais vivo
no som do meu estribilho » (...) *


MAIS CEDO OU MAIS TARDE, VOCÊ PÁRA E PENSA NO TEMPO, NÃO O TEMPO METEOROLÓGICO das conversas de elevador, do tipo está bom, está mau, vai chover, faz calor. Estou a falar do tempo/tempo, do tempo/dia, do tempo/hora, do tempo/mês.

Mais cedo ou mais tarde, é só uma (voilá) questão de tempo, as cronologias da vida e das coisas passam a ser uma questão relevante. O tempo perdido, o tempo passado, o tempo ganho. Ficando bem daro que, tempo que é tempo, passa sempre voando.

Há quem queira ser «um homem do seu tempo». Nunca percebi claramente o que é que quer dizer essa expressão. Creio que tem vagamente a ver com a vontade de ser contemporâneo, como se fosse possível ser do passado ou do füturo. Toda gente é do tempo que há, não do tempo que quer. Estamos todos acorrentados aos ponteiros do relógio, amarrados às folhas do calendário.

Estava a pensar no tempo quando outro dia lembrei me que faz tempo um monte de coisas. Faz tempo que o mundo tinha medo da guerra fria, da bomba atómica e dos russos. Faz tempo que para se ver um umbigo quase que era preciso casar. Faz tempo queos momentos mais bonitos das nossas vidas ficavam registados em pálidas polaroids e em fihnagens de super8. Faz tempo que telefonar era caro, difícil e bonito, em que um «alô» poderia provocar um luminoso sorriso ou um vale de lágrimas. Faz tempo que havia raparigas virgens, homens honestos e políticos sinceros (não, pensando bem, isso já não existia faz tempo). Faz tempo em que um dos grandes enigmas da humanidade era saber se a luz do frigorífico continuava acesa depois que fechávamos a porta. Faz tempo, é amigos trintões, faz tempo que o termo conflito de gerações era utilizado para falar das desavenças entre velhos e jovens e não sobre incompatibilidades entre versões de programas de computadores. Faz tempo que «O Último Tango» era um ícone da revolução (desculpe me a redundância) dos tempos e ainda chocava aos espíritos mais simples, o que era possível ser feito num apartamento vazio com uma tablete de manteiga (e, já agora, não de margarina light, pois naquele tempo toda a gente era mais magra, indusive eu, você e o Marlon Brando). Faz tempo que o tempo não pára.


«Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara
Cansado de correr na direcção contrária
Sem podium de chegada
Ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara
Mas se você achar
Que eu estou derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo não pára
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
De caridade de quem me detesta
A tua piscina está cheia de ratos
Sua idéias não correspondem aos factos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára» (...) **


Santo Agostinho dedicou boa parte da sua obra a pensar nas relações entre Deus, o Homem e o Tempo. Por volta do ano 399, ele dizia: «O que é, pois, o Tempo? (...) Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar já não sei». Agostinho (que de santo até decidir se pela fé e tornar se santo, de santo não tinha nada) também pensou e escreveu muito sobre o pecado e (para usar uma analogia um bocadinho simplista mas não menos correcta) sobre o que veio antes, se o ovo ou a galinha. Explico: uma parte da lógica agostiniana gira em tomo da liberdade de Adão antes e depois do pecado original. A questão é, antes da maçã, Adão «podia não pecar»; depois, a Adão restou «não poder não pecar». O tempo é que marca a linha divisória, é o momento do pecado original que não deixa hipóteses a Adão, pois o tempo não volta.

Deixemos por momentos a metafisica. Vamos ficar pela fisica que se estuda no colégio. Como a nossa professora tentou nos ensinar (embora estivéssemos mais interessados nos seios salientes da Marli, a nossa colega de carteira) toda acção provoca uma reacção. Somos consequência inexorável do que fizemos, estamos a preparar neste momento o que vamos ser amanhã. Como vê, pouco podemos fazer pelo passado, mas ainda é possível remediar o futuro. Não chore todos os seus pecados (alguns deles foram, de certeza, algumas das melhores coisas da sua existência), mas tente fazer qualquer coisa hoje que possa ser motivo de auto orgulho daqui a dez, vinte, trinta anos. Não se contente em ter uma vida. Tente ter uma biografia. Enquanto ainda dá tempo para tanto.

Há uma parábola judaica sobre o tempo que ilustra bem o que digo. Um rei queria ser o homem mais sábio da terra. Ordenou então aos seus homens que reunissem todos os livros do mundo e os condensassem para que ele os pudesse ler sem perdas de tempo. Levaram 30 anos para reunir os livros e mais 10 para produzir um resumo em 500 volumes, O rei entretanto achou que era muito, que não tinha tempo para aquela maçada e mandou resumir mais. Passaram mais cinco anos e homens conseguiram encaixar tudo em 10 volumes. Mesmo assim o rei, impaciente, vociferou que não tinha mais tempo para perder com aquilo, que um só livro era a medida ideal. Cinco anos passaram e finalmente o conjunto de sábios responsáveis pela empreitada chegou a um volume de 300 páginas com todos os conhecimentos da humanidade. Mas o trabalho foi inútil. O rei então já estava velho e mortalmente enfermo. E, o pior, na espera de todo o saber do mundo, havia esquecido de aprender a ler.

Ou como diria o meu Tio Olavo: «Nós matamos o tempo, mas é ele que nos enterra».

«Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, de mãos dados.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Nãofrugi rei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
presentes, a vida presente.» ***


Poemas de: * Caetano Veloso / ** Cazuza / *** Carlos Drummond de Andrade

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A Vida de Pi

.METAFORICAMENTE FALANDO: HÁ MELHOR EXPRESSÃO DO QUE ESSA?
Por meio de metáforas pode se dizer tudo. Mesmo quando não se está dizendo nada. A metáfora é por si só uma graça, um guizo, um gozo. A metáfora é o presente do poeta, a tara do filósofo, o oficio do hermeneuta.
Por falar em metáforas, outro dia contaram me coisas a respeito de um livro. O ponto de partida da narrativa pareceu me brilhante: um rapaz sobrevive a um naufrágio e anda durante meses à deriva no mar num pequeno barco, tendo como companhia um tigre. Pelo meio há toda uma discussão sobre a vida, a fé e a amizade esse o resumo de «A Vida de Pi», obra escrita por Yann Martel, ganhadora do Booker Prize de 2002, lançada há pouco tempo em Portugal.
Ainda não li «A Vida de Pi», mas isso não é importante. Não tenho vocação para crítico literário. O que me interessa é mesmo o tal ponto de partida narrativo. O que me cativa é a ideia de reunir num mesmo sítio um conjunto de metáforas tão fortes: o barco como a vida (ou como o destino, ou como a sorte arbitrária que nos leva de um lado para outro sem nunca nos perguntar para onde vamos ou se queremos ir), o rapaz como o Homem (no caso aqui com o «h» grande, de quem éo representante solitário da humanidade) e o tigre como o outro (aquele que existe para nos olhar e por efeito reflexo confirmar a nossa existência).
Arquimedes de Siracusa calculou, cerca de 200 anos antes de Cristo, que Pi era igual a 3,141592653... Um valor impreciso e infinito, portanto. Como infinito é o número de incertezas do ser humano. Daí o nome do personagem principal da história também ser uma fonte luminosa de interesse. Somos Pi, nascemos Pi, morremos Pi. E, pelo meio, vamos fingindo ser exactos, coerentes, constantes.
Imagino um trintão num bote a fazer de Pi. Vai junto o tigre, que faz de sábio, de filósofo e de profeta. Os dois conversam. Começa o tigre:
Qual é a sua idade?
38 anos, mas faço desporto, todos dizem que pareço menos.
Mesmo assim é muito. Sabia que o tempo médio da vida de um tigre é de 20 anos?
Não. E daí?
Daí que já viveu quase duas vezes o limite máximo da minha existência. Por uma questão de justiça deveria me deixar devorá lo. Se alguém merece sobreviver aqui sou eu.
Gostas pouco, gostas. Aproxime se de mim e leva com um remo no focinho.
A sua linguagem causa me repulsa.
Pois o seu hálito também não é lá grande coisa. Mas pode tirar o cavalinho da chuva que eu não vou acabar na sua boca.
Mas nada acaba, nem começa, tudo na vida apenas continua. Você não passa de um pequeno cascalho na pedreira do universo. O seu destino não interessa, a sua sorte é irrelevante. Já agora, dê me o seu braço, tenho fome.
Não dou braço nenhum. Preciso dele para remar e nos levar para algum lugar.
Onde?
Ora, qualquer lugar
Quem não sabe para onde vai nunca chega a lugar algum. Com essa idade já deveria ser capaz de planear melhor ar coisas.
Eu não planeei naufragar com o tigre da Keilogs. Se pudesse escolher, teria naufragado com a Mansa Cruz. Pelo menos sempre beberíamos algum sumo de tomate da Santàl.
Decifra me ou devoro te.
Isso quem dizia não era a esfinge?
Enquanto arquétipo eu represento muitas coisas. A questão é: qual é o sentido da vida?
Sei lá, nunca pensei no assunto.
Pois responderei, citando o pensador chinês Chung Tsu: «Expire o ar que inspirar! Respire quando você respirar/ Diga o que tem a dizer! Acaba por ser o que tinha que ser/ Esqueça isso tanto faz/ Ande não olhe para trás/ Olhe por onde anda/ Faça o que o coração manda/ Diga como é que se sente/ Levante se siga em frente/ Faça o que está a fazer! Não o que estou a lhe dizer/ Use se quiser usar/ Use depois de agitar/ E proibido parar/ Olhe antes de atravessar/ O fácil é o certo, o certo é o fácil/ O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o certo éo fácil! O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o fácil é fácil! O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o certo é certo/ O fácil é o certo/ Não importa o que você fez/ Há sempre uma próxima vez/ Não se perca, não pare/ Escolha o menor dos males/ Faça o quer fizer/ Aconteça o que acontecer/ Tanto faz como se chama/ Entregue se ao que você ama/ O fácil éo certo, o certo éo fácil/ O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o certo é o fácil/ O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o fácil é fácil/ O fácil é o certo/ O fácil é o certo, o certo é certo/ O fácil éo certo.
Hum.., não percebi.
Eu já desconfiava.
E então, o tigre devorou o homem. Metaforicamente falando, caro.•

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Apenas mais um triângulo.

