Palavras de Ouro 124
Luísa Neto Jorge

 


Palavras 124 - Luísa Neto Jorge

INDICATIVO

Luísa Neto Jorge, poetisa, tradutora e autora de cinema e teatro é a escritora a quem pedimos, hoje, emprestadas, as suas palavras de ouro.

SOBE

Luísa Neto Jorge, que nos deixou aos 50 anos em 1989, frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, viveu em Paris, entre 1962 e 1970.
Autora de guiões cinematográficos e de adaptações teatrais, desenvolveu a actividade de tradutora, tendo traduzido, entre muitos outros autores, Apollinaire, Aragon, Artaud, Céline, Éluard, Genet, lonesco, Michaux, Raymond Queneau, Jarry, Nerval, Boris Vian e Yourcenar.
Integrou o grupo que se reuniu em torno do projecto !Poesia 61!, antologia poética, organizada em fascículos, que reuniu textos de Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luísa Neto Jorge e Maria Teresa Horta.
Embora a sua poesia se aproxime dos textos poéticos aí recolhidos no que espelham de uma tendência poética que, durante a década de 60, dá privilégio à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva, ao rigor posto na construção do poema, Luísa Neto Jorge diferencia-se, dizia, quer pela importância que o legado surrealista tem na sua escrita, quer pela capacidade de diálogo com a tradição lírica.

SOBE

A obra poética de Luísa Neto Jorge (A Noite Vertebrada, Terra Imóvel, O Seu a seu Tempo, Dezanove Recantos, Ciclópico Acto, Os Sítios Sitiados, 11 Poemas e A Lume, volumes reunidos no livro “Poesia, 1993” distingue-se, num cerrado rigor construtivo, pela contenção emotiva e pelo despojamento de tudo o que é redundante face à contundência da palavra exacta, numa capacidade de fusão entre poesia discursiva e poesia imagética, de transmitir a ruptura com o senso comum numa expressão lapidar, onde as palavras são "em si mesmas, pura dinamite, uma permanente vertigem, uma constante transgressão ...

SOBE

Vamos ouvir três trabalhos poéticos de Luísa Neto Jorge.
O primeiro, um longo poema intitulado “Difícil Poema de Amor” e logo de seguida, sem interrupção, “Poema, quase epitáfio” e “As casas vieram de noite”

MÚSICA

Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu? Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me. Não me tens amor

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu. Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras. Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite ela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.

Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!

MÚSICA

Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

MÚSICA

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

MÚSICA

Ouvimos, no Palavras de Ouro de hoje, três poemas de Luísa Neto Jorge. Até ao próximo programa.
Ah, não se esqueça de que, se ainda escreve só pra a gaveta, ou pouco mais, envie-me os seus textos porque podem vi a ser lidos no Lugar aos Outros.

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