Amante de Leituras
entrevistando
Luís Gaspar



Luís Gaspar, sei que já percorreu uma longa caminhada como locutor mas qual a razão que o levou a recitar poesia e avivar textos através de um áudio blogue?
Luís Gaspar – Tive a sorte de ter professores, com destaque para Sebastião da Gama e Virgílio Couto, que usavam a poesia como isco para levar os meninos a amarem a sua língua; fui um dos que o morderam. Depois, e porque uma sorte nunca vem só, (tal como as desgraças) antes de ser locutor, trabalhei como actor em teatro radiofónico, muito popular nos anos 40 e 50. Está explicado, creio, o meu gosto pela declamação. De pequenino...
Quando surgiu a possibilidade de recitar num áudio blogue, não deixei passar a oportunidade, uma vez que já possuía de há muito tempo, em casa, as condições técnicas ideais para essa actividade.

Há quem diga que poesia é o jeito de cantar a arte da vida. Concorda Luís?
L.G. – Definições de poesia é coisa que não falta. André Gide, por exemplo, acha válida a definição de que a poesia “consiste em mudar de linha antes do fim de uma frase”. A acreditar nesta opinião encontramos aqui a explicação para o drama dos declamadores. (risos) A poesia, por outro lado, é das expressões humanas mais recentes se comparadas com a pintura, a escultura, a arquitectura, etc. Por exemplo, os primeiros poemas épicos e religiosos só nos surgem entre os gregos embora haja muita gente a considerar esta forma de “cantar a arte da vida”, como vocês dizem na pergunta, muito anterior: Mesopotâmia e Egipto.
Das definições que conheço há uma de que gosto muito e foi proferida por Jean Cocteau: “Sei que a poesia é indispensável, mas não sei a quê.

No desdobramento das suas energias, na publicação de todo esse acervo de trabalhos desde 2005, certamente que já conseguiu encastelar um tesouro literário. Luís, aponta algumas mudanças mais significativas, nas obras dos autores, comparando a actualidade com o passado de há dois anos?
L. G. – Têm razão. Creio que sou o feliz possuidor de um verdadeiro tesouro literário. Explico: um dia destes, com três anos de idade, o Estúdio Raposa através dos programas “Palavras de Ouro” e “Lugar aos Outros” , “Contos tradicionais portugueses” e dois audiobooks, (“Romance da Raposa” de Aquilino Ribeiro e “Diário de um Louco” de Gógol) colocou na Internet perto de 200 programas, com a duração média de 20 minutos, onde se podem ouvir biografias e trabalhos de largas centenas de autores desde os mais consagrados, aos pouco conhecidos e muitos dezenas de desconhecidos. E, de assinalar, acho eu, independentemente da qualidade da declamação, a qualidade técnica das gravações é excelente, comparável ao que se conseguiria nos estúdios profissionais. Para dar uma ideia mais acessível deste tesouro, imaginem que transformados em CD este acervo daria para produzir perto de 66 discos.
Quanto às mudanças de há dois anos para cá, há uma mais do que evidente: o aumento do interesse pela poesia. Sou frequentador de livrarias e tenho verificado que os espaços dedicados aos livros de poesia estão a aumentar todos os dias. E editores e livreiros não brincam em serviço. Este investimento em espaço e quantidade aparece porque eles sabem que aumentou o interesse do público. E, aqui, meus caros, venha o mais pintado dizer-me que isto não se deve à Internet! Uma ova, é que não se deve!
São muitos milhares os indivíduos que passaram a escrever e muitos mais os que passaram a ler. E entre os primeiros, aqueles que escrevem a sua própria poesia ou recordam a dos grandes autores, são incontáveis. Aí, a diferença de há dois anos para cá é a mesma que se observa nas livrarias.