RENATO OLHAVA SE NO ESPELHO DA SALA. A barba ficava lhe bem, pensou. Deveria tê la deixado crescer antes. Como tantas outras coisas poderia ter feito antes. Mas não fez. A campainha tocou. Foi abrir a porta.
Carlota?
Era uma pergunta retórica. Sim, era a Carlota, ora pois, daro. Depois de treze anos de casamento, dois de noivado e quatro de namoro, ele poderia reconhecer a Carlota até num quarto escuro. Mesmo que ela estivesse fantasiada de arara da Amazónia. Essa imagem, por algum motivo, deixou o excitado.
Renato, temos que falar.
Tmha percebido que só queria conversar comigo através dos advogados.
Mudei de ideias. Aliás, muita coisa mudou na minha vida.
Nas nossas vidas, pensou Renato, corrigindo mentalmente a ex mulher. Era um hábito antigo. Para evitar brigas, Renato tinha se acostumado a dialogar com ela através de pensamentos, pelo menos nas questões em que os dois pontos de vista não convergiam. Podia parecer estranho, mas funcionava. Até porque ela nunca estava realmente preocupada com as opiniões dele. E ele sabia que numa discussão sempre sairia perdendo. Foi assim em relação à compra da casa de praia, por exemplo. Ela odiava Sol, água do mar e areia. Mesmo assim fez questão que comprassem uma vivenda em Armação de Pêra, só porque os vizinhos tinham comprado uma em Tróia e ela não queria ficar atrás. Em cinco anos, tinham ido lá apenas três fins de semana. E mesmo assim sob protestos dela, que não queria queimar a pele, pois linha lido na Máxima que isso causava rugas. Na ultima vez que lá foram, há seis meses, ela emplastou se em protector solar número 120 e passou os dias na sombra da varanda a ler um livro qualquer do Paulo Coelho, que falava sobre o poder do destino, vidas anteriores e a libertação do corpo e da mente. Foi o principio do fim.
Estás bronzeada.
É, o Rui gosta muito de praia.
O Rui, o canalizador. Moreno, alto, 24 anos, alentejano, meio rústico, o arquétipo do garanhão erótico de nove entre dez donas de casa balzaquianas do país. Um dia foi ao apartamento tratar de um cano entupido. Aproveitou para tratar de outras coisas além disso.
E as crianças?
Ficaram na casa dos meus pais. Estão com saudades tuas.
Renato achou estranho o tom da voz de Carlota quando ela pronunciou a palavra «saudades». Alguma coisa indicava que aquela conversa não ia correr bem. Ele conhecia todos os truques dela. Aquele tom de voz era típico de quando ela queria alguma coisa cara, extravagante ou de que, no mínimo, não teria direito. Foram dezanove anos juntos, ele saberia interpretar aquela voz mesmo que ela estivesse imitando uma cacatua rouca. Esse pensamento deixou o excitado outra vez.
Eu também estou com saudades tuas, Renato.
Saudades? Mas as últimas coisas que me disseste é que não me queria ver mais e que não gostava mais de mim.
Enganei me. Afinal, gosto de ti.
«Era só o que faltava»,, gritou Renato, mentalmente. «A fulana põe me os palitos, diz me na cara que não gosta mais de mim, sai de casa com o canalizador, some três meses e agora reaparece do nada, bronzeada e a dizer simplesmente enganei me. E muita lata».
Por isso estou aqui..Vamos apagar o que se passou, Renato. O nosso casamento merece uma segunda oportunidade. Quero que voltes para casa.
Casa. «Mas aquela nunca foi a minha casa», pensou Renato. Era a casa dela, das crianças, não dele Era o lugar para onde ele ia depois do trabalho, era uma espécie de hotel com esposa incluída no preço (e que preço!). Mas não era um espaço onde ele alguma vez tivesse se sentido à vontade. Onde ele pudesse ouvir a música que quisesse (tinha uma atracção secreta por música romântica de gosto duvidoso como, por exemplo, toda a obra de Michael Bolton), no volume que bem entendesse. Nem onde pudesse ficar no sofá de cuecas a tarde de sábado inteira a fazer zapping na TV Cabo, sem que ninguém o interrompesse a redamar de alguma coisa ou a pedir algo que só poderia ser comprado se ele trabalhasse mais algumas horas depois do expediente. Sem falar dos canos entupidos, uma dor de cabeça recorrente, que só viria ser resolvida com o aparecimento do Rui.
Mas, e o Rui?
O Rui não interessa. Foi um equívoco. Não tínhamos nada em comum. Imagine que ele passava o dia a ouvir Michael Bolton. Não podia dar certo.
Hum... Interessante.
Bem, vens comigo agora ou preferes tratar da mudança amanhã?
Mas, Carlota, há urn problema. Eu não quero voltar. Aliás, eu não vou voltar.
Não? Como não? Não me digas que arranjaste outra?
Mais ou menos. Há outra pessoa que eu descobri que amava. Mas não se trata de outra mulher.
Pessoa? Não é uma mulher? Renato, não me digas que és gay! Bem que a minha mãe dizia. Aposto que é aquele seu amigo grandão do futebol, o Alberto, o tipo nunca me enganou.
Que Alberto, Carlota, deste em doida? Não há homem nenhum nem mulher nenhuma. A outra pessoa sou eu.
Tu?
Sim, eu. Descobri, depois de 39 anos, que gosto de mim. Que me amo loucamente. Que mereço dar uma chance a mim mesmo. Eu vou ficar aqui, a tocar a minha vida. Mando o dinheiro que for necessário para ti e para as crianças. Mas não quero mais separar me do pedaço de mim que descobri nos últimos meses.
Carlota ficou lívida. Nunca vira o Renato a falar daquela maneira. Sem saber o que argumentar, ela ainda pensou em chorar, mas rapidamente percebeu que não era a táctica certa. Decidiu ir embora conversar com a mãe e as amigas. O caso exigia um tratamento fora dos padrões normais, talvez até fosse preciso lançar mão de recursos experimentais, técnicas ainda não testadas e, em último caso, armas químicas.
Estava cada vez mais dificil ser esposa hoje em dia.
Mal fechou a porta, Renato sentiu se extremamente aliviado. Ele já não aguentava mais fazer segredo daquele amor proibido. Precisava desabafar, pôr os pontos nos is com a Carlota para poder dedicar se àquela nova paixão de corpo e alma. Voltou a olhar se no espelho da sala. Sim, a barba ficava nele muito bem. Começou a acariciar o próprio rosto. E quando deu por si, estava a dar um longo beijo no ombro esquerdo..

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La vie en close

«nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez»*


Mania de acertar. Mania de fazer a coisa certa. O ser humano é o único animal à procura da perfeição, logo o único que tem que admitir a possibffidade de ser feio, sujo, mau e imperfeito. Pergunte para a lagarta se ela pensa ser horrorosa. Ela vai dizer que não. Entretanto, no entanto, contudo, cedo ou tarde, ela vai tomar se uma borboleta.

Somos, pois, uma libélula ao contrário. E os trinta e tantos é a fase em que estamos dentro de um casulo obscuro. Para lá entramos jovens e sapecas e de lá sairemos enrugados, grisalhos ou carecas.

Mania de fazer a coisa certa. Mania de acertar. Toda a gente quer ser reconhecida pe los seus acertos. Ninguém pede para colocar na lápide: «Aqui jaz um perfeito anormal». Quando todos nós sabemos que se os idiotas voassem jamais veríamos o sol. Mas se olharmos bem para trás, veremos que são os imperfeitos, os errados, os tortos, os esquerdos que ocupam, estes sim, os lugares de honra da história.

Mania de acertar. Mania de fazer a coisa certa. Passo a citar. «Nunca ficamos adultos, só ficamos bobos maiores» (Luís Fernando Veríssimo); «Ë melhor morrer de vodka do que de tédio» (Maiakoviski); «Quem não é belo aos 20, nem forte aos 30, nem rico aos 40, nem sábio ao 50, nunca será nem belo, nem forte, nem rico, nem sábio» (George Hebert). E para não dizerem que sou apenas um trintão sacrílego, chamo a Bíblia para me apoiar «Não há lembrança durável do sábio e nem do insensato, pois nos anos vindouros tudo será esquecido: o sábio morre como o insensato» (Edesiastes 2, 16).

Por isso, meu filho, meu caro amigo trintão: relaxe. Desaperte o nó da gravata, ponha os seus calções e curta o verão. Pare com essa mania de querer ser certinho. E não tenha medo da perfeição. Acredite, você nunca irá alcançá la.

"quem me dera
até para a flor no vaso
um dia chega a primavera»"*

Estações. Outro dia estava a contar vivi: 37 verões. Dos primeiros 13 lembro pouco mais do que estar no banco de trás do carro do meu pai, de temer me afogar cada vez que íamos a banhos, de achar que cada pequena parte de mar em que punha os pés não era só um bocado mas todo o oceano. Passei então quatro verões em fase de transição. Entre o miúdo e o rapaz, sobrou pouco mais que o sorriso Colgate desta ou daquela rapariga. Esses anos foram apagados da memória, como apagamos, por acaso, uma cassete de um filme B que gravámos na televisão. Coisas para recordar que valham realmente a pena, só começaram a partir dos 17.0 que significa a partir aí dos 20 verões propriamente ditos. Fale a verdade, é bem poucochinho. E mesmo assim, se em metade dos dias não fez sol ou passei trabalhando, restam então 10 verões contabilísticos. Desses10, dois foram desperdiçados em paixões equivocadas. Um numa má opção de viagem. Três em companhias chatas. Um por um motivo qualquer que não vem ao caso. Sendo assim sobram três. E o que se pode esperar de alguém que só viveu três verões bem vívidos e vividos (como um acento faz diferença)? E por isso que este ano vou para a praia com meu baldinho de água, minhas pás de plástico e meu bonézinho. Sentarei na areia e construirei castelos, desenharei peixes e sereias. E pouco irei ligar se me disserem que um senhor da minha idade não deveria estar a fazer isso. Sim, sou velho, mas somente no inverno. No verão, tenho apenas três. Como de resto, toda a gente deveria ter.

Ou como diria o meu Tio Olavo: «Descobri o segredo da eterna juventude. Minto a respeito da minha idade».

«O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
Tudo o que digo tem ultrasentido

Se rio de mim,
me levam a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse interim,
meu inframistério.»*


* Todos os poemas desta crónica foram extraídos do livro «La vie en dose», de Paulo Leminski

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Barrigas Killer

HÁ MUITO TEMPO NÃO VIAM O SILVERINHA. Era um dos «Quatro Cavaleiros do Após Calipso», o nome com que a tunna era chamada desde os tempos do jardim escola. Na verdade só o facto deles se conhecerem há tanto tempo justificava o Silverinha ser tratado no diminutivo. Pelo volume que o seu corpo foi ganhando ao longo dos anos Silverinha estava mais para Silveirão (e põe «ão» nisso). Os outros três também. O Tareco, o Ruca e o Janeca cresceram mais para os lados do que para cima. Principalmente depois de casados, resultado daquela fórmula óbvia e fácil: esposa que cozinha bem + emprego estável + filhos + TV com telecomando + prédio com elevador = barriga. E que barrigas.

Durante anos reuniram se todas as segundas para jogar futebol. No início era «com camisas» contra «sem camisas». Isso durou até as equipas atingirem os quase trinta anos. Depois era difícil encontrar alguém que quisesse jogar sem camisa. Fora os «Cavaleiros», que não se incomodavam de exibir os seus protuberantes abdómenes, o resto adquiriu um justificado pudor em despir se em público. Daí mudaram para «casados» contra «solteiros», mas a coisa não foi longe. Passados mais uns anos e estavam todos casados (indusive o Salgueiro que sempre jurara jamais dar o nó, até o dia em que conheceu biblicamente numa festa da espuma a filha do delegado de uma esquadra em Tavira, delegado este muito persuasivo quanto à questão de que filha dele não poderia ser mãe solteira embora o seu neto até pudesse ficar órfào de pai). Ainda tentaram outras fórmulas: «despenteados» contra «carecas», «funcionários públicos» contra «profissionais liberais», «os que preferem a Catarina Furtado» contra «os que preferem a Bárbara Guimarães», mas a coisa nunca mais foi a mesma e o grupo se dispersou. Menos os «Cavaleiros» que continuaram unidos e passaram a aproveitar as segundas para tomarem umas cervejas sempre no mesmo bar.

Até que há uns dois anos o Silveirinha foi transferido para a filial da sua empresa no Brasil (no Rio de janeiro, mais precisamente). Nunca mais deu notícias. Apareceram uns rumores de que ele estava diferente mas ninguém sabia precisar como. Chegaram a falar que passara a usar um brinco, mas os «Cavaleiros» remanescentes rechaçaram a história, classificando a de maledicência de quem não tem o que fazer. Tremeram nas bases quando souberam que o Silveirinha tinha se separado da mulher. Porém, continuavam dispostos a dar o beneficio da dúvida e manter a honra do convento. Diziam em alto e bom som o lema infame dos «Cavaleiros» desde a época da segunda classe: «Connosco ninguém podosco!» E depois apalpavam as barrigas, tradição mais recente mas não de mais pequena importância.

Estavam os três no bar, quando o Silveirinha apareceu de repente. O Janeca ficou apopléctico, o Ruca engasgou se com a cerveja, o Tareco (que era hipertenso) quase teve um ataque cardíaco. E nem foi tanto pelo brinco que o Silveirinha trazia na orelha, nem pela t shirt azul turquesa sem mangas, que combinava muito pouco com as suas calças vermelhas, e em última análise até fariam vista grossa para as madeixas louras na sua vasta cabeleira emplastada de gel, mas «o que ele tinha feito da barriga?»

O Silveirinha estava bronzeado, dezenas de quilos mais magro e a exibir os músculos de um Van Damme (vestido pela chefe de guarda roupa da Madonna). E sem barriga.
Foi o Janeca que abriu as hostilidades.
Onde é que ela está?
A Marta? Bem, desde que nos separámos nunca mais a vi.
Não estou a falar da Marta. Isso é problema teu. Estou a falar da barriga.
Ah, sei lá. Um dia me olhei no espelho e senti que o nosso lance já não estava mais rolando legal.
Lance? Rolando? Legal? Primeiro, fale linguagem de gente senão ainda levas uma pêra na tromba. Segundo, tens muita lata de vir aqui ter connosco sem trazer a sua barriga.
Puxa, gente, deixem de ser tão quadrados. Essa história da barriga é passado, eu evolui, estou noutra. Vocês, como meus amigos, deveriam aceitar isso.
Amigos é o caraças. Tínhamos um pacto entre nós e as nossas barrigas. Um pacto de sangue, pele e muita gordura. As nossas barrigas eram o símbolo da nossa amizade, do nosso desprezo pela opinião dos outros, da nossa liberdade em sermos como bem entendermos. As nossas barrigas eram a prova de que estávamos unidos literalmente pelos umbigos. E, agora, deitaste tudo isso a perder. Vá embora. Suma. E não voltes en quanto não liver urna cintura 56.
O Silveirinha ainda tentou argumentar mas desistiu quando lembrou que o Tareco quando nervoso tomava se violento (urna vez derrubou três jogadores de rugbi com urna só barrigada).
Apanhou a sua bolsa de couro e pedrinhas coloridas e foi embora arrastando as suas sandálias de acrílico, rebolando levemente.
Os três ficaram mudos durante um tempo. O Ruca ainda tentou erguer um brinde em honra aos «Cavaleiros» mas o seu «Connosco ninguém podosco!» caiu no vazio. Alguma coisa havia se quebrado definitivamente entre eles.

