Anexo Um
José de Matos-Cruz A historieta que motivou O INFANTE PORTUGAL
Com penas de anjo
e a expiação do demo
Subitamente, Rui Ruivo suspendeu o voo, girando sobre si mesmo para atenuar as sequelas da fricção. É certo que a envergadura como Infante Portugal lhe proporcionava, ainda, uma resistência inexpugnável. Porém, a brusca assunção da sua condição humana, por uma recorrência entre a textura física e a premência anímica, tornava-o já vulnerável. Quando o prodígio heróico se ia atenuando, o Infante Portugal debatia-se, então, como Rui Ruivo entre a sobrevivência e a imortalidade.
Era o instante mais perigoso dessa extraordinária metamorfose. Uma vertigem em que, ao privilégio transcendente, se sobrepunha a identidade secreta, e o conflito de paladino estrénuo defensor dos desprotegidos, incansável combatente pela justiça cedia aos caprichos mesquinhos do estatuto burguês. Para o Infante Portugal, além de sucumbir a uma íntima rendição, era a vergonha dolorosa de estar circunscrito ao exibicionismo literal como Rui Ruivo. Afinal, o mito soçobrava em sua própria vitimação!
Suavemente, o Infante Portugal poisou junto aos pés do Cristo-Rei, a contemplar Lisboa quando o pôr-do-sol cumpria o leito coleante do Rio Tejo, até transformar-se na foz em Oceano Atlântico. Também ele era, já, Rui Ruivo na essência, embora com o trajo emulativo ainda a sujeitá-lo, qual colete-de-fraldas. Em tal persistência híbrida, bastava-lhe aguardar a mutação primordial uma danse macabre em que o dínamo estelar se introvertia no crepúsculo dos seus transes mais aniquiladores.
Pouco depois, pela calada da noite, um impecável Rui Ruivo estava ao volante do seu fogoso Matrix, sulcando a Marginal até ao Condomínio Alípio Ayres onde residia, a poucos quilómetros de Cascais. Na manhã seguinte, o advogado distinto voltaria aos seus negócios para-jurídicos com tanto recurso e prestígio, entre a clientela da alta finança ou da baixa política a partir de um discreto palacete na Rua de Rufino Picão e Chagas, quase ao virar para o Largo de Camões... Até mais um apelo exacerbado, nacional, expiatório, que o arrebatasse como Infante Portugal.
Aliás, a complexa consciência de Rui Ruivo não se transcendia pela normalidade antes oscilava numa amálgama, sublimatória, dos seus excessos e contradições. Também, ele nada contribuíra para se virtualizar como Infante Portugal tudo ocorrera durante uma visita trivial à Exposição 98, em que foi investido por um fenómeno de fervor ingente, telúrico, inexplicável.
Porquê tal pessoa, e tanto assim?
Qual a herança? Sob que sortilégio?
- É o destino... - discorrera Pereira Dias ao deparar-se Rui Ruivo, em missão do Infante Portugal, com o seu errático antecessor, algures nos labirintos sórdidos da Musgueira. Aí, rebentado e, entretanto, reformado enquanto Condestável Luzitano, exilou-se aquele que por sua vez, desde a Exposição de Portugal no Mundo, vinha perpetuando uma ínclita estirpe em que se fundamentava o imaginário triunfal da irrealidade pátria.
Celebração do fausto. Desígnio ancestral.
Humildade e dignidade. Perante um Pereira Dias já catártico, Rui Ruivo transfigurou-se na auto-premonição do desempenho aventuresco.
Entre passado e futuro.
Um povo em bruto. Iniciação do Infante Portugal. O gesto e a gesta. Incongruência como Condestável Luzitano.
A nata dos varões. Até que o espírito sobrevivesse ao simbolismo vácuo entre a esfera armilar e o escudo marcial. Estaria, então, preenchido o dilema fatal, que era a matriz da raça, em recessão.
Os ciclos de depravação, ou a mística integral.
Nunca. Ninguém. Nunca mais. Rui Ruivo anónimo. E o outro, em seu poder, sempre anacrónico. Ninguém mais nunca… Enfim!
Escuro como breu, Rui Ruivo ia fazendo estrada, junto à Boca do Inferno. Então, sentiu a invadi-lo aquele clarão fulminante.
Exposto, o Infante Portugal enfrentava o monstro elementar. Era retinto, asqueroso, banal, sem quaisquer traços fisionómicos. Lutou, fruiu, despedaçou-o.
Nem êxtase, nem agonia, mas vibrava. Incompleto, demasiado. Em frustração. Em prostração. As forças vivas que se encarregassem de o justificar.