Não concorda que no Estúdio Raposa a cada texto alheio que divulga cria a sua própria obra?
L.G. – Acho que sim. E não sou eu que o digo. Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Urbano Tavares Rodrigues, entre muitos outros grande poetas e especialistas de poesia afirmam que um poema declamado é outro poema. Mais, Urbano Tavares Rodrigues entende que um poema só o é verdadeiramente depois de declamado.
Mas, no que diz respeito a esta questão tenho a opinião dos autores menos conhecidos que tenho lido. Muitos deles têm-me dito que, ouvindo os seus textos, à primeira audição, estes lhes parecem tão bem que duvidam que foram eles a escrevê-los.
É muito interessante ler estes comentários no Estúdio Raposa. E não me chegam, apenas, de autores desconhecidos. Alguns dos consagrados que tenho lido manifestaram a mesma opinião.
Espero que entendam, assim como quem nos está a ler, que estas opiniões não têm nada a ver com a qualidade da leitura que faço. Dessa só podem falar os ouvintes.

A leitura de qualquer texto dá-se a partir do processo de descodificação. É fácil para si interpretar todos os textos e dar-lhes realismo em seguida? Fale-nos de como as palavras lhe entram nos olhos e lhe saem pela boca.
L. G. – Sabem, tenho para mim, que qualquer obra de arte, a partir do momento em que foi concluída e entrou no mundo para ser usufruída pelos leitores, espectadores, etc., deixou de pertencer a quem a criou e fica ao livre arbítrio de quem a observa. Filme, pintura, prosa, poema, escultura, etc., está, a partir da sua divulgação, sujeita ao gosto de cada um e o observador não tem de prestar contas ao criador. Entendo da mesma maneira o meu trabalho de declamador. Leio um poema ou um conto, da forma como o vejo ou como o sinto. Confesso que me “estou nas tintas” para aquilo que o autor quis dizer. Sério! Nas tintas! Falando de poemas: olho, cheiro, apalpo e sai o que estes sentidos me aconselham. Não faço ideia nem constitui preocupação minha saber se o autor achou que interpretei o que ele disse ou não. Felizmente, salvo um dos autores que li recentemente, ninguém protestou. A opinião dos autores que leio, e que já não são deste mundo, desses não recebi queixas. (risos)
Esta minha atitude é tão veemente (se calhar exagerada) que até as gralhas não me incomodam. Se troquei uma palavra, esqueci uma vírgula ou ponto final é porque os meus sentidos a isso aconselharam. Vou pela emoção. Raramente pelo perfeccionismo. Vivo, no meu trabalho, no Estúdio Raposa, a máxima de que o óptimo é inimigo do bom.

Ainda se lembra certamente do primeiro poema que o marcou, possivelmente ainda em criança. É capaz de nos confiar as palavras que lhe demonstraram de repente que estava acordado para um outro estado de consciência?
L.G – Não sei se foi o primeiro, mas “O Mostrengo” de Fernando Pessoa foi o poema que perdurou na minha memória. Muito pelo sucesso da sua leitura na escola, mas sobretudo pela tomada de consciência da oralidade da escrita. Essa preocupação com a oralidade foi-me de grande utilidade sempre que escrevi palavras para serem ditas quer nos milhares de anúncios de publicidade que escrevi quer, agora, nos textos que preparo para os programas.

É uma frase recorrente perguntar-se por projectos futuros, mas correndo esse risco, gostaria de perguntar-lhe algo que sinto quando oiço e leio os trabalhos que o senhor cria quando os recria: Que projectos está a preparar a partir destes audioblogues?
L.G. Não tenho projectos. Estou satisfeito com o trabalho que estou a fazer. Melhorá-lo, aumentar as áreas de leitura para além da poesia, da prosa e dos audiobooks...
Sou muito dado a ideias súbitas. Pode acontecer que qualquer coisa venha a caminho mas ainda...não dei por ela.
Melhor, tenho de facto um projecto: levar o Estúdio Raposa ao maior número de ouvintes, possível. Conto com o boca-a-boca para concretizar esse projecto.