Com o tempo as coisas foram se ajeitando. O Tareco continuou a engordai desprezando os conselhos do médico que avisava que daquele jeito ele não passava dos quarenta. Morreu aos trinta e oito, engasgado com um travesseiro da Periquita.
O Janeca fingiu manter os seus ideais mas um dia foi desmascarado ao ter que ser internado com urgência num hospital depois de ter sido electrocutado por um daqueles aparelhos tipo «abdominaizer» que se compra de madrugada pela 1V
O Ruca fez a dieta da lua, a dieta da água e a fantástica dieta da beringela, submeteu se a uma lipoaspiração e entrou num ginásio, aonde acidentalmente voltou a enconlrar.se com o Silveirinha. Depois de muita conversa enquanto corriam lado a lado em passadeiras, a amizade entre eles voltou a surgis
Casaram se na semana passada, no Taiti.

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Mudar de esperança.

TENHO UM AMIGO QUE DIZ QUE NORAH JONES e Diana Krall fazem jazz de gajas. Não só porque são gajas mas porque a música que cantam e que tocam são macias, foflnhas, suaves o suficiente para agradar aos ouvidos das gajas. Pode ser, pode ser. Por mim, até gosto bastante do som que fazem. E acho que acabam por ser a banda sonora ideal para certos momentos. As vezes, mais do que o jazz irónico e cortante, logo carregado de testosterona, de um Dave Brubeck, por exemplo.
Quando eu e Alexandre estávamos deitados nas pedras do MAM no Rio de Janeiro, ainda não existia Norah Jones. Mas quando outro dia me recordei daquela tarde há vinte anos atrás, por algum motivo, foi uma música dela que me veio à cabeça. Talvez porque o tom agridoce das suas canções combine com momentos em que há uma mistura explícita de felicidade e agonia.

O MAM, para quem não sabe, é a sigla que denomina o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Fica no Aterro do Flamengo, mais para o centro da cidade do que para a praia, em frente à baia da Guanabara. Ë uma bela construção, com um acervo razoável e motivo de carinho e orgulho para os cariocas. Mas o melhor do MAM, na minha modesta opinião, não se encontra dentro dele. Há poucas paisagens mais bonitas no mundo do que a que se vê a partir das pedras que separam o terreno da construção das águas da baía. Dali podemos avistar o Pão de Açúcar, o aeroporto Santos Dumont, com os seus aviões a voar baixinho, subindo e descendo como gaivotas à procura de peixes, a ponte Rio Niterói, tão feia, tão feia, que chega a ter a sua graça, como que do alto da sua enormidade e da sua robustez quisesse pedir desculpas aos habitantes da cidade por interferir numa paisagem que a natureza tão sabiamente fez. Há também os barquinhos que passam enquanto a tardinha cai, como naquela eterna música da bossa nova.
Nova. Nova era a realidade que se punha à frente de mim e do Alexandre. Estávamos no meio do nosso curso na faculdade e já estava claro que a vida de adulto batia nas nossas portas. Não tínhamos intenção de abri las mas sabíamos que essa táctica de pouco adiantava. As portas seriam arrombadas e as nossas vidas seriam desarrumadas para sempre.
Sou meio mal educado. Esqueci de apresentá los ao Alexandre. Era (e ainda é) um grande amigo, daqueles que criam laços consigo que «mesmo que o tempo e a distância digam não, mesmo esquecendo a canção, o que importa é ouvir a voz do coração» (obrigado, Milton Nascimento). O Alexandre também era (já não é)a antítese perfeita da minha aparência e personalidade. Era boa praça, brincalhão, bem parecido, rapaz de classe média alta, o terror das raparigas da faculdade, com gostos urn pouco refinados, urna certa aversão ao trabalho e uma família carinhosa e simpática. Eu era mais o tipo meio revoltado, mordaz, feio, pobre, que morava longe e que sempre se apaixonava pela menina mais bonita da classe, o que era obviamente má (melhor dizendo, péssima) ideia pois ela acabava sempre se apaixonando pelo Alexandre, que estava sempre mais interessado em ir para a cama com outra qualquer, tomando a nossa vida romântica académica naquele poema do Drummond chamado «Quadrilha»: «João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Tereza para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.»

Mesmo assim éramos antigos. Os melhores antigos, inseparáveis, motivo de escárnio e de inveja para todos aqueles que nunca tiveram um melhor amigo na vida. Sabíamos disso e depois de uns anos a nossa amizade passou a ser como um terceiro elemento na relação. Havia eu, ele e a amizade. Eu até podia pisar na bola, ele estava sempre a pisar, mas a amizade continuava lá, firme, forte, sempre a fazer as nossas pazes, a servir de apoio, a lembrar que não valia a pena brigaz que era inadmissível romper, que nós deveríamos nos entender ou ainda iríamos para a cama sem comer a sobremesa.

Mas vamos voltar às pedras do MAM. Isso, já disse, foi há exactas duas décadas. Sei disso porque era aniversário do Alexandre, como também foi a semana passada. A diferença é que agora ele está a fazer trinta e nove anos. Antes havia a iminência da crise dos vinte, agora há o epílogo da crise dos trinta e o prólogo da crise dos quarenta. Lá atrás, o Alexandre estava assustado com os seus dezanove anos. E falava muito de esperança ou, mais precisamente, da falta dela, da desesperança, típica reacção de quem está assustado com a vida, porque a vida, desde que se tenha, assusta. Alexandre abanava a cabeça, balançando o seu vasto topete (hoje, ele é careca), indagando se o que seria de si dali a vinte anos. Eu também abanava a cabeça (nunca tive topete para balançar, o meu cabelo sempre foi ruim) e tentava dizer qualquer coisa que pudesse acalmá lo, me acalmando por tabela, pois também não tinha a mínima ideia do que seria o meu futuro.

Futuro. Lembra se do tempo em que falávamos muito do futuro? Que o futuro é que era? Que no futuro é que tudo iria acontecer e crescer e trazer imensas coisas e belos verbos terminados em «er»? Lembra se do tempo em que pouco olhávamos para trás, porque pouco tínhamos para olhar, e que para a frente é que se ia, tentando abraçar o mundo com as pernas, saciando a nossa fome de vida com a voracidade de um etíope perdido num McDonald's?

Quem tem trinta e muitos, quem beira os quarenta, tem dificuldades de falar do futuro. Não que não pense no assunto, apenas não é suposto conversar sobre o tema. Ë como se o futuro fosse um território apenas dos jovens. Ë como se colocassem na palavra futuro uma placa a dizer «Propriedade particular. Cão perigoso. Não se aproximem».
Pois é, Alexandre, estão a tentar roubar nos o futuro. Estão a tentar dizer nos que, pela nossa idade, não vale a pena pensar no amanhã. Que o que está feito, está feito. Que o que não deu até agora, já não vai dar.
Mas, amigo, eu proponho algumas coisas diferentes. Proponho que mandemos os confomados para aquele lugar. Proponho que nunca deixemos que nos convençam que já não temos o direito de virar a nossa própria mesa. Proponho que o nosso direito de sonhar seja protegido pela constituição, se não a do país, pelo menos a das nossas vidas.
Proponho voltar pelo menos mais uma vez às pedras do MAM, da onde na verdade nunca saímos. Porque a palavra «aniversário» vem do latim «anniversarius»: «annus» (ano) «vertere» (voltar), ou seja, «aquilo que volta todos os anos».
E que os seus aniversários (e, já agora, os meus aniversários e de todos os meus três leitores) sejam felizes. Não de uma felicidade boba, acéfala, pateta, daquelas que se imaginam sinónimo de alegria. Que seja uma felicidade daquelas que só podemos encontrar nos olhos e na alma de quem sabe que vale a pena esperar, sem desesperai; pelo que ainda há de vir

Ou como diria o nosso Tio Olavo, citando o poeta Jorge de Sena: «Esperar.../ mas mudar de esperança.../ Não esperar continuamente a mesma coisa/ ainda que ela seja indefinida/ Mudar.../ Se hoje esperamos isto/ e amanhã esperamos também isto,/ digamo nos que esse "isto" é outra coisa .../e sê lo á/ porque, não sendo nada,/ será o que quisermos./ E mudar p'ra outra esperança/ ou chamar outro nome à mesma esperança/ é quase pensar já satisfeita/ a que deixámos./ Esperar?... Sim.../ Mas de quando em vez mudar de esperança.».

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Vida de solteiro

PAPEL EM BRANCO. SEMPRE TIVE HORROR DE papéis em branco. Um papel nunca deve estar vazio. E preciso sempre uma palavra, um traço, um rabisco para que o papel ganhe vida, sobreviva, como um quase afogado precisa de um beijo agressivo do nadador salvador.

Papel em branco, Vida em branco. É acordar e olhar para o lado sem saber muito para onde se tem de ir É viver cada dia como um eterno primeiro. É estar disponível para tudo e para todos, pois fora o que se tem (livros, discos, roupas, móveis e amigos), não tem nada de perpétuo ou obrigatório.

É a vida de solteiro. Dos solteiros puros e duros. Daqueles que nunca se juntaram a um colectivo doméstico duradouro (mais de três meses sob o mesmo tecto já considero casamento). Solteiro e sem filhos, isso também é importante. O verdadeiro solteiro não tem crianças para visitar que não sejam filhos dos outros. Não tem que educar ninguém, nem servir de exemplo. Pode cometer as maiores burrices do mundo, fàzer as tristes figuras todas do catálogo, que ninguém tem nada com isso.

A partir de uma certa idade, descobrimos todos os nossos amigos casados. E, por acidente, sorte ou destino, talvez você seja a excepção. Eo meu caso. Não que não tenha também amigos solteiros, mas esses têm quase todos menos dez anos do que eu, não valem para a conta, são de outra geração. O certo é que a maioria dos homens do meu grupo já deu o nó (alguns por duas ou três vezes).

Não sei se já reparou. mas as mulheres é que ficam solteiras, os homens não. Tem mulher que escolhe muito ou escolhe errado, daí para ficar para tia é um passo. Homem não é muito de escolher Prova disso é que, mesmo depois de casados, continuam a querer sair com outras, sinal de que se pudessem ter todas não perderiam tempo só com unia. No fundo, como diria Freud, não fosse a nossa mãe ter preferido ter relações com o nosso pai e era já com ela que ficávamos. Mas, prontos, não deu, paciência, o negócio é seguir em frente.

Em frente. Os solteiros não podem parar. Têm sempre que tocar o barco com mais pressa, com um verdadeiro sentido de urgência, como se devêssemos a nós e ao mundo alguma coisa. Um casado pode perfeitamente dizer que passou o fim de semana em casa a não fazer nenhum. Um solteiro não. O solteiro tem que ter saído e ido a festas e bebido muito e participado de orgias onde trapezistas alemãs faziam sexo com texugos. Um solteiro tem de prestar contas com a sociedade e validar o seu papel de ser, mais unia vez, um papel em branco onde qualquer história pode ser escrita.

Um solteiro também é unia ameaça. Pode perguntar a qualquer mulher casada se gosta que o marido tenha amigos solteiros. Não, não gosta. O amigo solteiro é sempre um projecto de libertino, um guerrilheiro infiltrado dos prazeres mundanos. O solteiro não presta, pois se prestasse já estaria casado. Se não casou é porque é um pulha, tão pulha que nenhuma mulher quis lhe pôr as mãos. O solteiro é a serpente no paraíso e a maçã é tudo aquilo que os seus maridos não devem provar. Claro que enquanto metáfora a história de Adão e Eva não parece a melhor para estabelecer comparações, mas as mulheres são assim mesmo, gostam de deturpar os factos desde que isso ajude a estabelecer os seus propósitos.

Converso corn Jorge sobre isso. Jorge também é solteiro mas não por opção. E daqueles que estão sempre a querer casar ruas que levam sempre com os pés das pretendidas.
É um tipo raro de solteiro, é uma espécie quase em extinção (até porque não conseguem se reproduzir em cativeiro, ou seja, não conseguem casar, constituir família, essas coisas). Jorge tinha tudo para ser um bom pai e um bom marido. O problema é que ele tem tudo isso demais. Explico: Jorge é bem parecido, tem um bom emprego, gosta de crianças, tem casa própria, carro do ano, bom gosto para roupas, é divertido, culto, entre muitas outras qualidades raras de se encontrar reunidas na mesma pessoa. E esse é o busiilis da questão. As mulheres não acreditam na coisa toda. Um homem desses com quase quarenta anos e solteiro deve ter algum problema de fabricação. E o Jorge tambem não ajuda. Via de regra, depois de algumas semanas de namoro, quando as mulheres começam a deixar peças de roupa na sua casa e a dizer coisas em «casalês» (do género «somos», «vamos», «gostamos», etc), o Jorge empolga se e passa a falar em casamento. Terrível erro. Quem deve falar em casamento é a mulher, nunca o homem. Homem que quer casar é tarado ou mentiroso. Mas o Jorge, na sua ânsia de deixar de ser solteiro (na verdade, um falso solteiro, um farsante que denigre a nossa imagem de valentes solitários), vai sempre com muita sede ao pote e assusta as pobres raparigas. No primeiro momento elas até acham romântico e charmoso um tipo que fala em casar com tão pouco tempo de namoro. Mas aí elas vão conversar com as amigas e o veredicto é sempre terrível: «Aposto que ele já é casado e tem filhos na Espanha», «Uma vez li no jornal a história de um fulano que estrangulava as noivas no dia do casamento. Matou umas cinco até ser preso», «Amiga, sai dessa enquanto é tempo. Tem certeza de que ele não é gay?»

