Capítulo Dez
METAFÍSICA E METAMORFOSE
Na fímbria de Lisboa, e como um desvario, a manhã passou lesta, para a hora do almoço.
Em sobressalto, atravessou Simão Simões a cortina de neblina que se forjava sobre a Quinta Colina, só e obcecado pelos seus complexos. Um mal crescido tudo porque, quando era catraio, não tinha levado beijos da mãe, só tabefes do pai e em fartura.
Isso não macerara o seu destino, de adolescência ferida. Porém, marcara-lhe uma propensão irracional devotando-se à filosofia do abstracto, como tábua de salvação. Razão, talvez, para nunca ir ao fundo das questões.
Heresia gnóstica? Frustrado entre o estro e o cosmo, Simão Simões sentia, por vezes, que a posição erecta era um paradoxo gravitacional.
O certo é que aquele imenso clarão, que quase o ofuscara quando, ameaçando a noite, entre lençóis arfava, nada de bom poderia pressagiar. E, logo, a tarde se parira órfã, desamparada, sem a alvorada sua irmã.
Inquieto, Simão Simões cogitara um prenúncio ético:
Não basta fazer o bem, é preciso não fazer o mal.
Ora, dilatando a passada à flutuante cadência urbana, entre derivas e declives, chegou Simão Simões com os bofes de fora ao átrio da Torre do Tombo. Aonde o mancebo mórbido queimava tempo desde a ígnea idade, compensando na poeirenta carícia dos cardápios uma emancipação órfã de afectos e catártica.
Assim, refém na sua imprópria inexistência, ele languescia para a maturidade, ele rejuvenescia para a eternidade...
Cada um por seu lado, passou então por Simão Simões um casal sénior, com quem ali já costumava cruzar-se. Recompondo-se ainda da canseira, saudou-os com um leve e reverente reclinar de cabeça.
Reacções irracionais. Emocionado, Jacinto Magno sorriu para Rosa dos Ventos, absorta. Ela assim, réstia artística, se emudecia pelo silêncio com que esculpia aragens nas paisagens. Até rima.
Ora, afora a liberdade poética, o que existia entre ambos, embora ignorasse o implícito Simão Simões, era uma amizade marciana, desamarrável.
Mesmo em palco, Rosa dos Ventos sempre lançara um olhar superficial às fossas profundas da imaginação. Glosando a inteligência irónica de quem, por talento tal, contorce músculos e carnes aos preitos da representação.
Enfim, um Magno afim espairecia a crise com que, em si, ultimamente sentira presa a prosa. Aliás, a sua retumbante evolução literária havia sido, desde os precoces prodígios a massacrar o abecedário, uma ebulição mimética, fanática, entre a escrita e a palavra.
Foram andando quase até ao Campo Pequeno quando, subitamente, Jacinto Magno interrompeu o passeio e o silêncio, em jeito esquivo:
Então, e vens comigo para a Baixa?
Rosa dos Ventos pareceu invadida por uma paranóia enervante:
Pois, não... Ainda tenho que passar na clínica... Ou me engano muito, ou estou com a tensão alta!
Magno fitou-a com uma intencional comiseração:
Tu decides... Depois, diz-me qualquer coisa. Já sabes que, para mim, és sempre uma lufada de ar fresco!
Reagindo à melíflua malícia, Rosa dos Ventos apenas esticou o risco entre os lábios. Tocou-lhe ao de leve na lapela e, sem mais, desvaneceu-se em direcção ao Saldanha.
Jacinto Magno continuou parado. Refazendo-se, no amargo deleite da solidão. Nunca se renderia. Alguma vez se redimiria?
Por fim, ganhou sonâmbulo impulso além do desvairado charivari de reticências arcaicas, sinistras, soturnas que, em circunstâncias como aquela, instável, costumava entranhar, pairando em redor. Quais lobos esfaimados que profanam cemitérios, devorando e uivando as suas trevas primitivas.
Jacinto Magno não mentira a Rosa dos Ventos todavia, por temer-lhe a insolência, escamoteara nos desígnios. Aliás, ele próprio remordia um incómodo descrédito, quanto à vera intenção uma escapadela furtiva até à Lapa, para tactear o potencial, isto é chorudo patrocínio editorial pela Fundação de Artes Narcisistas, ao seu almejo sobre Os Atlântidas. Nada de desleixar.
É certo que, entre os pergaminhos de Nero Faial, fulgurava a pintura. Porém, no poço de sabedoria auferido por Magno também jorrava, em lodaçal, toda a literatura que envolvia o susceptível benemerente à clandestina aura lúbrica de Plevna Kostoglotov, qual mística eslava. E, afinal, com uma serpentina de cumplicidades electivas, sempre poderia lucrar-se...
Contas feitas a desejar e a desdenhar, neutro era o saldo que prendia Ofélia Luna à vacuidade melancólica da lei, largando o coração ao abraçar as causas justas, extroversão que rendia Deodato Roble entre dois actos existenciais, da farsa que concebia em palco à força que concedia em público. Amplos, ambos, desavindos, resistindo-se.
Pois, a factura sobrevivente da urbe secular, se calhar escorria, discorria desta fractura funesta, lânguida. Em vão. Expediente sórdido, recipiente sóbrio, luto de abrigo, leito desabrido. Complacentes, ou contemplativos. Onda vulnerável de vítimas e vadios, horda venerável de egrégios e exilados. Além da blindagem filosofal, Huno ou Huna Europa exacerbava uma polivalência primordial que lhe permitia, diplomaticamente, nascer sol e pôr-se lua.
Em Cascais, de costas para a Cidadela e ajeitando a gravata, num auge solitário de virilidade, Rui Ruivo resistia, neurasténico, ao velório da monotonia e da cidadania.
Algures, devastado pela crepuscular incongruência duma reabilitação prosaica, em fama, Nero Faial e vingada, por fim, a afronta crítica às suas Virtudes Plásticas recolhia-se ao volúvel, ao infame inferno de uma essência retemperadora. No vestibular, pressentindo-o perto, entre as vestais que vestiam espuma ou candura, Vénus despiu-se com langor...
Horas mortas, heróis vivos.
O Fado e a Fada desfraldavam ou definhavam, qual precário pacto, no conflito egocêntrico da respectiva conspicuidade. Sem bandeiras nem fronteiras, a anatomia eufórica de Oktobraia fazia furor por Lisboa a salivar. A evidência holográfica empalidecia Escudeiro Europa, assoreando-lhe a assexualidade em resistência aerodinâmica.
Obcecado pela expiação fatalista e futurista, o Infante Portugal olhava-se ao espelho e, como um Vulcão, veria a sua alma.
Banalidade, venalidade. Não é normal que um génio gere seres excepcionais. Mas é extraordinário que um monstro degenere em homem comum.
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