A arte de dizer, o saber dizer- pese embora os pormenores técnicos que se aprendem e aperfeiçoam é única e exclusiva de cada pessoa, tendo atingido, se me permite dizê-lo, no seu caso um patamar absoluto de excelência. Pensa que o seu estilo especial faz escola entre as novas gerações de “dizeurs” e jovens poetas?
L.G. – Não, escola, não! Despertar interesse por, isso sim. Tenho recebido muitos testemunhos de despertares para esta forma de poesia, a lida. Já houve quem me dissesse que passou a gostar de poesia depois de a ouvir. “Eu achava que a poesia era uma coisa chata. Mas depois de a ouvir...” – já me disseram isto.
Sei de casos de pessoas que se iniciaram na arte de dizer por minha causa. O que, desculpem a imodéstia, me dá muito prazer.
O Rui Diniz é um deles.
Mas há uma questão técnica que é muito importante. Desde logo se a poesia é para ser dita num lugar público, um palco por exemplo, sem ajuda sonora ou se é para ser gravada num estúdio de gravação. A forma de dizer, em função dos espaços e das condições técnicas, é decisiva. Tenho a sorte de poder utilizar as melhores ferramentas disponíveis para este género de trabalho feito num estúdio de boa qualidade.
Depois, há todas as condições de preparação que levam a que um actor tenha de passar alguns anos a aprender, na escola. Não é pêra doce mas ela é tão doce, tão doce que vale a pena experimentar.

A poesia dá-me sempre uma sensação de limiar, dum portal que se entreabre deixando-nos vislumbrar um rasgo de luz para além da vulgaridade do quotidiano e que nos alimenta essa coisa única que é a capacidade de nos maravilhar. Concorda com a frase de que o poema é apenas uma centelha de algo maior?
L. G. – Centelha? Não sei. Talvez. Prefiro pensar que um poema, um poeta, é uma abelha do universo. A ideia não é minha. Fui buscá-la a Rainer Maria Rilke para quem o poeta é uma abelha do universo. Colhe desvairadamente o mel do visível para o armazenar na grande colmeia de ouro do invisível. Muito mais cínico, porém, quem sabe se mais perto da verdade, Paul Valéry dizia que a maior parte dos homens tem uma ideia tão vaga da poesia que a própria imprecisão de tal ideia é para eles a definição de poesia.
Por fim, a poesia é considerada como a menos comunicativa das formas literárias. Mas pode acontecer, como dizem na pergunta, que o poema é apenas uma centelha de algo maior. Que o seja, pelo menos para quem o escreve!

O senhor ( é você mesmo um poeta), quantas vezes se sentiu entre Ícaro e Dédalo, divido entre o voo raso em asas de cera e a vertigem do voo em queda entre as gotas ardentes da cera derretida e carregadas de sol? (Ou seja, quando se entrega a um poema, não receia por vezes dar-se demais?)
L. G. – Dédalo e seu filho Ícaro... Acho que todos nós somos, em diferentes fases da vida, umas vezes Dédalo que chegamos onde queremos, outras Ícaro em que, inconscientemente, queimamos as asas.
Ao recitar poesia sei onde quero chegar tal como Dédalo e chego, muitas vezes. Há, porém, palavras (ou asas) que se aproximam de tal forma da luz, no caso dos corações, que ao derreteram-se caem, em brasa, nos sentimentos de alguns ouvintes. Alguém afirmou que o amor começa pelo ouvido.
Sem querer, algumas vezes, chego a lugares onde não queria chegar. Será porque dei demais? Será que disse as palavras como setas de Cupido? Não tenho culpa. Peçam contas aos poetas. Eles são os responsáveis. Eu só transporto o néctar.

Por fim - embora nos apetecesse conversar muito mais- e agradecendo o precioso tempo dispensado, devo dizer em nome de todos os colegas e parceiros da lista que foi uma honra e um prazer especial partilhar as linhas que o senhor nos concedeu, com destaque particular para o resumo necessariamente curto da sua biografia. Gostaria, caso não seja abusar da sua amabilidade, dumas palavras suas dedicadas a esta lista “Amantes das Leituras”.
L. G – Vocês, com iniciativas como o espaço “Amantes das Leituras”, são dos mais responsáveis pela divulgação que já referi, da poesia. Incentivam à sua escrita, à sua leitura, à discussão dos seus caminhos. Mas sobretudo, repito, à sua divulgação. Eu lendo, vocês divulgando, estamos no mesmo barco. Oxalá não meta água. Deixem-me terminar com estas palavras de Dylan Thomas: “Não há maior recompensa para um poeta do que escrever um poema”
Ainda uma notinha de rodapé: retirem o “senhor” que colocaram antes do meu nome. Já me bastam os meus 71 anos!


Muito obrigado senhor Luís Gaspar.
Vera Carvalho e Carlos Luanda



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