Outro caso sintomático foi o do Aifredo. Solteiro compulsivo, era corno uma espécie de líder para todos nós, mesmo os casados. O Alfredo representava a solteirice sem culpas, sem meias tintas. Era tão solteiro que raramente era convidado para a casa de alguém. Nenhuma esposa honesta queria tê lo no seio seu sagrado lar. Ademais, o Alfredo não era homem de perder tempo na casa dos outros. No máximo, gastaria os seus dias e noites na casa das outras (que eram muitas e que estavam sempre a ligar para o seu celular a propor programas lúbricos que envolviam algemas, chicotes, natas batidas, frutas da estação e alguma manteiga para barrar no pão).

Até que um dia o Alfredo apareceu com uma aliança no dedo. Ninguém percebeu. Depois de 37 anos de vida como um solteiro empertigado, o homem de todas as mulheres e de nenhuma, aparecia agora casado. E, pior, com ar absolutamente feliz, a dizer que tinha encontrado a mulher da sua vida.
Mas, Alfredo, ela é assim tão bonita?
Não. E feia. Só fui para a cama com ela porque estava bêbado, tão bêbado que faria sexo com um pinguim achando que era uma freira.
Então o que é? Ela é rica?
Pobre. De pai e mãe. E ainda tem que sustentar urna avó cega que mora lá pelos lados da Caparica.
Já sei. Ela é fantástica na cama. Sabe todo o Kama Sutra, indusive as notas de pé de página daquela edição russa.
Não. E péssima. Acho até que é frígida. E, já agora, também é burra, tem mau hálito e um pouco de chulé.
Vendo o espanto geral, Alfredo olha para baixo envergonhado e resolve desvendar o mistério.
Foram as meias.
As meias?
Sim, as meias. Depois daquela primeira noite, quando acordei, ela estava a cerzir as minhas meias. Desde que saí da casa da minha mãe sempre andei com as meias furadas. Tinha vergonha, mas o que poderia fazer? Aí naquela manhã abro os olhos e vejo na cama uma pilha de meias cerzidas e ela a costurar o último par Deu me uma coisa, comecei a chorar e só parei quando ela aceitou o meu pedido de casamento.
Fez se um silêncio na roda. Os casados começaram a abanar a cabeça e a entreolharem se como que a partilhar um segredo. Os solteiros foram para casa cabisbaixos, amaldiçoando as suas meias puídas..

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Teresinha

NO INÍCIO ERA APENAS UMA CRISE de meia idade, daquelas que não parecem que vão ter grandes consequências. João estava farto daquilo tudo. Do pessoal do escritório, dos vizinhos, dos parentes, da ex mulher, enfim, de todos. Levara, durante trinta e cinco anos, uma vida pacata e com altos índices morais e cívicos. Não fumava, não bebia, nunca tinha entrado num casino, nem feito coisas um bocadinho menos banais como praticar sexo tântrico num trapézio com uma anã albina lambuzada em mousse de chocolate Boca Doce». O gesto menos próprio que uma vez cometera foi ter tirado toda a roupa e mostrado a pila para o padre durante um baptizado. Mas nessa época, tinha três anos e ninguém se assustou.

João estava farto. De tantas coisas que não sabia mais bem do quê. Daí que ter entrado naquele estúdio de tatuagens não tivesse sido um acto baseado em grandes reflexões. Na verdade, ele tinha ido ao Bairro Alto apenas para visitar uma tia velha e carcomida. Não saíra de casa a pensar em fazer nada que mudasse a sua insípida existência. Mas agora estava ali a tatuar o nome «Teresinha» no braço de uma maneira bem visível.

João não conhecia nenhuma Teresinha. Mais: não conhecia nenhuma mulher que pudesse tratar no diminutivo. Nem mesmo a ex esposa algum dia fora alvo de tal intimidade. Enquanto o casamento durou, raros foram os risos e parcos os prazeres. Leonor (esse era o nome dela) era uma mulher hirta, com hábitos espartanos, uma voz gélida e uma estranha atracção por fotografias de pés a preto e branco.

Ao chegar ao escritório, Dr. Palhares, o seu chefe, foi o primeiro a reparar. Teve intenções de chamar João ao gabinete e exigir explicações. Aquela era uma empresa séria, tradicional, fundada nos bons tempos de Salazar, quando o mundo ainda era decente e fazia algum sentido. Mas, em vez disso, Dr. PaIhares trancou se na sua sala e começou a chorar baixinho. Fagundes, o director de recursos humanos, mal viu a tatuagem do João, percebeu que algo de terrível estava prestes a acontecer, que aquele era o último dia de uma era tranquila, rotineira e profundamente aborrecida. Ninguém falou nada, ninguém pensou sequer em tocar no assunto. Mas passadas algumas semanas, todos no escritório exibiam vistosas tatuagens. O Manei da expedição trazia no braço uma "Marta" em vermelho. O Ananias da contabilidade desfilava uma suspeita «Daniela» no pescoço. Até mesmo a dona Mercedes, conhecida na empresa por vender bolos para ajudar nas obras da igreja, apareceu com um garboso «Jucão» no pulso esquerdo. Razão de alguns constragimentos, tendo em vista tratar se do mesmo «Jucão» que o Dr. Palhares mandara gravar no peito.

Com a família não foi muito diferente. O pai do João, um general reformado, desaprovou publicamente a tatuagem mas intimamente recordou com extrema felicidade uma certa Teresa que havia conhecido nos anos 70, numa ida para vistoriar as tropas do "Elefante Branco". A mãe recolheu se ao silêncio, mas começou a tricotar umas roupinhasjá a pensar nos futuros netos. O irmão mais velho abraçou o João longamente e foi se embora emocionado, não sem antes exclamar várias vezes: «Meu grande garanhão!»

João estava sozinho em casa a ver «Os Malucos do Riso» quando a campainha tocou. Abriu a porta e surpreendeu se ao ver que era Leonor. Desde a separação, haja quatro anos, nunca mais tinha posto os olhos nela. Nas últimas vezes que se encontraram, Leonor fizera questão de extravasar o que sentia por ele, deixando de o tratar pelo nome e chamando o às vezes de palhaço, outras de pateta e, o mais comum, de palerma (Leonor sempre tivera uma fixação por ofensas começadas pela letra "p"). Agora ela estava ali, no meio da sala, vestida com um longo casaco de vison vermelho que, sem dizer uma palavra, fez questão de despir, revelando o seu hirto corpo nu. Ainda muda, Leonor arrancou com a boca o pijama do João. Lambeu lhe os pés com sofreguidão antes de atirá lo contra a parede e iniciar uma sessão de sexo que durou algumas horas e centenas de páginas do Kama Sutra. Depois deitaram se exaustos no tapete da sala e fumaram uns cigarros.

A vaca.
0 que, Leonor?
A vaca. Quero que termines tudo com ela senão ainda cometo uma loucura.
Mas que vaca, Leonor?
Não se faça de desentendido, seu pulha. Já contratei dois brasileiros. Ou a Teresinha sai do país em dois dias com as próprias pernas ou terá de fazer isso em cadeiras de rodas.

Então Leonor agarrou o João pelo pescoço, algemou o e começou a chicotea lo enquanto gritava:

Fala a verdade. Eu sou muito mais mulher do que ela, não sou?

João ainda pensou argumentar, mas aproveitou se de que Leonor o tinha amordaçado para apenas assentir com a cabeça várias vezes.

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Have a nice day
Ou o que é o optimismo depois dos 30 anos.

OUTRO DIA, ACORDEI BEM DISPOSto. Quase caí da cama. Odeio abrir os olhos e um sorriso ao mesmo tempo. Porque, via de regra, dias que começam felizes acabam sempre mal. Enquanto que quando você se levanta com o pé esquerdo, tropeça no sapato ao lado da cama, cai e bate com a cabeça no criado mudo, provocando um grito de dor, que acordará a vizinha do andar de baixo, aquela velha gorda e suada, que chamará a polícia imediatamente, denunciando o que ela acredita ser finalmente o assassinato premeditado da sua esposa, que a vizinha tem a certeza que não vale nada e anda com outros homens, razão que justifica o seu acto treslocadode acabar com a raça daquela adúltera, conforme a velha irá dizer ao delegado, quando todos forem para a esquadra desfazer o mal entendido, bem, um dia assim só poderá melhorar daí em diante.

Há aquela velha história que diz que o pessimista é o optimista bem informado. Pode ser, pode ser. Mas, sejamos sinceros, ser optimista no mundo contemporâneo virou sinónimo de apalermado (como se o "p" mudo da palavra representasse um pateta camuflado).

De certa maneira até concordo com a análise. Tudo o que existe de grande e importante foi descoberto pelos inconformados e não pelos felizes. As maiores obras de arte da história foram concebidas por angustiados, melancólicos e azarados em geral. É raro encontrar alguém que valha realmente a pena e que seja uma poliana encartada.

Quem tem trinta e tantos sabe bem o que quero dizer. Somos analisados mais pela nossa capacidade de sobrevivência do que por nossa beleza ou inteligência ou outra coisa qualquer. No fundo é como se o mundo dissesse: És fantástico. Tens um emprego de caca, os filhos são mal criados, o crédito habitação não estará saldado antes de 2030, todos os seus traumas da infância e da adolescência estão exactamente no mesmo lugar e, mesmo assim, ainda consegue dizer Bom dia! todos os dias, como se um dia o dia fosse realmente bom e não apenas uma mera figura de retórica.

Mesmo assim, é melhor não exagerar. Nada de sair por aí a dizer, como um Leibnitz redivivo, que esse é o melhor dos mundos possíveis. Tudo bem que essa é a mais pura verdade (dizem o tempo em Marte é péssimo e que as venusianas são uns coiros), mas não vale a pena espalhar por aí a notícia. A maioria das pessoas não pensa muito sobre o assunto (aliás, a maioria das pessoas não pensa pura e simplesmente em nada; quase a totalidade dos seres humanos usam a cabeça apenas para pendurar as orelhas). Para ser respeitado é importante manter um pé na tristeza e outro na felicidade. É isso que pode fazer com que você seja considerado uma pessoa complexa (o que é um dos maiores elogios que alguém pode receber hoje em dia).

Complexa. Ou seja, com vários matizes, vários ângulos, várias pontas, várias contradições. Quem é complexo tem carisma, chama a atenção, tem companhia. Os simples, não, esses não vão a lado nenhum. Os simples são execrados, desconsiderados, não são convidados para festa nenhuma de jeito. Os complexos é que estão a dar.

Lembra se daqueles cigarros, os Provisórios e os Definitivos? É igual. Os complexos são mais caros, dão mais status, tem mais valor de marca. Os simples só servem para os pobres e incultos, não têm filtro, nem versão em 100 mm.

Daí que fico surpreso quando encontro alguém que reconhece que não tem nenhum problema de maior, que as suas mazelas são do mais banal que há e que não merecem tempo de antena em lado nenhum, muito menos na nossa conversa. Se quer ser notado, deve ter sempre um grande problema para resolver. Se for um problema sem solução, melhor ainda, esses é que são dos bons. E se não tem problema algum, meu caro, invente.

Mas, claro, se você tem trinta e tantos não precisa inventar nada. Basta pôr para fora o inconformado que tem dentro de si. Não bata na mulher, nem chute o cão. Mas não ande por aí armado em pessoa feliz e resolvida. Além de não ser verdade, ainda corre o risco de, se cruzar comigo, levar um estalo na tromba.

Have a nice day..

