O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO QUATRO

 





Capítulo Quatro –

A MUSA DOS CABELOS DE LODO

Jacinto Magno descruzou a perna e dobrou o Diário de Notícias, lento, preparando-se para sair do Café Nicola. Nem saborear a bica lhe soubera bem, como era seu costume, tão tenso e inquieto se encontrava. Nada pressentia que o fatalizasse na vetusta idade, mas estava-se em plena Lua Cheia e, talvez por isso, mesmo à luz do dia, uma melancolia incógnita, bizarra, corroía-lhe o espírito.

Alheado, foi Magno caminhando para a Praça dos Restauradores, onde costumava apanhar o Metropolitano – até à Torre do Tombo, santuário favorito para as investigações como historiador e jornalista. Nos últimos tempos, a sua habitual pacatez havia acelerado e enregelara, inclusive, o caloroso envolvimento com que se devotava a tal labor.

Por coincidência, ou não talvez, tudo parecia ter-se precipitado, quando Magno sentira entusiasmo para averiguar um suposto exílio em Portugal da mítica Oktobraia – justiceira soviética que desaparecera após a queda do Muro de Berlim. Porventura, graças às relações de parentesco com Aïa Maiovsky, aliás uma descendente de Eliezer Kramensky – judeu russo de cujas volúveis proezas havia Magno colhido abundante testemunho por um certo Pereira Dias, ele também ambígua e extraordinária figura, de quem muito estará para desvendar.

Homem de poucas falas, Jacinto Magno tolerava o paleio. Aprendia-se muito, ouvindo. Assim também, para ele cada palavra era uma jóia, a riqueza da escrita. Adorava rotinas finas. Adornava fobias fúteis. Era um solitário, sorrateiro a compromissos. Cultivado entre tanto relambório que por aí fluía, diplomara-se em silêncios propícios. Esquivo, cativo.

Por conseguinte, os passos deste homem trilhavam a eternidade, os gestos deste autor perpetuavam o efémero. Era Magno o último abencerragem de uma espúria mística lusitana. Mescla e síntese. A bandeira do luto, o portal da utopia.

Indefinido. Definitivo. Distinto actor civil, que estremecia a representação social como um talento inato, sobre o elenco em colectivo. E todavia, propenso à bajulação, emburricava à mesma com tanta e tamanha fulgurância académica.

Estapafúrdio, nefelibata, misógino, odiando ondas e areias, Magno tolerava apenas a orientação paliativa de Rosa dos Ventos – mas, às vezes, reagia com desdém, qual poeta cacofónico:

– Amar, sabe a mar...

Outra ocasião, obcecado por certa velharia rara, e ante a cobiça de um alfarrabista – que a teria, para trocar por bugiganga em sua posse – logo lhe cortou a pedincha de pechincha, avariando a malícia duma avara permuta quanto àquele interesseiro esdrúxulo:

– Só vendo, vendo!

Outrora, Magno convivera com o derradeiro Condestável Luzitano, o tal Pereira Dias antes do seu hausto infausto. Extraiu-lhe um manancial tão opulento e áspero, que temera prejudicar a fina caligrafia com que calibrava, cioso, o seu imprescindível e temido bloco de apontamentos.

Para o indómito guerreiro, asseverava Magno, entre a urbe e a orbe fora uma deriva triunfal, do zénite ao ocaso. Onde então, incólume mas magoado, além da lógica do murro, o já venerando Condestável se sentia vulnerado – ao confiar-lhe:

– Bem vê, começo a ficar fraco e destrutível… Qualquer dia, apareço aí num monturo, derrotado!

– Não diga isso… – teria ousado repreendê-lo Magno – o meu caro é um batalhador!...

– Ora, ora… – lastimou-se o decepcionado Condestável – Lutar por quê, ou contra quem?

Portanto, decompunha-se a lucidez do veterano combatente – consoante, mais entradote, desterrado na permissiva Musgueira e em obsceno facilitismo, o sobressaltava a natureza corriqueira como estro humano. A ele que brandira – entre as luzes e as trevas – a mística da raça, o afã formidável da esfera armilar!

– Mas, nunca condescenderei que um patego néscio me azucrine a mioleira! – desabafou-lhe alto, intempestivo, o Condestável, deixando inquieto Magno de que o visasse directamente a ele, ou de que houvesse sabido que uma parte bastarda da ascendência sua, pelos genes paternos, era oriunda de Vinhais, na Beira Baixa.

Todavia, o Condestável Luzitano – proveniente dum desígnio ancestral, em ímpeto varonil durante a Exposição de Portugal no Mundo e emérito com promoção por mérito, bem diferente de todos aqueles justiceiros instantâneos, gerados por proveta, americanos amaricados – pugnava contra a própria ridicularia em que se ia conformando ao Pereira Dias. Abdicando lentamente, sem ruínas irreversíveis, confinado a uma rotina de mais remansos e pesares, de menos louros e lauréis...

Magno assentira, fez que sim com a cabeça, compreendia-o muito bem. Pasmaceira, canalhice. Frustração versus castração. Pois, já antes, não tinha ele privado até com variegada gente de costela portucalense, da espécie simbolista de artistas e escritores que, apressados pela vida, essencialmente funestos, enfim num pujante despojamento, preferiram refrear ou cercear, tão só obstinando-se em cegueira ou paralisia?!

Agora, e junto ao Cinema Eden, Magno deteve-se, instintivamente, como se um sabor a inferno lhe assenhoreasse o palato, golfado das entranhas gástricas. Aquele abrasivo mal-estar era um dos seus sintomas fulcrais, quando algo subtil lhe ia escapando ou precisava de prestar uma atenção.

Já se vê – fatalmente, onde há um coração há uma guitarra. Um luto anónimo, uma luta inanimada. Um madraço, uma mortalha.

Em suma, faltar-lhe-ia – aqui, enfim – um contraponto sexual. A inserir neste lance de elucubrações e reminiscências à desfilada, que o ultrapassavam mesmo na sua locomoção compenetrada. Assim, posto em alerta, o estático Magno tornou-se consciente ao que vinha acontecendo em seu redor.

Apressada, eis que passou então por ele, entre a turba indistinta, uma mística loira. Toda instinto, ferene, naquela oportunidade equívoca. Esquiva, a disfarçar, estrangeirando contudo um rasto aventureiro em vão dissídio patriótico. Ao estilo vocacional de acaso, que atrai mesmo um lúgubre cronista.

Em impulso de estátua, torpe mas com elegância, logrou o cavalheiro Magno sustê-la por um dos braços. A custo, evitando que lhe caísse ao chão a miscelânea de livros e jornais que o ancoravam, no rotineiro turbilhão de leituras e delírios...

Ela fitou-o então, curiosa, sob felina desconfiança. Magno sorriu-lhe, algo tocante e parcimonioso.

Sob o incógnito, Oktobraia sorveu, de imediato, tal pressão odorizante de aristocrata antigo, ou de intelectual cuja postura cândida logo a sossegou, lânguida. Valeria a pena!

- Deseja algo? Já nos conhecemos, não? - questionou Magno, incómodo pela  sua obsoleta convicção.

Pasmava a eslava. Porém fingida, e em correcto português sussurrou-lhe, com meiguice tonitruante:

- Ando à procura de um protector…


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