É tão natural
É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.
E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.
A implosão da mentira
(Fragmento 1)
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
(Poema composto de 5 fragmentos)
O ÚLTIMO TANGO NAS MALVINAS
Os homens amam a guerra. Por isso
se armam festivos em coro e cores
para o dúbio esporte da morte.
Amam e não disfarçam.
alardeiam esse amor nas praças,
criam manuais e escolas,
alçando bandeiras e recolhendo caixões,
entoando slogans e sepultando canções.
Os homens amam a guerra. Mas não a amam
só com a coragem do atleta
e a empáfia militar, mas com a piedosa
voz do sacerdote, que antes do combate
serve a hóstia da morte.
Foi assim na Criméia e Tróia,
na Eritréia e Angola,
na Mongólia e Argélia,
na Sibéria e agora.
Os homens amam a guerra
e mal suportam a paz.
Os homens amam a guerra,
portanto,
não há perigo de paz.
Os homens amam a guerra, profana
ou santa, tanto faz.
Os homens têm a guerra como amante,
embora esposem a paz.
E que arroubos, Meu Deus! Nesse encontro voraz
que prazeres! que uivos! que ais!
que sublimes perversões urdidas
na mortalha de lençóis, lambuzando
a cama ou campo de batalha.
Durante séculos pensei
que a guerra fosse o desvio
e a paz a rota. Enganei me. São paralelas,
margens de um mesmo rio, a mão e a luva,
o pé e a bota. Mais que gêmeas,
são xifópagas, par e ímpar , sorte e azar.
São o ouroboro _ cobra circular
eternamente a nos devorar.
A guerra não é um entreato.
É parte do espetáculo. E não é tragédia apenas,
é comédia, real ou popular,
é algo melhor que circo:
_ é onde o alegre trapezista
vestido de kamikase
salta sem rede e suporte,
e o contorcionista se parte
no kamasutra da morte.
A guerra não é o avesso da paz.
Ë seu berço e seio complementar.
E o horror não é o inverso do belo
_ é seu par. Os homens Amam o belo,
mas gostam do horror na arte. O horror
não é escuro, é a contraparte da luz.
Lucífer e Lusbel, brilha como Gabriel
e o terror seduz.
Nada mais sedutor
que Cristo morto na cruz.
Portanto, a guerra não é só missa
que oficia o padre, ciência
que alucina o sábio, esporte
que fascina o forte. A guerra é arte.
E com o ardor dos vanguardistas
freqüentamos a bienal do horror
e inauguramos a Bauhaus da morte.
Por isso, em cima da carniça não há urubu,
chacais abutres,hienas.
Há lindas garças de alumínio, serenas
num eletrônico balé.
Talvez fosse a dança da morte, patética.
Não é. É apenas outra lição de estética.
Daí que os soldados modernos
são como médico e engenheiro
e nenhum ministro de guerra
usa roupa de açougueiro.
Guerra é guerra
dizia o invasor violento
violentando a freira no convento.
Guerra é guerra
dizia a estátua do almirante
com a sua boca de cimento.
Guerra é guerra
dizemos no radar
degustando o inimigo
ao norte do paladar.
Não é preciso disfarçar
o amor à guerra, com história de amor à Pátria
e defesa do lar. Amamos a guerra
e a paz, em bigamia exemplar.
Eu, poeta moderno ou o eterno Baudelaire,
eu e você, hypocrite lecteur,
mon semblabe, mon frère.
Queremos a batalha, aviões em chamas,
navios afundando, o espetacular confronto .
De manhã abrimos vísceras de peixes
com a ponta das baionetas
e ao som da culinária trombeta
enfiamos adagas em nossos porcos
e requintamos de medalha
os mortos sobre a mesa.
Se possível, a carne limpa, sem sangue.
Que o míssel silente lançado a distância
não respingue em nossa roupa.
Mas se for preciso um banho de sangue
como dizia Terêncio: Sou humano
e nada do que é humano me é estranho.
A morte e a guerra
não mais me pegam ao acaso.
escrevo sua dupla efígie na pedra
como se o dado de minha sorte
já não rolasse ao azar.
Como se passasse do branco
ao preto e ao branco retornasse
sem nunca me sombrear.
Que venha a guerra. Cruel. Total.
O atômico clarim e a gênese do fim.
Cauto, como convém aos sábios,
primeiro bradarei contra esse fato.
Mas, voraz como convém à espécie,
ao ver que invadem meus quintais,
das folhas da bananeira inventarei
a ideológica bandeira e explodirei
o corpo do inimigo antes que ataque.
E se ele não atirar nem viver, aproveito
seu descuido de homem fraco, invado sua casa
realizando minha fome milenar de canibal
rugindo sob a máscara de homem.
Terrível é o teu discurso, poeta!
escuto alguém falar.
Terrível o foi elaborar.
Agora me sinto livre.
A morte e a guerra
já não me podem alarmar.
Como Édipo perplexo
decifrei as em minhas vísceras
antes que a dúbia esfinge
pudesse me devorar.
Nem cínico nem triste. Animal
humano, vou em marcha, danças, preces
para o grande carnaval.
Soldado, penitente, poeta,
a paz e a guerra, a vida e a morte
me aguardem
num atômico funeral.
Acabará a espécie humana sobre a Terra?
Não. Hão de sobrar um novo Adão e Eva
a refazer o amor, e dois irmãos:
Caim e Abel
a reinventar a guerra.