Estúdio Rasposa

Palavras de Ouro 128
"História Trágico-Marítima"

 

INDICATIVO

Escreve Luís de Camões nos “Lusíadas”:

Sabe que quantas naus esta viagem,
que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
inimiga terão esta paragem,
com ventos e tormenta desmedidas.

MÚSICA

Assim falou o Adamastor, pela pena de Camões, profetizando a sorte de muitos dos portugueses que, temerariamente, arrostaram com os perigos do «mar Oceano», em frágeis embarcações, lutando contra os elementos, contra os inimigos, contra a fortuna e contra os erros humanos, umas vezes ditados pelos poucos conhecimentos, outras pela incompetência - talvez estas as de menor número - outras pela cobiça, que os levava a exagerarem a carga das naus, pelo que tantas se perderam.
Muitos dos naufrágios e perdas em combate ficaram por relatar. Muitas naus houve que, pura e simplesmente, desapareceram, sem deixar rasto. De outros desses desastres, fizeram-se relatos, que se perderam. E mais se teriam perdido, se Bernardo Gomes de Brito não se tivesse entregado à tarefa de os recolher e dar ao prelo, em dois volumes que publicou nos anos de 1735 e 1736. Diz-se que a morte o levou quando tinha prontos a publicar mais alguns volumes - seriam três, ao que parece.
A ele ficamos a dever a preservação, até aos nossos dias e para a posteridade, destes documentos, que nos retratam algumas das mais trágicas cenas da nossa história náutica, sendo revestidas de especial intensidade dramática as que nos são relatadas por sobreviventes desses desastres.

MÚSICA

Ao lermos estas páginas, que ainda hoje nos emocionam, não podemos deixar de recordar Fernando Pessoa, na «Mensagem», quando canta:
Oh mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar,
para que fosses nosso, oh mar!
Do ponto de, vista literário, não podemos pretender apontar estes relatos como primores da nossa língua. No entanto, como alguns dos seus autores salientam, contava aqui preservar a verdade e conhecimento dos factos, sendo secundária a perfeição literária, tanto mais que muitos dos que as escreveram eram marinheiros e outras pessoas sem pretensões intelectuais. No entanto, como atrás ficou dito, é inegável a intensidade dramática de alguns episódios, assim como a perfeição com que retratam algumas cenas, com que pintam carácteres, com que exaltam atitudes e pensamentos, com que, nalguns casos, vão mesmo ao ponto de se entregarem a conjecturas filosóficas. A obra tem também o seu valor didáctico, uma vez que de onde em onde, ela nos aparece como verdadeiro compêndio das formas de diminuir o risco e o número das naus que o mar devora.

MÚSICA

As palavras que acabámos de ouvir foram escritas por Alves Ramos no prólogo da edição dos Amigos do Livro de a “História trágico-marítima” e o relato que vou ler começa com estas palavras introdutórias:
Relação do sucesso que teve o patacho “Nossa Senhora da Candelária” da ilha da Madeira o qual vindo da costa da Guiné, no ano de 1693, uma rigorosa tempestade o fez varar na ilha incógnita, que deixou escrita Francisco Correia, mestre do mesmo patacho e se achou no ano de 1699, depois de sua morte.
Transladada fielmente do próprio original, Lisboa ocidental, na oficina de Bernardo da Costa Carvalho, impressor da religião de Malta, ano de 1.734 com todas as licenças necessárias.