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Tintões, uni vos!
Ou as diferenças entre os homens e as mulheres com mais de trinta anos

PAUSA PARA MEDITAÇÃO. O QUE É que estou a fazer aqui a escrever essas crónicas?
Já passaram alguns meses desde que o DNA me convidou a relatar as minhas impressões sobre os homens de trinta e tantos. Penso que está na hora de fazer um balanço.
Confesso que nunca me imaginei como uma Margarida Rebelo Pinto de calças. Mas, bolas, nunca me imaginei a fazer um monte de coisas e isso não quer dizer que não as faça. E que não tenha prazer em fazê las. E que não me sinta um verdadeiro maluco quando percebo que as fiz. Adiante.
Desde o primeiro texto percebi que estava a comprar uma briga e a fazer novos amigos. A briga tem a ver com reserva de mercado. As mulheres ficam, via de regra, possessas com a filosofia desta página. Acham estranho que eu escreva quase exclusivamente sobre homens e para homens. Percebo os ciúmes, não estão acostumadas.
Nas bancas de jornais, pululam revistas femininas com todos os tipos de artigos a remeter ao universo feminino. Mas isso é normal. Todas as publicações do país têm raparigas e senhoras de plantão a falar sobre o que acham da vida, do amor e dos homens. Mas isso também é normal. Na TV então a coisa é absoluta: são programas e mais programas apresentados por e para mulheres. Sem falar daquele canal do cabo dedicado 24 horas exclusivamente a elas. Mas isso, nem vamos discutir, é normalíssimo. Agora, quando um rapaz decide escrever sobre as mazelas na alma masculina, não, não é normal. E a coisa é classificada de redutora e machista.
Peço desculpas, mas não é essa a intenção. Se não escrevo sobre as mulheres de trinta e tantos é porque não tenho talento para tanto. Nem gosto de escrever sobre coisas que não percebo. De resto, que eu saiba, não há mulheres de trinta e tantos. Têm todas vinte e nove anos, por muitos anos que tenham.
Vou ser muito sincero, nós homens olhamos para as mulheres com um misto de interesse e pânico. Sabe aquela história de os homens serem de Marte e as mulheres de Vénus? É a mais pura verdade. Com o detalhe de que os marcianos são uns cobardolas miseráveis e as venusianas é que mandam na Terra. Outra vez, adiante.
Quando falo de fazer novos amigos, tem a ver com o facto de que, até onde vejo, é grande a legião de carecas e barrigudos que lêem esta coluna. De vez em quando encontro um dos meus pares que não se inibe de apertar o próprio (e volumoso) abdomen e dizer que me lê e que acha que tenho razão no que digo. Fico comovido com essas demonstrações de carinho. Até começar a escrever aqui não sabia o quanto somos órfãos no planeta.
Ninguém nos liga nenhuma. Ninguém nos dá atenção. Ninguém publica uma revista com artigos como «Calvicie: é dos carecas que elas gostam mais!» ou «Como trocar a sua mulher de quarenta por duas de vinte» ou «Barriga ou calo sexual?» ou ainda «Não pague os seus impostos, mande o seu chefe bardamerda, fuja para a Argentina com a secretária gostosa do director financeiro e seja feliz!»
Vamos ser sinceros (e, já agora, sinceras também): é possível imaginar um canal chamado SIC Homem? Com programas onde barbudos o teorizar sobre o desconforto do exame na próstata ou fazer testes para descobrir a melhor cervejinha do país?
Bem, a culpa também é nossa. Sempre que alguém decide investir numa publicação masculina (e se não quiser falir com isso) a coisa mais certa é colocar gajas descascadas na capa e mais algumas dezenas de páginas com o mesmo material no interior. Até nisso somos diferentes. Não existe revistas de homens nus para as mulheres. Revista com gaios em pelota é coisa de gay. Mulher não tem grande interesse em ver homem nu. Acha feio, perda de tempo, quem já viu um, viu todos. É como diz um amigo meu: quem gosta de homem é bicha; mulher gosta é de conta bancária, jóias e carro do ano.
Mesmo assim, não pretendo desistir. Vou continuar a dar os meus conselhos úteis aos trintões da praça. Tentarei não chatear muito as meninas mas serei fiel ao meu eleitorado. Rapazes de meia idade, uni vos! Só assim é que jamais seremos vencidos.
Ou como diria o meu Tio Olavo: »Aos trinta e cinco anos, descobri o meu lado mulher. Chamava se Vanessa, tinha bigodes, usava botas da tropa e durante um tempo andou apaixonada pela Sophia Loren.».
(Texto publicado o DNA em 7 de Junho)

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Nem Freud explica
Ou o que as mulheres querem dos homens depois dos 30.

LAURA OLHA PELA JANELA DO COMboio e pergunta me o que há para além do rio. Respondo convicto: «O resto do país. E rio me por dentro com a minha piada de gosto duvidoso. Laura não ri da gracinha.
Aliás, Laura não ri. Nunca. Faz parte do seu show manter um eterno ar enigmático, como se estivesse sempre a acabar de ouvir uma grande verdade metafísica. Era esse inclusive um dos seus grandes problemas: ela levava se muito a sério e, consequentemente, a todos que conhecia. Ainda me lembro da noite em que derrubei uma banana flambada ainda acesa no seu vestido verde musgo em meio ao copo d'água de um casamento de um casal razoavelmente desconhecido. Por algum motivo, Laura não só não achou graça na coisa como ainda ficou uns dias sem falar comigo. 863 dias para ser mais exacto.
Falta pouco para chegarmos a Lisboa. Laura tem o semblante carregado, pergunta se o que deu errado. Se pelo menos ela verbalizasse a questão, eu poderia responder: "Nada, nada, nada". Ou «tudo, tudo, tudo (a verdade, às vezes, depende do freguês).
Encontramo nos a primeira vez há muitos anos. Laura, por aquela altura, lembrava muito a jovem Nastassja Kinsky. Hoje em dia, é difícil saber. Há uma década que não vejo uma foto actualizada da bela Nasassja. Laura agora tanto pode parecer com ela como com uma tia distante da menina. Mas, sim, ainda é bonita.
Laura não casou nem teve filhos, atrapalhada que estava com os homens e com a vida (não necessariamente nessa ordem). Houve um tempo em que acreditou que estava apaixonada por mim, mas era um equívoco (eu, não a paixão). Mas isso era coisa do passado. Como quase todos os equívocos eram agora coisas do passado. Com quase 40 anos, Laura já não tinha tempo, nem líbido, para se equivocar com os homens. Laura agora tinha certezas: nenhum gajo presta, todas as mulheres são vítimas e homem nunca pisou na Lua.
Laura espeta me com um olhar de reprovação. Pensa no tempo que perdeu comigo e tem vontade de bater me. Eu penso no tempo que perdi comigo e concluo que mereço apanhar até cair e me afogar numa poça do meu próprio sangue.
Eu tenho esse problema com as mulheres. Sempre acho que a culpa é minha. Mesmo que, na maior parte das vezes, apenas tenha reagido ao facto delas terem decidido ficar comigo. Entreguei me sempre fácil e docilmente para só algum tempo depois pedir o meu corpo de volta, alegando que precisava dele para trabalhar e fazer outras coisas (e olha que o corpo nem é lá grande coisa, embora já tenha acabado de pagar o leasing). Elas porém, sem nenhuma excepção, sentiram se sempre traídas e abandonadas por um pulha. Não é bem assim.
O caso da Laura, por exemplo. O sonho dela era casar com um fulano igual ao Fernando (que é casado com a Lígia, nossa amiga comum). Ela queria alguém tão atencioso como o Fernando; tão educado como o Fernando; tão simpático como o Fernando; tão Fernando como o Fernando. O problema é que eu não sou o Fernando (fora o próprio Fernando, ninguém é). Levei vários meses e muito verbo para convencer Laura disso. Até hoje ela acha que foi má vontade minha, que com um pouco de esforço eu chegava lá. Não chegava. Até porque não queria realmente ir a lado algum.
«0 que as mulheres querem?, perguntava se Freud, entre uma e outra dose de ópio. As mulheres querem formatar os seus homens. Mas a vida não é bem assim. Ou elas apanham os tipos na mais tenra idade, quando ainda são meio bananas, ou podem esquecer da tarefa. Depois dos trinta e meios os homens congelam o carácter. No máximo, pioram no (melhorar, nem pensar). Daí que dificilmente um solteirão de trinta e tantos, daqueles que nunca deram o nó na vida (que nem mesmo dividiram o apartamento tempo suficiente com uma rapariga a ponto dela pendurar as suas cuequinhas para secar na torneira do duche) traia a classe e pare numa igreja ou notário para contrair o sagrado matrimónio.
E, amiga, é triste mas é verdade: os trintões solteirões são a raça mais difícil de laçar (mais que um rinoceronte embebido em Red Bull). Eles têm autonomia financeira, a vida encaminhada, têm manias domésticas, hábitos imutáveis e se já não reproduziram, não pensam mais no assunto. Tentar repaginar um trintão é o mesmo que tentar tapar o buraco da parede de uma represa com o dedo. Mais cedo ou mais tarde a coisa estoira e você vai na enxurrada.
Laura ouve tudo isso e mal consegue controlar a sua ira. Machista é o melhor elogio que me faz. Não sei sei se já percebeu, mas em matéria de homens as mulheres são meio autistas. Se somos sinceros, não nos ouvem e ameaçam fuzilar nos. Se mentimos, mais cedo ou mais tarde descobrem e fuzilam nos a mesma.
Para minha sorte, o comboio chega à estação. Laura leventa se cinematograficamente e prepara se para ir embora. Mas antes pergunta me o que haveria para além daquela despedida. Respondo convicto: «O resto das nossas vidas.
Laura, mais uma vez, não ri da gracinha..
(Texto publicado no DN em 7 de Junho)

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Esfole um gato e seja feliz
Ou o que é ser normal depois dos 30 anos

A VIDA É MAIS OU MENOS COMO um mau livro de detectives: mais cedo ou mais tarde toda a gente começa a falar e a deitar os podres para fora, a tirar os esqueletos do armário, a tentar colocar a culpa no mordomo.

Essa fase até pode acontecer antes ou depois dos trinta e tantos, mas não há época melhor do que a meia idade para tentar livrar se de velhos fantasmas e trabalhar para que novos fantasmas não apareçam.
Há quem seja prático e procure um psicanalista para fazer o trabalho sujo. E, então, com a atenção de um profissional ao seu serviço, começe a abrir as gavetas da alma, tirando de lá todos os tipos de objectos putrefactos e inúteis que coleccionamos ao longo da nossa curta e dispensável existência.
Como os analistas são pagos para não ter nojo das nossas porcarias, vão remexendo no lixo à procura de algo que preste ou que possa ser concertado. Quase sempre conseguem dar a volta ao texto, mas às vezes não é fácil («Veja bem, essa sua tara pelo Frank Sinatra da primeira fase até denota algum bom gosto musical,já pensou em largar a presidência da empresa e ir tocar acordeão na escadaria do Metro?» ou «Hum, não, não, o facto do senhor coleccionar sapatos femininos não tem nada demais, onde já se viu. É apenas uma demonstração tardia de apego ao design. Não vale a pena debruçarmos nos sobre o tema. Prefiro antes vottar àquele seu sonho recorrente, aquele do rapto do Pai Natal, em que aparecem o Lobo Mau, vestido em roupa interior de cabedal, a Cicciolina e dois rapazes fisioculturistas que têm os seios iguais aos da Pamela Andersen.»)
Mas como a maioria das pessoas não tem massa para pagar por uma análise, acaba por recorrer aos ouvidos dos amigos que, como todos sabem e o dicionário confirma, é o melhor sinónimo possível para a palavra penico.
O meu caso então é terrível. Acho que eu tenho cara de «Conta aí...», ou seja, não sei se é pelo meu ar meio apalermado (que é uma garantia de que nem que eu quisesse conseguiria usar o que ouço contra quem contou) ou por ter alguma semelhança com um padre do interior (tenho dúvidas se isso é um elogio), a verdade é que, volta e meia, conhecidos (o que até que é esperado) e desconhecidos (aí é que a coisa pia mais fino) contam me segredos que fazem duvidar daquela baleia de que o ser humano é uma raça superior.
E nem estou a referir me necessariamente a coisas relacionadas ao sexo. Não, graças a Deus, o máximo que já ouvi de inconfidências sobre o assunto resume se a meia dúzia de casos banais de infidelidade matrimonial (vamos ser sinceros, encornar e ser encornado são os dois desportos mais antigos do mundo). Nunca ouvi nada que envolva pigmeus albinos besuntados em ovos ou texugos selvagens (já sobre texugos domésticos, bem..).
Mas vamos aos factos. Dou alguns exemplos (todos eles reais). Uma amiga há trinta anos não bebe água. Bebe sumos, ice tea, refrigerantes em geral, mas água não. O estranho é que ninguém sabe desse seu hábito. Nem o marido desconfia. A água, como ela confessou tem qualquer coisa de molhado que lhe causa uma certa repugnância. Certo, claro, então tá.
Um amigo, já um senhor de quase 40 anos, director de uma multinacional, guardou uma insólita mania da infância que é a de tocar músicas a soltar gases em geral (os arrotos e os outros). Cheguei a comover me ao ouvi lo arrotar outro dia o «Parabéns a Você». Mas nada que chegasse aos pés da sua maravilhosa improvisação do tema de «Dr. Jivago» a partir dos intestinos.
Outro amigo só consegue dormir com duas almofadas. E daí? Bem, o problema é que as almofadas têm de ser as mesmas que o acompanham há mais de vinte anos (inclusive em viagens). Detalhe: elas nunca foram lavadas. Nem queiram saber a opinião da esposa dele sobre o assunto.
Pessoas que usam dois pares de meia de cada vez, conheci umas quatro. Pessoas que discutem sozinhas, a ponto de numa briga feia ficarem semanas sem dirigir a palavra a si mesmas, são quase todas. Idem para as pessoas que se deleitam com prazeres secretos a partir de actos aparentemente banais que envolvam a cera dos ouvidos e os macacos do nariz.
Tudo isso para dizer o quê? Bem, é só para lembrar que é risível a necessidade de toda a gente parecer normal. Além de uma perda de tempo (ninguém acredita) é só mais uma razão para causar stress desnecessário e infelicidade premeditada. Sendo assim, amigo, ponha para fora o anormal que tem dentro de si. Gosta de pôr a língua na ponta nariz (há quem consiga), faça isso já, aí no meio da praça, no meio da rua. Ninguém se vai assustar (se calhar ainda é aplaudido). O seu sonho é trabalhar descalço? Qual é o problema (além de talvez olfactivo)? Conheço um presidente de banco que faz isso todos os dias (apesar de nunca referir o assunto e de todos os seus subordinados fingirem que não percebem).
Desde que não faça coisas ilegais (como dançar lambada em elevadores lotados de prédios ministeriais, por exemplo), ninguém tem nada com isso.
Ou como diria o meu Tio Olavo: «Há mil maneiras de se esfolar um gato. Mas há só uma que dá prazer ao gato.».

