O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO TRÊS

 





Capítulo Três –

COMO OS EXTREMOS COLIDEM

Deodato Roble olhou, com ar de desalento, para o cigarro que se desfazia entre os dedos da sua mão direita, já sem qualquer hipótese de ser fumado. Era sempre assim! Quando ficava tenso ou sob irritação, não controlava a sua extraordinária força e, depois, havia que sofrer as consequências. Ou seja, não tinha nenhum outro no maço de Fluidos, todo amarrotado e, agora, das duas uma: ou inibia o vício por algumas horas, até que Lisboa acordasse e, abrindo as lojas, pudesse comprar mais; ou assumia os prodígios como Fado e, num impulso rápido, dissimulado, dava um pulo a qualquer parte da Europa, ou da América, sabia lá, onde pudesse arranjar o tão almejado tabaco...

Achava-se a meio do Rossio, seriam umas três da madrugada, e tinha abandonado há pouco o Teatro Vaz de Moraes, no Parque Mayer, onde estavam a ensaiar-lhe a peça Os Impassíveis, em deprimente estilo retro. Então, o que fazer? Os encenadores modernos desprezam as simples sugestões expressas pelos autores... E, nas actuais circunstâncias, ele que resolvesse aquele dilema emergente, insuportável, sobre como instilar alguma nicotina, mais, para os seus pulmões frementes!

Nessa altura, a intermitente luz dos candeeiros públicos estarreceu ainda mais, lucitremente, sob um aparente efeito sobrenatural, que em revoar endemoninhado culminou, até se suspender de imprevisto à sua frente. Fascinante, ali pairava a fabulosa Fada – uma essência diáfana e sem consistência, em comprometedor silêncio, que tanto e sempre o intrigava e seduzia.

Deodato Roble reagia, normalmente, pelo comando cerebral, mas tinha, ainda, uma genuína percepção bairrista, alfacinha, que lhe permitia distinguir entre sonsas e lorpas. Não sendo um destes, também reconhecia a Fada como uma emanação transfigurada, o melhor que havia em Ofélia Luna, ao devotar-se em prol da humanidade. Deixando o Fado sempre em contrição, reagindo sem defesas, mas tão inacercável, quando ela o aliciava com aquela irresistível tentação feminina, na tentativa de lhe sugerir uma aliança deletéria.

Ali estava, pois, a própria mulher íntegra, ante o homem dual, desafiado em sua projecção. Aliás, continuaria ela a ser imaculada, a ponto de dispersar uma qualquer diatribe com que, cruel, a provocasse? Quem sabe… Nada como experimentar!

A Fada persistia suspensa daquele sorriso gentil, tão intimidatório. Então, Deodato Roble virou-lhe as costas, com a arrogância clássica de um marialva. Tal petulância surtiu efeito pois, atrás de si, percepcionou o Fado um estranho fenómeno de efusão – como se o mundo mesmo desabasse da sua arquitectura virtual, que era a Fada a precipitar-se, num transe brusco, para a mulher fatal:

– Não me deixes assim... Uma donzela indefesa, fora de horas, até pode perder a pontualidade!

Deodato Roble susteve-se, intrigado. Aquelas palavras não lhe traziam escárnio, ou insolência, mas uma alusão de chiste, graça que nunca esperaria de alguém, insinuante garça, que imaginava, apenas, entre círios e ribombares.

Virou-se. E encontrou-a já altiva, em carne e osso, sensual, lasciva, capaz de abalar o lobo mau, em seus humores mais subliminares...

Fado teve vontade de descompô-la, de decompô-la com toda a sua efusiva virilidade – mas com uma charada tão flagrante, feminina e heroína, que surpresas não lhe reservaria Ofélia Luna ao celibato, ou a Fada e a virgindade, numa contenda mais fracturante em seu manto de possessões – entre rendição doméstica e dissidência sobrenatural?

O melhor era não arriscar. Fingindo-se distraído, por uma leve brisa que lhe destapasse a tímida valentia, comum a bravos e a brandos, olhou-a então de frente e concedeu, numa espécie de ricto filosófico:

– Tenho que ir! Já urge! Sabes como é, não sabes?... Em tese, queremos sempre ser os melhores mas, de facto, apenas poderemos vagamente ser melhores.

Com a breca, basta! A rapariga fátua estava farta de tantas falácias e facécias com que aquele dito cujo teimava em baratiná-la. Um tipo de tal envergadura não passaria de uma torpe cavalgadura? Ou, em explícita finura e souplesse, será que a emergência híbrida do Fado lhe havia enfraquecido a masculinidade, ou a afectação maníaca de Deodato Roble lhe robustecia o intelectualismo?

E a ela, que lhe seria tão fácil atingi-lo com umas chispas de plasma no coração, ou retrovertê-lo na idade até ao colo materno...

Contudo, tudo se tornaria possível entre aberrações tão rutilantes. Por náusea ou sensatez, havia que conter-se, em uma vulgaridade de comezinha conquistadora, embora lá por dentro – qual bailarina frígida em pirueta graciosa – sentisse o jejum cósmico das estrelas que a devoravam... Ofélia Luna sabia, por natureza ôntica, que as mentes fortes vacilam, na sofreguidão de intuições lamechas e portanto, ante o Fado, impunha-se uma reacção neutra – propícia a quem, fúria encantada, estivesse disposta ao que fosse para não lhe cheirar mal – excepto, levar com alguma estratégica pancada em pleno septo nasal!

Sem uma genealogia matricial com a nobreza dos inexoráveis paladinos, ela safava-se como podia. Alusiva, ilusória. Desde cedo que, vaporosa, se elevara da dimensão brejeira e achincalhada das simples mulheres de sua igualha… Isso mesmo a tornava tão fatídica e casta.

Foi assim que, nesse instante, já o Fado se perdia à distância, solto e embrenhado para dentro, tão só tramado pela promiscuidade dos seus apetites e atribulações. Quando uma aura glacial lhe cativou, então, a argúcia sorrateira, sussurrando ao seu ouvido, qual tágide enfeitiçante:

- Por que te esquivas? Temes a companhia? Ou preferes experiências mais carnais? Receias vacilar? Nesse caso, eu para ti… Serei a sereia?

Deodato Roble ondulou, devastado pela náusea da falta de Fluidos, que lhe rachava ainda mais a falha telúrica como Fado – uma espécie de brutais guitarradas desgarradas, trinando em alcateia lancinante no caldeirão dos seus trágicos superpoderes. Vadio e vazio, feito um guapo sonso. A quem a vida, sem moral à vista desarmada, intimamente tivesse pregado uma partida justiceira, formidável.

Depois, voltou atrás, fitando a Fada. E, entre os primeiros clamores da madrugada, quando Lisboa é mais castiça, Ofélia Luna quase se desvanecia, porquanto o Fado pôs alento ao Deodato Roble que havia em si – o qual, aéreo e amoroso, lhe deu um beijo no céu da boca!


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