MÚSICA


Depois que fizemos nossos resgates na Costa da Guiné, com vento favorável, avistámos as Ilhas de Cabo Verde e, nesta altura repentinamente, nos vimos cobertos de uma névoa escura, de tal modo que os companheiros nos não conhecíamos; e, como nestas paragens se não estranha esta cerração, nos deixámos levar da corrente das águas, ainda que nesta ocasião começavam os ventos a soprar diversamente. A breve espaço, sentimos que as águas se moviam com um impetuoso vaivém, e logo, fuzilando os ares, foi tal a chuva e o repelão dos ventos, que sem governo atiraram connosco por tais partes, que não discorremos outra coisa mais, que o procurar salvar as Almas.
O traquete e a mezena voaram, o leme se arrancou e, fazendo água a embarcação por todas as partes, sem que a pudéssemos segar, quinze companheiros, que éramos, trabalhámos em formar uma jangada, para nos entregarmos às ondas, procurando dilatar a vida, pois na embarcação tínhamos certamente a morte perto. Lutámos toda a noite com todos os elementos; o ar se viu abrasado para a parte de estibordo e tantos raios e coriscos despedia, que as águas se abrasavam; os ventos eram tão fortes, que pareciam que desuniam a terra e que, repartida, em partes se arrojava sem ordem, com furioso impulso, por partes muito remotas; as ondas verde-negras se encapelavam e, abrasadas com a multidão do fogo que caía do ar, se abriam raivosamente para tragarem e cozerem nas suas fundas entranhas o nosso triste baixel; a terra é que era todo o nosso cuidado, para ao menos salvarmos as vidas.
Amanheceu, sem que soubéssemos a altura em que estávamos e, desfeita a cerração, para a parte do Leste, descobrimos ao longe, em distância de quase duas léguas, umas montanhas, ao que parecia, coroadas de arvoredos. Como não tinham os governo, a não demandámos, mas, deixando-nos levar da corrente, em pouco tempo varou o patacho em terra, em que todos saltámos, dando graças a Deus, por nos livrar do passado naufrágio.
Tratámos logo de salvar a fazenda e, para reparar a embarcação, cortámos madeira, aplicando-nos com cuidado, para nos retirarmos, por entendermos ser terra de cafres, e fugirmos do perigo, que muitos tinham experimentado nestas paragens, em ocasiões semelhantes.
No tempo que os companheiros tratavam do reparo da embarcação, eu e Manuel Antunes e João de Arruda preparámos os arcabuzes e, rompendo o mato, por uma e outra parte, por ver se acaso descobríamos rasto de gente e caça para comermos, notámos que a terra era ilhada, habitada de aves e monstros e abundante de víveres, que a Natureza
produzia, sem benefício de lavradores. Mono vimos que tinha como oito palmos de altura e com dentes de quatro dedos; tirámos-lhe com bala, sem que lhe fizesse impressão; antes, subindo-se a uma árvore, se pôs a fazer acções indecentes. Cobra vimos que tinha a grossura de um pipote de oito almudes, e fazia tal ruído, que nos deu em que cuidar, por nos vermos sem balas para a defesa, se nos investisse. Trouxemos caça e frutas e arroz bastante para satisfazer totalmente a fome, em três para quatro horas que andámos, sem encontrar criatura racional.
Comemos alegremente, sem que já nos lembrassem os perigos em que nos vimos, e sem o custo de que a Ilha fosse habitada de gentes, que nos desse algum cuidado.
Trabalhou-se todo o dia e, deixando vigias, descansámos; e, na manhã seguinte, que se contavam sete de Agosto, ainda mal se divisava a luz, quando vimos sair das águas uma mulher marinha e com tanta ligeireza entrou na terra e subiu ao monte, que não tiveram todos os companheiros o gosto de a verem. Tinha todas as perfeições até à cinta, que se discorrem na mais formosa, e somente a desfeavam as grandes orelhas que tinha, pois lhe chegavam abaixo dos ombros e, quando as levantava, lhe subiam a distância de mais de meio palmo por cima da cabeça. Da cinta para baixo, toda estava coberta de escamas, e os pés eram do feitio de cabra, com barbatanas pelas pernas. Tanto que se viu no monte, pressentindo ser vista, deu tais berros, que estremecia a Ilha, pelo retumbo dos ecos; e saíram tantos animais e de tão diversas castas, que nos causou muito medo. Arrojou-se finalmente ao mar, pela outra parte, com tal ímpeto, que sentimos nas águas a sua veemência.
Todos se assustaram, menos eu, pois já tinha visto outra no Cabo de Gué, e tinha perdido o medo com outras semelhantes aparições, e me lembra que, junto a Tenerife, vi um homem marinho de tão horrendo feitio, que parecia o mesmo Demónio.