(Publicado em 31/5/03)

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Um jantar com Chet
Ou o que é o reencontro para quem tem mais de trinta anos.

PARECIA, NÃO DAVA PARA TER A certeza, que a música de fundo era um «The best of...» qualquer de Chet Baker. Mas com aquela amálgama de risos e vozes e pratos e passos que compunha a real banda sonora do ambiente, até poderia ser a Banda Eva.

Pedro Paulo mexe com o garfo na sua salada verde enquanto eu mexo sem tacto no nosso passado. Na verdade a salada e o nosso passado têm muito em comum: não tinham lá muito bom aspecto mas eram ambos inofensivos.
Há quanto tempo não nos falávamos? Oito, nove anos? O tempo passa, o tempo passa, repetia Pedro Paulo entre um suspiro e outro. É, o tempo passa, eu concordava para não deixar a conversa sem ritmo e sem rumo.

Ritmo e rumo sempre foram os nossos principais problemas. Pedro Paulo tinha sido em tempos o meu melhor amigo. Nunca tive a certeza de que a recíproca fora algum dia verdadeira. E isso fazia alguma diferença. Ritmo e rumo, já disse, era o que nos faltava. Cada um queria ir para um lado em diferentes velocidades, como dois presidiários patetas num daqueles filmes de fuga do presídio, atados um ao outro por um par de algemas e, por isso mesmo, não fomos juntos para muito longe. Mas antes, claro, tentei arrancar o braço dele à dentada e ele o meu.

My Funny Valentine». Sim, era Chet Baker de certeza, os meus conhecimentos de jazz estão cada vez melhores. Já sei quase tanto sobre o assunto quanto uma dona de casa meio surda do norte de Kentucky. Faço esse comentário. Pedro Paulo não ri (estranho, era urna piada). Onde foi que parámos? Pedro Paula pergunta. Como estava distraído, fiquei sem saber o que responder. Ele estava a falar de quando foi que parámos de ser amigos ou onde foi que parámos aquela conversa de chacha que estávamos a ter? Optei pela primeira opção. Não, não sei onde foi que parámos, nem porque parámos, nem porque estávamos a tentar ressuscitar o cadáver da nossa relação. Aliás, minto, essa última coisa eu sei. Tem a ver com o facto de que com a idade a memória afectiva fica meio baça e já não sentimos mais raiva de quem odiamos, nem estamos muito preocupados em lembrar discussões antigas em que, provavelmente, a razão faltava dos dois lados. Tem a ver com a realidade de que é tão difícil conhecer pessoas novas (ou novas pessoas, se preferirem) que preferimos dar uma nova chance às pessoas antigas que não vemos há milhares de anos e que algum dia (nem que fosse por um dia) sentimos que amámos, mesmo que essas pessoas sejam hoje apenas pálidas lembranças do que foram no passado, quo tenham perdido alguns dentes e multo cabelo, que tenham já casado e se descasado três vezes, que tenham dado cabo do próprio viço, que tenham se enquadrado, se adaptado, se conformado.

É um dos paradigmas dos trinta e tantos: o eterno retorno. Estamos sempre a querer voltar para os lugares de onde lutámos imenso para sair. Queremos retomar as coisas, os hábitos (principalmente os maus), os lugares e as pessoas. A retoma tem a ver com o próprio desespero (no sentido de ausência de esperança, de acreditar firmemente que o melhor é o que ainda está por vir). Ainda não vimos tudo, mas já vimos o bastante, o suficiente para saber que o mundo só muda para pior e as pessoas não mudam nunca, apenas parecem diferentes. Pedro Paulo diz que ainda vai ficar deprimido se eu continuar a falar dessas coisas desse jeito. Peço desculpas e tento ver o lado bom do nosso reencontro. A música do restaurante é óptima, por exemplo. Não, não é por aí. Tenho que pensar mais um pouco. Bem, estamos os dois vivos e com saúde (faço tá bua rasa da minha hérnia de disco), daí que proponho um brinde. Pedro Paulo avisa que a sinusite dele só piorou e que corria o risco de ficar diabético. Brindamos à mesma ao facto de estarmos vivos. Isso, por incrível que pareça, me animou. Sim, estamos vivos (que, como diria o grande George W. Bush, é diferente de estar morto). Vivos e inteiros. Com algumas cicatrizes no coração, mas nada que um penso rápido não resolva. Estar vivo conta. Vale muitos pontos no campeonato. Não que acredite muito naquela chachada de livre arbítrio. Tenho a certeza de que alguém está a escrever a história toda. E que eu morro no final. Mas, prontos, até lá ainda muita coisa pode acontecer. E é importante divertir se com a própria história. Com os próprios erros. Com os próprios azares. Ninguém é perfeito. Tudo tende sempre a dar errado e com certeza dará. Mas essa é a parte bacana da coisa. O processo. O durante. O até lá. É dormir e acordar. É saber que para grandes males, grandes remédios. E mais aquela infinidade de lugares comuns que as nossas avós e tias nos ensinam quando ainda somos miúdos, adivinhando que mais ~ou mais tarde nos vão ser úteis, mais úteis de certeza do que o que aprendemos na faculdade e naqueles livros estranhos, escritos por pessoas de nomes impronunciáveis. Canja de galinha para a alma. É isso aí. É o que precisamos. Todos. Menos erudição e mais sentimento. Menos pensamento e mais beliscões. E isso, Pedro Paulo, é isso. Se eu quisesse estar com uma pessoa perfeita, inteligente e bonita, não estava a jantar contigo. Não é por aí. Toda a gente que eu não conheço é perfeita. Toda gente que eu não conheço é extremamente honesta, não softa gases nem tira macacos do nariz. Mas eu não quero estar com eles, quero estar com quem, por algum motivo, por alguma estranha razão, por alguma química ou vudu, tem a incrível habilidade de me encantar. Não quero estar com santos(que, aliás, são uns grandes Chatos), prefiro antes estar corn o pior facínora do planeta, desde que ele seja meu amigo.
E com isso pedimos a conta, saímos e combinámos de nos ver mais vezes. Mas acho pouco provável. De certa maneira devíamos uma coisa urn ao outro. Um happy end, um belo ponto final. E aquele jantar tinha sido isso. Terno, macio e melancólico como a voz de Chet Baker. Que, aliás, já morreu. E eu não ando a passar lá muito bem. Ou como diria o meu Tio Olavo: "As coisas em geral não acabam até que tenham terminado."

(Texto publicado em 24 de Maio de 2003 no DNA)

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Como os nossos pais
Ou o que é reviver o passado para quem tem mais de trinta anos.

É MODA EM LONDRES, OU SEJA, não demora e será moda também em Portugal. São as chamadas School Dance, festas organizadas para trintões rememorarem os tempos de escola. A receita é simples: música dos anos 80 e roupas que remetem directamente para a época em que aquele bando de balzaqueanos bêbados que chocalha o esqueleto no salão eram colegiais. É uma mistura de Duran Duran com celulite; um cocktail explosivo de Police e lipoaspirações.

A ideia de fundo das School Dance é proporcionar um reencontro de colegas de turma e a simulação de uma máquina do tempo, remetendo toda a malta para uma era em que eram todos menos feios e mais felizes, menos sérios e mais loucos, menos carecas e mais magros.

A coisa segue uma tendência que vem dos EUA. Lá é imenso o sucesso dos sites que promovem o reencontro de ex colegiais. Só um deles, o classmate.com, tem cerca de 30 milhões de registados. Gente que aderiu sem pudores ao Complexo de Peter Pan, que tem dificuldade em crescer, em desligar se do passado, em usar os trapinhos da Diesel ou dançar trance ou hip hop.

Cá na terrinha o negócio tem tudo para prosperar. Cedo chegará o dia em que vou encontrar alguns dos meus amigos aqui do DNA numa School Dance lusa. A festa será num lugar entre o Frágil do Bairro Alto e a discoteca 2001 no Autódromo do Estoril. Lá estarão o Pedro Rolo Duarte (a dançar com a gravata na testa em cima de uma coluna de som) e o João Gobern, a fazer de DJ, a pôr um LP dos Táxi para girar na pick up e animar o pessoal. Você, claro, também estará convidado. E com um pouco de sorte ainda convence a Camila Coelho a dar uma voltinha nas dunas do Guincho, com a desculpa de que sempre é uma maneira de homenagear o GNR.

As School Dance e os sites de ex colegiais têm a ver corn um só fenómeno e já bem mais globalizado: o revivalismo dos anos 80. Ainda mal se dá por ele aqui por estas bandas, mas desde há uns dois anos a onda vem crescendo de importância um pouco por todo o planeta e principalmente na Europa.

Basta fazer as contas para ver que os grandes impulsionadores da coisa são as pessoas de trinta e tantos anos. E nem poderia ser diferente. São consumidores com alto poder de compra (para alguma coisa tem que servir trabalhar até tarde naquele emprego chato) e que têm imensa dificuldade de acompanhar a velocidade com que a informação circula no mundo hoje em dia.

Trata se de uma raça que surgiu e viveu toda a sua juventude sem a internet e a TV por cabo. Que garimpava as rádios à procura de pequenas pepitas musicais. Que gastava a mesada em revistas como a New Musical Express ou a Melody Maker, na esperança de decorar os nomes de bandas que levariam ainda alguns meses para ter um disco lançado no mercado nacional. Que nem no Amoreiras encontrava a maioria das marcas de roupas internacionais. Que para conhecer o continente tinha que passar pela aventura do inter rail.

Os ex jovens dos anos 80 sentem se razoavelmente perdidos na Torre de Babel em que o mundo se tomou na última década. Ainda olham para o telemóvel como um fantástico avanço tecnológico e mal aprenderam a enviar SMS. Navegam na rede ainda com uma dose cavalar de espanto e admiração mas é pouco provável que convivam com o ICQ como se fosse a coisa mais natural do universo.

Daí que de vez em quando precisem se encontrar num canto qualquer com os da mesma espécie. Seja numa festa ou na audiência do canal VH1. Tanto faz. O importante é sentir se seguro e protegido contra algumas modernidades que andam por aí. Tal como os nossos pais fizeram um dia.o que me faz lembrar uma velha canção da Elis Regina (ora bolas, não estamos a falar de reminiscências) que dizia:

«Não quero lhe falar, meu grande amor! Das coisas que aprendi nos discos / Quero lhe contar como eu vivi / E tudo o que aconteceu comigo.
Viver é melhor que sonhar! E eu sei que o amor é uma coisa boa! Mas também sei que qualquer canto! É menor do q'ue a vida / De qualquer pessoa.
Já faz tempo eu vi você na rua! Cabelo ao vento, gente jovem reunida! Na parede da memória! Essa lembrança é o quadro que dói mais.
Nossos ídolos ainda são os mesmos! E as aparências não enganam não,
Você diz que depois deles! Não apareceu mais ninguém.'
Você pode até dizer que eu estou por fora! Ou então que eu estou inventando / Mas é você que ama o passado e que não vê! É você que ama o passado e que não vê! Que o novo sempre vem.

Minha dor é perceber! Que apesar de termos feito tudo! Tudo, tudo que fizemos / Nós ainda somos os mesmos e vivemos! Ainda somos os mesmos e vivemos! Ainda somos os mesmos e vivemos! Como nossos pais..

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A vida é uma salsicha
Ou como superar a crise dos 30 anos.

TUDO NA VIDA TEM UM COMEÇO E um fim (fora a salsicha que tem dois). Passamos a nossa existência a começar e a acabar coisas e também a deixar sonhos, projectos, relacionamentos pelo meio, verdadeiros entulhos que se vão acumulando na arrecadação das nossas vidas. Mais cedo ou mais tarde temos que fazer uma arrumação e ficamos sem saber o que devemos deitar fora e o que vale a pena guardar, nem que seja porque se trata de uma boa recordação (como aquele sorriso da nossa primeira namorada ou o álbum de cromos completo da equipa do Benfica de 1973).

Tudo na vida é passageiro (menos o motorista e o cobrador). Mas porque é que agimos como se fossemos estar aqui para sempre? Lembro me de uma peça que assisti há alguns anos. No meio do espectáculo as luzes acendiam se e o actor principal falava directamente para o público e perguntava: Quem de todos nós aqui é que vai ser o primeiro a morrer?. A plateia vinha abaixo num misto de gargalhada histérica e imenso pânico. Porque a verdade choca. Sim, alguém teria que ser o primeiro. Graças a Deus, não fui eu. Graças a Deus, também não vai ser você. Adiante.

