Capítulo Cinco
O CONTENTO DA SEREIA LEDA
Com fragor, Nero Faial atirou para o chão o exemplar do Diário de Notícias todo escangalhado. Irritara-se com a crítica de Virtudes Plásticas, sobre a sua Exposição na Sociedade Lusíada de Belas-Artes, assinada por um tal Jacinto Magno.
Só me apetece arremessar-lhe um extintor à cabeça... balbuciou, num sorriso de ínsita ironia cúmplice, pelo significado daquelas palavras, em sua relação intrínseca com certas qualidades sobrenaturais.
Ora, entre convenções e convicções, a condescendência não lhe parecia a melhor reacção própria quanto à auto-estima. E estava a apetecer-lhe, mais, esse prodigioso e benfazejo exercício lusitano que é o dormitar. Passar pelas brasas aí lhe advinha outra cruel insinuação...
Tal indolência foi então sobressaltada por um seu pressentimento, que logo se materializou em zumbido através dos reposteiros, até assomar-lhe ao aposento. Reconheceu a campainha de entrada. Naquela ala, recolhida, da sinuosa residência de pessoas e possessos, nunca havia mais ninguém quando ele ali estava, solitário e cioso da privacidade. Para saber quem era, Nero Faial tinha, pois, que ir ele próprio abrir a porta. Uma das várias saídas para a rua, e de sua comunicação exclusiva o que muito, sinceramente, o fez estranhar. Quem poderia ser?
Era loira, felina e, em expectativa, estava reclinada de viés junto ao umbral. Até aos confins, Nero Faial sentiu-lhe o negrume da alma.
Cada um no seu silêncio, assim ficaram durante longos instantes. A fitar-se. Embalado, porém, por uma daquelas estúpidas reminiscências em vez de tiro, milho aos pardais da boémia alfacinha, estilizou a deslindá-la o exacerbado pintor:
Dantes, era São Vicente e corvos, depois Santo António e pombos... Como e com quem virá a seguir?
Plevna Kostoglotov tinha versáteis atributos à sua disposição e, embora fanática em cirílico, como Oktobraia conhecia, de ginjeira, a fala portuguesa ou os significados mais ocultos ou brejeiros de uma língua viperina. Por isso, insinuou:
Com tradição ou contra tradição, não há contradição que resista a quem está de grão na asa...
Ora essa, acredite na sobriedade da minha postura... vacilou Nero Faial sem jeito, justificativo, como se fosse ele, e não a tentadora desconhecida, ali o intruso instável.
Em si mesmo, contudo, percebia-se descoroçoado, fruste como a quilha de uma nave à deriva entre tormentas e sem âncora que a mantivesse em porto seguro... Com a sensualidade romântica dos trágicos russos, Plevna Kostoglotov leu-lhe as fissuras existenciais no semblante volúvel, multifacetado e, feminil, dele almejou a camaradagem cativa, sem reticências, por um compadecido amante.
Lampejos paradoxais. Como fingir? Como fugir? Marinheiro ao rubro, Nero Faial presumia-se. Na vertigem que torna possível todas as histórias improváveis. E, ao prenunciar-se, Plevna Kostoglotov exerceria um vistoso quão mui facundo acesso ao compromisso.
Então, posso entrar? instou ela, com altiva discrição. Assim, mais parecemos um hiato entre duas casualidades...
Por certo! Também eu detesto ficar em suspenso... correspondeu Nero Faial, facultando a intromissão. Era o artista plástico em rubor, a esboçar-se favorável, curioso se estaria perante uma dúvida ou uma dádiva.
Inequívoca, a fluida Kostoglotov foi-se insinuando até que o renitente anfitrião, ciente embora de que não teria ali uma qualquer serigaita, tratou de travá-la ainda no salão contíguo.
Sente-se, madame... e, melífluo, indicou-lhe o canapé.
Madame?! reagiu, surpreendida mas cumprindo, a siberiana musa.
Bom… desculpou-se Nero Faial, quase inflamado e corrosivo. É que há mulheres a quem eu não quero chegar e, por consequência, chamo-lhes senhoras.
Diacho, extravasaria ele uma mera euforia ou um erro metafórico? A maior verdade era que, como personalidade fictícia, habituada a persistir em mutações extremas, afectava Nero Faial um dédalo antigo no lidar da sugestão, na usura dos sentimentos.
Assim, em tal cenário fúlgido qual ultrarrealidade, Nero Faial superou-se, fendendo com um diabólico golpe de teatro. Do geral para o particular, fitou-a como a uma misteriosa tapeçaria:
Vá, já estás cá dentro. Agora, desembucha...
Como? reagiu ela, especando.
Não comes, não... Deita, mas é cá para fora!
Incólume, já se subentende, e porém refazendo-se na sua táctica de castiço desaire, Plevna Kostoglotov desditou-se em retórica de carpideira, sob uma espiral de lágrimas e lamúrias.
A pia vertendo para a pia.
E corri eu meia Europa, contrafeita e despojada dos atributos marciais... Prescindi de Marte para ser-me Eva e, fatalista, desaguar por aqui, náufraga sem garras e de escamas mortiças, arrastando-se com o coleio duma tágide paraplégica!
Ante tanto disparate, não logrou Nero Faial conter uma gargalhada às trevas que em incúria, fantomática, ecoou pelos claustros e passadiços, além do limbo daquele casarão gótico. Atroz mausoléu para a cidadania, longevo refúgio do refugo associal...
O que te trouxe até mim? questionou-a, já recomposto.
- Sei lá... - sibilou Plevna, a desquitar-se. - Um lampejo da alma, uma cintilação nostálgica! Enfim, tu conheces-me... Durante tantos anos, entre entregas e refregas como guerreira árctica, acabei por me esfriar nos clamores e frenesins!
Perante o espectro crepuscular de Oktobraia, Nero Faial enfatizou:
- Então, como vieste aqui parar?
- Tirei informações. E tu hás-de perceber como é: laços de sangue, troca de influências. Um objectivo derradeiro, arrebatador! Aos poucos, e por partes, segui pistas, fui-me encaminhando...
Nero Faial estremeceu. A inferência libidinosa estava entre os dons fatais da extraordinária heroína, e o artista visado debatia-se numa combustão larvar, implícita, à repugnância e à penitência.
Fogo e gelo. O separar das águas naufragou o funesto criador, enquanto se sobrepunha a atleta capitosa. E Plevna Kostoglotov soergueu-se, estendendo-lhe os braços miríficos, quais amarras suplicantes:
- Ando meia em lume brando… Não me poupes. Preciso de quem me inflame o coração!
Mas, para Nero Faial, não. Assim a seco, aquilo não era líquido. Aliás, nem ele se varava, contrafeito...
Então, e num grácil jeito, Plevna Kostoglotov soltou os cabelos áureos, que faiscaram como firmamento em êxtase, dissolvendo-se num marulhar de fragrâncias e requebros siderais.
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