Tinha somente a aparência de homem na cara, na cabeça não tinha cabelos, mas uma armação, como de carneiro, revirada com duas voltas; as orelhas eram maiores que as de um burro, a cor era parda, o nariz com quatro ventas, um só olho no meio da testa, a boca rasgada de orelha a orelha, e duas ordens. de dentes, as mãos como as de um bugio, os pés como de boi, e o corpo coberto de escamas, mais duras que conchas. Uma tempestade o lançou em terra, e tais bramidos deu, que entre eles espirou e, para memória, se mandou copiar a sua forma e se conserva na casa da Cidade,' naquela Ilha.'
Continuámos na caça, para nos alimentarmos e aos que trabalhavam; quando no terceiro dia, que se contavam oito de Agosto, avançando mais ao interior da Ilha, avistámos um monte e dele ouvimos uma voz que dizia: «Portugal, Castela; Portugal, Castela.» Olhámos a todas as partes, sem ver quem articulava as vozes que ouvimos, e continuavam: «Portugal, Castela; Portugal, Castela.» Preparadas as armas, rompemos mato e subimos à montanha, seguindo as vozes e, em uma concavidade natural, vimos um venerável homem, em vestido humilde, que nos chamou e, chegando nós com as armas dispostas para qualquer sucesso, nos falou desta maneira, pondo-se de joelhos e beijando a terra:
«Graças a Deus, Senhor; infinitas graças vos dou, por me chegares a tempo, depois de tantos anos, sem que eu visse gente da Europa.»
E logo, olhando gravemente e cortês para nós, disse:
«Senhores, de que nação sois? »
Nós. pasmados, não acertávamos a responder e, conhecendo ele o nosso susto, nos animou brandamente, rogando-nos para a sua pobre habitação, adonde entrámos e, sentados em um tosco pau, nos falou com tais palavras:
«Senhores, sois portugueses, ou castelhanos? Respondei sem susto, que não tendes quem, nesta Ilha, se oponha aos vossos desígnios. Se me procurais para acabar com a minha vida, aqui me acheis sem resistência e sem defesa mais que a de Deus; e, como de tanto viver estou aborrecido, grande favor me fazeis em me aliviares de tão grande penalidade.»
Eu, que respeitava a sua pessoa, desejando satisfazer à sua pergunta, o certifiquei de que éramos portugueses, que arribáramos com um grande temporal àquela Ilha, do que, tanto que me ouviu, posto de joelhos, levantadas as mãos, pondo os olhos no céu, soltando as lágrimas, deu graças a Deus, dizendo:
«Ah bom Deus, quão grande é a vossa infinita Providência! »
E, levantando-se, nos abraçou e saudou, dizendo: «Meus Portugueses, meus Portugueses!»
Sem que as lágrimas cessassem e levando-nos para o interior da cova, nos fez sentar junto a si, perguntando-me pelos companheiros e pelo nosso infausto sucesso, de que lhe demos logo larga conta. Perguntou-nos quem reinava em Espanha e, sabendo que em Castela reinava Carlos, segundo, e em Portugal D. Pedro, segundo, suspirando com alvoroço disse:
«E Portugal tem Rei! Oh Deus imenso, que te lembraste do teu Reino!»
E, dizendo-lhe nós como fora aclamado EI-Rei D. João, quarto, e os milagrosos sucessos daquele dia, não cessava de mostrar o gozo que interiormente sentia e logo, repetindo novas lágrimas, suspiros e soluços, nos perguntou pela Conquista de África, ao que respondemos dando-lhe conta do que sabíamos e, como desde a batalha, que perdera EI-Rei D. Sebastião, se não continuara, tomando-se horror a tal terra; e, desejosos nós de sabermos com quem tratávamos, lhe pedimos nos consolasse, dizendo-nos quem o levara àquela Ilha incógnita e não arrumada nas Cartas e Roteiros, ao que satisfez com tais palavras:
«No tempo que Filipe segundo entrou com violência em Portugal, se retirou muita gente, por não ver o seu Reino, recuperado das mãos dos Mouros pelos nossos ascendentes, sem ajuda dos vizinhos, sujeito a Príncipe estranho. Muito tempo andei retirado, discorrendo pelo interior da África, passei a Palestina e outras terras, tendo tantos trabalhos por muito suaves, na consideração de não ver com os meus olhos o quanto padeciam os meus naturais; e, passados alguns anos, passando à Europa, caí nas suas mãos e, entregando-me a certos homens, me levaram a uma embarcação na Baía de Cádis, que prontamente se fez à vela.