Mudando a linha de raciocínio (fique calmo, no fim tudo isso fará sentido; aliás só nõ fim de tudo é que tudo faz algum sentido), sabia que todas as nossas células morrem de sete em sete anos? E que novas células vêm substituir as antigas? Isso quer dizer que, do ponto de vista da bioquímica (sempre quis usar uma expressão pomposa como essa), já que não passamoa de um aglomerado de células, somos ao longo da vida vários seres distintos. Quem tem 35 anos já foi cinco pessoas completamente diferentes. E por isso que quem tem trinta etantos sente uma grande dificuldade em perceber qual é a ligação entre o que é e o que já foi, entre aquele homem razoavelmente sensato que vê no espelho e aquele puto de vinte e um anos que bebia doses cavalares de Super Bock pouco antes de partir para a porrada por causa de uma miúda sardenta que viu pela primeira vez e com quem nunca terá nada de muito importante além de um esfrega esfrega no banco da frente de um Fiat Panda amarelo, esfrega esfrega este que deixará a rapariga traumatizada e frígida, sem conseguir ter um orgasmo decente até aos 48 anos, quando então se encontrará com Estevão, um mecânico de origem marroquina, cujos dedos da mão direita são grandes e grossos, o que fará toda a diferença, mas isso tudo já é outra história que não vem a calhar neste momento. Na verdade não há nenhuma ligação entre os dois tipos (o do espelho e o rapaz). A única coisa que eles têm em comum é o número do BI (nem a foto na cédula serve para alguma coisa, como podem provar aqueles vastos cabelos desaparecidos em combate mais ou menos pela virada dos trinta).

Ter a noção deque viver é morrer várias vezes é muito importante. Permanecer agarrado ao que já foi é um dos piores erros que podemos cometer contra nós mesmos. E pedir demais para um simples mortal (e, amigo, deixe de ser presumido, é isso que você é). Mortal. Já reparou nessa palavra? Vê como é tudo tão óbvio, como tudo está tão escancarado e nós é que fazemos questão de não ver?

Quem tem trinta e muitos tem que matar o miúdo que já foi, o jovem que já foi, tudo o que já foi. Porque o que já foi, já foi. Há que deixar espaço nas nossas vidas para o que se é e para o que ainda vai ser (peço desculpas, mas hoje estou verdadeiro livro de auto ajuda).

Por isso é que a chamada crise dos trinta anos é uma fase lixada. Você é menos estúpido do que já foi e é muito mais idiota do que ainda vai ser. Já aprendeu a disfarçar as suas velhas inseguranças ejá adquiriu inseguranças inteiramente novas que não consegue disfarçar. Já teve muito tempo para ter conquistado uma série de coisas e pouco para realizar que a maioria das coisas que conquistou não era aquela com que sonhava. Ainda tem que aturar pacientemente os tipos com mais de cinquenta (incluindo pais, patrões e sogros) a dizer que 4u não passas de uma criança e quando diz a mesma coisa aos tipos de vinte (incluindo amigos, irmãos e namoradas) é atropelado por uma soberba indiferença do tipo estás para aí de novo a armar te em parvo, como se só porque tens um pouco mais de idade soubesses mais da vida do que eu. Na verdade não sabemos. E sabemos também.

A melhor maneira de ultrapassar a crise dos trinta anos é (desculpe me a expressão) ligar o foda se e partir para a frente. É soltar os travões. Não é olhar para o passado. Não é preocupar se com o futuro. É fazer no presente qualquer coisa de útil e agradável para si mesmo. Mesmo que seja um erro, mesmo que seja a coisa mais estúpida na opinião de boa parte do planeta.

Faça da sua vida uma salsicha. Uma coisa com dois princípios e dois fins. É como eu já disse: as suas células não são as mesmas de há dez anos nem vão ser as mesmas daqui a vinte. Na falta de desculpa melhor é sempre uma coisa que você pode usar depois para explicar o seu comportamento.

Ou como diria o meu Tio Olavo: «A minha filosofia de vida é muito simples. Encha o que está vazio. Esvazie o que está cheio. E, o mais importante, coce sempre que sentir coceira.» U
(Publicado em 10/5)

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Amigos, amigos
Ou o que é a amizade deposi dos 30

OUTRO DIA FIZ ANIVERSÁRIO. O que, venhamos e convenhamos, não é uma data lá muito importante dentro do calendário de eventos nacionais. Mas para mim costumava ser até há algum tempo. Não consigo precisar com que idade cheguei à conclusão que fazer aniversário era uma das coisas mais incómodas do mundo (só sei que quando tive essa visão havia um palhaço na festa, o bolo era no formato do Snoopy e que todos os meus convidados estavam a beber Fanta de ananás). Desde então tropeço na data com melhor ou pior humor. Mas tenho sempre um consolo: fazer anos é uma bela desculpa para você reunir os amigos.

Lembro me que quando tinha vinte e poucos, reunir os amigos significava fechar um restaurante, tal era o número de pessoas. Hoje em dia meus amigos mal enchem um elevador. Não acho isso nem mal nem bem. Nem que a culpa seja minha ou dos outros. A vida é que tem uma maneira própria de aproximar e afastar as pessoas. E tudo isso, claro, tem a ver com a idade.

Houve um tempo em que a coisa era mais ou menos simples: você tinha um leque bastante resumido de interesses (berlindes, rebuçados e os seios da professora Marta) e o outro também. Um belo dia se encontravam no recreio e quando percebia já haviam passados 30 anos e a amizade continua firme (o mesmo não poderíamos dizer dos seios da professora). Mais coisa menos coisa, era assim que ficávamos amigos. Não havia ciência no assunto, nem regras pré definidas. Amizade era uma coisa que nascia. E, com um pouco de sorte, morria junto com as duas partes envolvidas.

Mas um homem de trinta e tantos sabe que as coisas não são mais assim. Os amigos costumam ser aquele que trazemos da infância, no máximo da adolescência, sobrando pouco espaço para que mais gente entre ao barulho. Não que a coisa não aconteça, mas a tarefa não é lá muito fácil. Ninguém com essa idade joga berlindes (até parece que aquela dor nas costas permite que passe muito tempo agachado) nem come rebuçados (ah!, essa maldita dieta). Encontrar alguém que gosta do que você gosta é algo sempre muito difícil. Aliás, os gostos comuns deixaram até de ser o critério. De que adianta um amigo que gosta tanto de carros quanto você mas que tem a mania de dormir com as mulheres dos outros (o chato é que mais cedo ou mais tarde ele acaba por incluir a sua na lista). 0 fulano torce pela mesma equipa? Não vai servir de nada se ele se torna seu sócio e foge para o Rio de Janeiro mascarado de padre e com todo o seu dinheiro. O beltrano gosta tanto dos Abba quanto você? Meu filho, vamos ser sinceros, vocês dois têm um problema que merece ser discutido. E, bem, acho que acaba de achar um namorado, não um amigo.

Quem tem trinta e tantos costuma estar casado ou entre casarnentos. Logo, a esposa vai ter que sempre dar uma opinião sobre os tipos que tenta trazer lá para casa. E quase sempre ela acha que não, eles não prestam (o pior é que via de regra ela acaba por demonstrar que tinha razão, o que nem é tão surpreendente tendo em vista que pouca gente presta hoje em dia). E quando não é a sua mulher, é a mulher dele que não vai gostar de si. Ou são as duas que não vão gostar uma da outra (e, se vocês insistirem no erro, passados dois ou três anos, vão ter que apartá las quando resolverem agarrar nos cabelos uma da outra e saltarem sobre a mesa do almoço de páscoa, causando um dano irreparável na loiça da sua avó e na formação emocional dos miúdos).

Ser solteiro e casto também não vai ajudar. Ninguém quer ser amigo de alguém assim (ou você ia querer ser visto na companhia de alguém que afirma não fazer sexo há cinco anos e nem perder uma única emissão da PraçadaAlegria). Aliás, nem tente agradar aos outros. Ninguém está lá muito interessado no assunto. Estão todos mais preocupados consigo próprios. Nada do que você diga será ouvido. As pessoas. depois de uma certa idade, não se ouvem umas às outras. Apenas balançamos a cabeça, fingindo atenção, enquanto a outra pessoa movimenta os lábios.

Mas mesmo assim há as excepções. Que, como o próprio nome indica, são excepcionais. Ter amigos, fazer amigos, justamente pela dificuldade intrínseca da coisa, é sempre uma benção divina e que merece ser comemorada.

Por isso, amigo, cuide bem dos seus amigos. Eles são únicos, não servem para troca, são insubstituíveis. Ligue agora mesmo para eles e demonstre afecto, carinho, consideração. Não faça isso por eles. Faça por si. Ou depois não reclame se nem você quiser estar presente no próprio velório.

Como diria o meu Tio Olavo, «amigo é aquele sujeito que mesmo conhecendo os nossos defeitos continua a gostar de nós. Ter noção disso é sempre uma bela maneira de poupar alguma coisa na psicanálise..

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Razão e Coração
Ou como se apaixonar depois dos 30


DEVERIA SER PROIBIDO QUE OS TAxis tivessem rádio. Você entra num táxi para ir de um lado para outro, não para ouvir música sobre a qual não tem nenhum controle. Muito menos esta que ouço agora. Trata se de uma canção romântica, que é a última coisa que gostaria de ouvir esta noite. Ou se calhar em todas as noites da minha vida até que complete 65 anos e seja declarado oficialmente imune a todas as palhaçadas que o ser humano inventou (músicas, livros, filmes, peças, perfumes e roupa interior de cabedal) em volta daquela coisa chamada (argh!) amor.

0k, o parágrafo anterior soou meio amargo, mas é melhor ser azedo do que mentiroso. E se quiserem ler coisas bonitinhas sobre o quão maravilhoso é estar se apaixonado, por favor, enganaram se no autor. Ou pelo menos apanharam me num momento raro de lucidez.

Vamos ser sinceros: existe coisa mais estúpida do que um homem de trinta e muitos apaixonado? A resposta é não. A paixão, depois dos dezassete (no caso dos homens), deveria ser motivo para levar o incauto praticante para a cadeia. Mulher, não. Mulher pode apaixonar se à vontade, a vida inteira se assim quiser e apetecer. Paixão é como saia, vestido ou bolsa da Louis Vuitton, só combina com o público feminino. Já os homens, quando se apaixonam, só fazem besteira. Mais ainda quando já tém idade para ter juízo.

Falo com Augusto sobre o assunto. O fulano apaixonou se pela Rita, a sua melhor amiga (o chamado erro dois em um: acaba se com uma bela amizade sem que ninguém vá para a cama com ninguém), que tem menos de 30 anos (o fulano já está a beirar os 40), gosta de CDs de grupos que ele nem sabe pronunciar o nome, fez um pearcing (em que parte do corpo, ainda não consegui descobrir), está a decorar o corpo com tatuagens de significados pouco claros (o que alguém quer dizer quando tatua no ombro a logomarca da Milupa?), enfim, um verdadeiro pastiche da geração dos vinte e poucos que anda por aí. E como uma representante dileta da sua geração, a Rita é egoísta, individualista, não tem paciência nem respeito por nada que ocupe demasiado tempo (um relacionamento estável e duradouro, por exemplo) e acha que sexo e amor são os dois lados da mesma moeda. Já o Augusto, coitado, anda a fantasiar tardiamente sobre coisas anacrónicas como «a mulher da minha vida.

Ainda vamos na entrada e já tenho vontade de esbofeteá Io (o que seria uma coisa bacana nunca, a não ser no cinema, vi alguém dar ou levar uma bolacha). O Augusto sabe disso, aliás ele só puxou essa conversa comigo porque sabe que eu (assim como todos os seus amigos) me irrito profundamente com o tema Rita ou com qualquer história que meta o mais leve sinal de poesia. E, ao mesmo tempo, é o facto de saber que o Augusto anda metido numa paixão impossível que faz com que marque jantares com ela com uma frequência bem maior que a habitual. E sempre bom ver alguém na lama, numa situação pior do que a nossa, alguém para quem podemos exibir um ar sábio e superior, que podemos reprovar cada acto e que mesmo assim fica grato com as nossas críticas e ainda nos dá um abraço apertado no fim do encontro, como se tivéssemos feito um grande favor.

Quando chega o pato, já estou preparado para o número «és mesmo um grande parvalhão» que é apenas uma maneira de introduzir o «eu bem te avisei» na conversa. Mas não sei se é da carne (sei lá quais são os efeitos reais dos nitrofuranos) ou de um vírus qualquer desconhecido (é verdade, eu já estive em Hong Kong), mas em vez de me aproveitar da situação para humilhar o Augusto um bocadinho mais do que o merecido, apanho me numa repentina e ignóbil inveja. O Augusto ainda tem capacidade de amar. Certo ou errado. Possível ou impossível. Mas o Augusto, apesar da idade, apesar do que pensa a sociedade, apesar de tudo, ainda usa o coração para algo mais do que bombear sangue.

Não deveria ser assim. Um homem de trinta e tantos só tem oficialmente duas opções: ou já casou e o assunto fica assim arrumado (não que o casamento tenha alguma coisa a ver com o amor, mas é sempre uma maneira de se pôr uma pedra sobre o assunto) ou ainda não casou ou descasou, que dá mais ou mesmo na mesma e significa que o tipo só pensa em ir para a cama e tem uma relação com o sexo feminino com um tom ligeiramente misógino.

Amar aos trinta e tantos, repito, é uma irresponsabilidade. E é por isso que o Augusto não é mais (nem quer ser, admito) considerado um homem sério pelo seus pares.

