José Miguel Silva
OBRA
 


Um actor

A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos trinta e quatro fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, as mulheres rodopiavam-
-me nos braços. Nove filmes de sucesso
e depois – o desastre: três falhanços seguidos.
O meu rosto, diziam, passara de moda.
O requintado romantismo dos meus papéis
fora ultrapassado pela realidade da guerra
na Europa. E após a guerra, o público dera
em imitar o cinismo dos intelectuais,
ria-se dos gestos, da vibrante paixão e
dos castos abraços em que tudo se fundia
com as aparências. Apagara-se de vez
a minha auréola, a minha estrela.
Afastado das telas, cessaram os autógrafos,
perderam-se os convites. Tudo terminou
como se fosse apenas sonho de uma sombra.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu o rosto, nenhuma malcasada.
Só então me apercebi a que ponto estava morto.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
Morre duas vezes quem viveu da sua imagem.

(in Revista de Poesia “Telhados de Vidro” n.º2 – Maio 2004)


Penélope escreve

É mais que certo: não sinto a tua falta.
Fiquei a tarde toda a arrumar os teus papéis,
a reler as cinco cartas que me foste endereçando
na semana que perdemos: tu no Alentejo,
eu debaixo de água. Fui depois regar as rosas
que deixaste no quintal. Sempre só e sem
carpir o meu estado (porque não me fazes falta),
pus o disco da Chavela que me deste no Natal
e comecei a preparar o teu prato preferido.
Cozinhar fez me perder o apetite; por isso
abri uma garrafa de maduro e não me custa
confessar te que não sinto a tua falta.
Por volta das dez horas, obriguei me a recusar
dois convites pra sair (aleguei androfobia)
e estou neste momento a recortar a tua imagem
(não me fazes falta) nas fotos que possuo de nós dois,
de maneira a castigar com o cesto dos papéis
a inábil idiota que deixou que tu te fosses.

oooooooooooooooooooo

“Ameaças”

Aviso te, velhaca, mais uma vez:
mete te com os da tua laia, ladra,
que me levaste da mesa os copos
por onde bebia e deixaste na alma
as cadeiras frias. Arrepende te, Morte,
e devolve me as veias, os amigos,
as sementes de papoila. Restitui me o intacto
futuro da minha juventude, a fotografia
onde cabíamos todos e a minha solidão
era uma onda quebrada nas pedras de gelo.
Traz me de volta o silêncio do Jaime,
o cheiro a serrim, traz me o Leal e ainda
o Artur, com todas as músicas desse verão,
o nó da fortuna, de ’89. Não te esqueças
também do Luís, deixou por contar
o resto da história. Nem do Joel,
o mais desgraçado rapaz,
que me confessou um dia haver morrido
sem nunca ter sido beijado.

Fazes me isso, e perdoo te o resto. Mas
se torno a ver te a menos de quinze passos
dos meus – eu juro que te mato.


Colheita de 98

Comprei ontem no supermercado
uma garrafa de maduro tinto
do Ribatejo. Se o rótulo não mente
estou perante um vinho de cor
granada, um corpo excelente,
de sabor e aroma muito acentuados,
com alguma evolução e persistência.

Talvez não seja o Bem, a Beleza,
a Verdade, mas é melhor
do que a minha vida etérea,
caprichosa, sem evolução, de cor
avinagrada e aroma nenhum.

Além disso, é garantido por testes
laboratoriais, enquanto eu,
quem me garante o quê?


A minha musa

É mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
Furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece me de casa
durante meses. Apetece me
bater lhe. Mas talvez a culpa
seja minha. Passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
É natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.

Amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
Meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (Mas tenho medo
das alturas, e ela sabe o.
Aproveita se da minha debilidade.)

Obriga me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
É preciso ter estômago
para tanta solidão. Não admira
que muitas vezes a traia
com a Helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no Largo do Viriato.
Mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.

É tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. Por ela, não havia
domingos, nem feriados,
não havia verão. Era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
Marca me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. Diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.

Fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
Diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
Mallarmé, levanta se de noite
para me rasgar os poemas.
Não é fácil aturá la.

Só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama lhe
trigo, vê uma porta
e chama lhe susto.
Às vezes pergunto me
se não será parva.

A verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
Mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.


A Portuguesa

De criadores de cabras e de naus
a bisonhos fabricantes de badalos
para sinos de betume, caro Georges,

anda ver o meu país de gazeteiros,
entre o pau que vai e vem,
infaustos foliões, de costas para o mar.

Anda ver estes Manéis, dobrados de avidez,
os dedos apertados por volantes suicidas,
abolidos entre fados, manivelas, promoções.

À porrada que lhes dão chamam lhe futuro,
temem mais os livros do que a morte de um irmão
e colocam a cabeça mais a jeito do carrasco.

Das Marias só te conto a mania do verniz,
os derrames de perfume no altar da pequenez,
a vida cambiada pelo crédito de gritos.

Anda, caro Georges, anda ver e depois diz me
se o pior da alma humana
vem ou não à superfície como lodo,

quando séculos de pez e abulia são bulidos
por correntes de paixões bonificadas,
no caseiro leva e traz de catilinas ambições,

de razões inoculadas pelo gosto de morrer
cada dia um poucochinho.