Com a sobremesa veio uma vontade incontrolável de ir embora. Desejei as melhoras ao Augusto (e também que a Rita morresse afogada no próprio orgulho), meti me no táxi e a única coisa que queria era esquecer rapidamente o assunto. Daí essa minha irritação com a música lamecha que toca no rádio. De amor por hoje já tive a minha dose. E o certo é que não me sai da cabeça o nome daquela outra pessoa (que vocês não conhecem e, já agora, essa história não é da vossa conta). A música, enfim, acabou. Oh, não, começou outra e é (Jesus, o que eu fiz para merecer isso?) a Celine Dion a cantar o tema do Titanic.

Acho que vou cortar os pulsos..

(Crónica publicada no DNA em 26 de Abril de 2003

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O lado B
Ou como vivier a noite depois dos 30)

A VIDA TAL COMO UM VELHO DISCO DE vinil: tem o lado A e o lado B. Quem tem mais de 30 anos sabe disso muito bem (até porque tem idade para saber o que é um disco de vinil). Não que a regra não valha para quem tem 20 ou 50 anos. Mas, para os trintões, muitas vezes o lado B da vida é mais do que uma realidade, é a realidade propriamente dita.

Penso nisso enquanto, lá pelas quatro da manhã, vejo gajas e gajos a dançarem sobre as colunas de som da "Q" (o nome é fictício, mas trata se de uma das muitas discotecas ribeirinhas de Lisboa). A casa está lotada, a música está no top. E o ambiente remete quase que única e exclusivamente para sexo (seja na forma flertada, entre os muitos rapazes e raparigas de classe média que compõem boa parte do ambiente, ou na forma comprada, explicitamente disponível tanto para homens como para mulheres, é só uma questão de preço).

É a primeira vez que venho à "Q". Há uma alegria espontânea estampada no rosto daquelas pessoas (veja bem, não estou a falar em felicidade) que dificilmente pode ser encontrada nos lugares da moda (se não sabe, está na moda, independente do sítio e da situação, exibir sempre um ar ligeiramente entediado). Sinto me ali um pouco deslocado. Estar com os copos ajuda mas não resolve a questão.

A questão: como é que eu fui parar naquele lugar? É aí que entra o lado B da história.
Foi há alguns meses, era um sábado que pretendia normal na minha vida de solteiro com mais de trinta. Fui jantar no Bairro Alto com um casal de amigos (quem tem trinta e tantos, e não casou, regularmente tem que passar pelo ritual de jantar com casais amigos que serve para: 1) Você imolar o seu ego ao ver a felicidade alheia, naquela coisa do "dois viram um", que só casalinhos de até sete anos de matrimónio sabem ostensivamente exibir; 2) Você contar as suas histórias, nem sempre verdadeiras, decididamente exageradas, sobre o que faz nos seus tempos livres, já que nunca há ninguém em casa à sua espera para jantar, permitindo que tenha uma vida egoísta, hedonista e divertida, motivo de uma inveja contida da parte do casal).

Depois do jantar, fui sozinho ao Lux (ou à Lux, ainda não percebi muito bem como hei de chamar a esta que é uma das melhores casas da noite europeia). Era para ser uma coisa mais ou menos tranquila: uns copos e (se não aparecesse ninguém para me desviar do caminho) já para casa. Por mais que tenha um ímpeto recém descoberto (fruto da crise dos trinta e meios) de sair á noite, a verdade é que sempre fui muito totó e o cenário de ficar horas e horas a abanar o capacete (que expressão mais cota!) numa disco ainda me causa uma certa confusão.

Foi aí que eu encontrei Carlos. Nunca fomos amigos íntimos e fazia tempo que não nos víamos. Ambos estávamos fisicamente quase que irreconhecíveis (essa coisa de emagrecer e ir ao ginásio funciona). Conversa vai, conversa vem, o tipo de repente pára, olha na minha cara e pergunta: "Queres conhecer a verdadeira noite de Lisboa?" Fiquei espantado. Então a verdadeira noite de Lisboa não era aquela? Ao que Carlos responde: "Esta é para os miúdos. A verdadeira noite para os gajos da nossa idade está a acontecer noutros lados". Gelei. Era por isso que raramente via no Lux gente que conhecesse. Estavam todos a divertir se noutro canto qualquer, onde o pessoal dos trinta e tantos se encontra para comparar as carcaças. E, como sempre, eu era o último a saber.

Mas, na verdade, o que esse meu amigo referia era outra coisa. Ele estava a falar de sexo (no seu estado puro e duro, na forma comprada, sem espaço para galanteios, desistências da outra parte na hora H ou compromissos futuros, como um telefonema no dia seguinte para ir ao cinema ou andar de mãos dadas no paredão do Estoril). Estava a falar de sexo adulto, de lugares onde os homens da nossa idade (casados ou solteiros, mas principalmente os casados) iam porque sabiam que tinham dinheiro para comprar alguns momentos de prazer. Já tinha ouvido falar do assunto mas, confesso, nunca pensei que irás putas fosse uma coisa tão institucionalizada. Pelo que percebi (e pelos nomes das pessoas que ele dizia frequentarem esses lugares) não estávamos a falar de tarados sexuais ou de gente com problemas de inserção social. Não. Estávamos a falar de tipos mais ou menos bem de vida, com esposas ou namoradas bem parecidas e filhos e cães lourinhos e asseados.

A questão da idade entra aqui no facto de que são tipos economicamente independentes, sem tempo a perder com romantismos bacocos e que por já terem compromissos com outras pessoas não poderem ser vistos a tentar engatar as miúdas nos sítios de costume. Homens que ainda têm a líbido desenvolvida e a cabeça mal resolvida (o retrato robot dos trintões).

Veja bem, não estamos a falar de casas de alterne e sim de discotecas onde há uma maior (às vezes, total) permissividade para as práticas de comércio sexual. Não que eu pretendesse 'entrar nessa, definitivamente não é a minha praia (sem juízo de valores, quem tem trinta e tantos já deve saber que cada um faz o que quer da vida, ou como diria o meu Tio Olavo: de perto ninguém é normal), mas aceitei fazer uma expedição antropológica às tais capelinhas. E foi assim que parei na "Q".

Depois de conhecer o lugar fui me embora para casa ileso, entre o perplexo e o surpreso. A moral da história (se é que há moral) é simples e é o refrão de uma música que fez sucesso no Brasil nos anos 70. A música dizia: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos". Na época, era miúdo e não percebia muito bem. Hoje vejo que é a mais pura verdade.

De qualquer jeito, sem querer me sentir nem parecer superior a ninguém, vamos fazer um trato: se um dia me vir a dançar em cima da coluna de som numa discoteca cujo nome comece pela letra "Q", por favor, abata me com um só tiro. É sempre bom morrer quando ainda se tem um pouco de dignidade..

(Crónica publicada em 19 de Abril de 2003)

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"Don't You Forget About Me" (ou como ficar em forma depois dos 30)

O ECRÃ AINDA ESTÁ A NEGRO. OUVIMOS as primeiras batidas de uma bateria electrónica. A música é o antigo hit dos Simple Minds, "Don't You Forget About Me". Quando Jim Kerr, o chatíssimo vocalista da banda começa a gritar (ou a ganir, nunca percebi muito bem) a imagem aparece em fade. E aí começa o filme. Aliás, o filme da minha vida.

Estou num ginásio, a correr numa passadeira como um rato num laboratório. Corro de frente para um espelho a admirar as minhas belas formas. Sim, sou tipo muito bem parecido, uma incrível mistura de Tom Cruise e António Banderas. A minha imagem é a do próprio sucesso: 36 anos, executivo bem sucedido, profissional multi premiado. Ao meu lado, à frente e atrás, dezenas de gajas boas e gajos bons levantam pesos, suam um suor perfumado a lavanda, exibindo os seus corpos perfeitos para a câmara. Enquanto corro, ouço no meu MiniDisc Sony de última geração alguns pop rocks dos anos 80 e penso: se a minha vida fosse um filme, as imagens da primeira sequência, enquanto aparecessem os créditos com o nome dos actores, seriam exactamente assim. É nessa hora que eu piso no atacador do meu Nike preto, tropeço e caio.

Quando me levanto a música é outra. Já não há os Simple Minds e sim um dos temas do «Música no Coração» (há uma velhinha no ginásio que só consegue exercitar se ouvindo o raio dessa cassete). As gajas boas e os gajos bons desapareceram e foram substituidos por um grupo de pessoas mais ou menos gordas, mais ou menos carecas, mais ou menos desesperadas em perder algum peso e ganhar alguma forma. Eu também já não pareço o Banderas. Pareço me comigo mesmo (se nunca me viu, deve ter uma foto minha algures nesta página). Continuo a correr na passadeira. Olho para a minha imagem no espelho e penso: "Como é que eu me transformei no tipo que aparece à minha frente? Quem sou eu, de onde vim, para onde vou? E, o mais importante, por que é que a minha barriga insiste em não desaparecer?"

Fui parar num ginásio mais ou menos como um condenado à pena de morte a quem é dada uma última oportunidade de se regenerar. Passei quase toda a minha vida a desprezar qualquer tipo de actividade física. Há seis meses bati o meu record e cheguei a pesar um pouco mais de 100 quilos (20 acima do meu peso ideal) e, confesso, não estava assim tão preocupado com o assunto.

Quem tem trintas e meios tem uma certa tendência para se acomodar. O fulgor da juventude ficou lá para trás, perdido num copo qualquer de vodka deixado vazio no chão de uma discoteca depois de uma noite em que as coisas não correram assim tão bem (igual a: não seduzimos ninguém) e em que você pára e pensa que já não tem mais idade para essas coisas e precisa concentrar se no trabalho; "arrumar" uma família e abrir espaço na pista de dança para os chavalos de vinte e poucos. Não é que você nunca mais vai sair, vai beber ou vai dançar. Mas nunca mais deixará de pensar coisas como: "O que será que esses putos pensam ao ver um cota como eu aqui a rebolar? Será que é pedofilia tentar rebocar aquela loira fabulosa que não deve ter mais que 16 anos? E, meu Deus!, como é que se dança o Asereje?»

Quem tem trintas e meios raramente está satisfeito consigo próprio. E muito menos com o seu corpo. Um belo dia você acorda com uma hérnia discal ou um princípio de diabetes ou com um fígado que já não pode conviver pacificamente com o uísque (que pena, eram tão amigos) ou com os cabelos a desaparecem da cabeça e a aparecerem abundantemente no nariz e no ouvido ou com uma apneia do sono ou com stress (que os médicos diagnosticam quando não encontram nenhuma outra doença melhor para lhe oferecer).

Uma parte dos trinta e meios conforma se alegremente quando aparecem esses primeiros sintomas. De uma forma ou de outra é sempre mais assunto para conversa ("Vês, sou como tu, pleno de enfermidades no corpo e cicatrizes na alma"). Outra parte, resolve virar a mesa.

O ponto da virada pode ser qualquer coisa (e quase nunca tem a ver com o corpo em si, fora os casos de saudades extremas de conseguir ver o pénis enquanto se toma um duche): é a descoberta que o casamento foi um erro; que a carreira escolhida foi um equívoco (mesmo nos exemplos de sucesso); uma paixão fulminante por alguém bem mais novo ou (a melhor de todas) levar uma bela encornada.

A consequência directa dessa crise pode ser a tentativa de fazer as pazes com o espelho. E que redunda numa "via crucis" que passa pela (re)descoberta tardia do desporto, por operações plásticas e lipoaspirações, sem falar nas malditas dietas (como diz o meu Tio Olavo: "a dieta é o self service da infelicidade"). Passa por ser gozado pelos amigos, espezinhado pelos colegas de trabalho, humilhado pela demora no aparecimento dos resultados. Na maioria das vezes, tanto esforço dá em nada. A vontade de mudar é vencida pelo quotidiano, pelo sentimento de se estar a ser ridículo ou porque a sua paixão de 20 anos foi para o Festival de Vilar de Mouros acampar com gente da mesma idade e não o convidou.

Depois disso o que sobra é voltar para a sua velha vidinha, é encontrar se com os amigos barrigudos no bar e entre um copo e outro de Jameson admitir que tudo não passou de um grande equívoco. Os seus amigos o recebê lo de braços (flácidos) abertos e fingir que nada se passou. A única coisa que vão exigir é que você pare de usar brinco.

Enquanto corro no passadeira, constato que ainda não sei bem se esse será o meu caso. A verdade é que já perdi os 20 quilos que estavam a mais (equivale a parir uma criança de 12 anos razoavelmente bem nutrida). Como todos os bons trintões, tento enganar os outros e iludir me a respeito da idade. Tento enfiar o meu cérebro (que guarda tudo o que eu sei sobre a vida, o amor e as vacas, tudo o que eu aprendi nesses quase quarenta anos de estrada) num corpo que não é o meu, no corpo de um jovem. Talvez não seja a coisa mais bacana do mundo mas...

Sorrio para o espelho. A câmara começa a afastar se. Fico à espera que apareçam os créditos, afinal o filme está a acabar. Mas, não, não aparecem créditos alguns. E que (essa é que é essa) o filme da minha vida ainda vai a meio. E, constato agora, o actor principal foi muito bem escolhido e o guionistaépara ládegenial. •

(Crónica publicada em 12 de Abril de 2003)