Tinha o Cabo ordem particular para que, em certa altura, me lançassem ao mar, sem que me ouvisse, nem me deixasse falar; e, notando ele as minhas acções e inocência, suspendeu a execução, até que, na altura de Cabo Verde, me intimou a ordem com tanto pesar, que bem entendi o desejo que tinha de me favorecer. Preparou-se uma lancha, o melhor que se poude, e nela se pôs mantimento para três dias. Entrou logo a animar-me, exortando-me a que confiasse em Deus, que me poderia livrar do perigo a que me haviam de expor; e me mandaram baixar à lancha, o que não quis executar sem me confessar e me preparar espiritualmente para entregar a alma a Deus, que tudo se me concedeu; e, tanto que baixei, cortaram o cabo e me entregaram à disposição das ondas. Não perdi o ânimo, antes constante sofri este golpe, esperando que Deus olhasse para a minha causa e, andando a lancha livremente, na manhã seguinte, de quatro de Outubro, cheguei por acaso a esta Ilha, em que habito, sem que, no decurso de tantos anos, visse alguma criatura racional. Penetrei o interior. encontrando a piedade nos brutos, que não experimentei nos homens; e encontrei esta concavidade, que a Natureza devia ter obrado para meu abrigo. Aqui me recolhi, aqui tenho passado tantos anos sustentando-me com datiles e outras frutas.»
Compadecemo-nos todos da sua solidão e o rogámos para descer e nos fazer companhia pelos dias que ali estivéssemos, o que dificultosamente conseguimos.
Recolhemo-nos todos e, tanto que os companheiros viram o novo hóspede, se alegraram muito; representava ele um aspecto senhoril, entre grave e brando, em idade pouco mais ou menos entre vinte e cinco até trinta anos. As suas palavras eram todas santas e ânimo guerreiro e sofrido. Quinze dias nos detivemos no reparo da embarcação, depois que ele chegou à nossa companhia, e nos ajudava, ordenando o que se havia de fazer, com tal suavidade, que não sentíamos o trabalho; não cessando de suspirar, todas as vezes que fazia particular reflexão em algum de nós. Mostrava ardente desejo da conquista da África e sempre rezava pelos que tinham falecido nesta demanda. O viver tantos anos atribuía à clemência dos ares daquela Ilha, em que nunca padecera moléstia; e, aos que se admiravam de tanta saúde e de tanta vida, sempre com o mesmo semblante, dizia:
«Deus, que me livrou de tantos perigos, me sustenta; ele sabe para quê.»
Carregámos a embarcação e o convidámos que viesse connosco para o Reino, desejoso de o tirar daquela solidão e de que se visse em Europa um tal prodígio; porém, ele encarecidamente nos pediu, com as lágrimas nos olhos que o não precisássemos a tal jornada, pois não chegara ainda o tempo de passar a Portugal; que, pelo amor que nos tinha, o lançássemos em terra firme, em qualquer parte de África e que, debaixo da palavra que lhe havíamos de dar, como Portugueses, partiria connosco, o que lhe jurámos.
Perguntámos-lhe se tinha alguma coisa na sua cova que embarcasse e respondeu que, desde que nela entrara, não cuidara mais que viver para Deus e que todos os anos lavrara por suas mãos uma túnica de folhas de palma, para cobrir honestamente o corpo; na cova não tinha mais do que uma Cruz, que por suas mãos fizera de madeira, e que essa deixassem, para que naquela terra ficasse o sinal da nossa Redenção e, quando ela se povoasse, nos tempos futuros, se acharia também a notícia do seu habitante.
Embarcou-se connosco, beijando a terra, com muitas lágrimas, fazendo-nos à vela. Esteve em nossa companhia dois dias e meio, em que nos contava monstruosidades daquela Ilha e, satisfazendo ao seu pedido, o lançámos em terra, duas léguas distante de Arguim, expondo-lhe os perigos a que se expunha, sem que o pudéssemos persuadir a suspender o desembarque em terra de bárbaros; ao que respondia que Deus, que o conservava até aquele tempo, o livraria de todos os perigos.
Despediu-se de nós com tantas lágrimas e gosto, que bem mostrava as saudades que de nós levava e o quanto se alegrava de passar àquela terra. Abraçou-nos a todos e, saltando em terra, a beijou e, levantando as mãos, agradeceu a Deus as mercês que lhe fizera e que esperava receber da sua piedosa mão; e, penetrando aquela Costa inculta, nos deixou sentidos pela falta da sua companhia.
Jamais pudemos alcançar o sabermos dele, a sua pátria e nome divertindo a resposta politicamente com tanta gravidade, que nos não dava confiança para instarmos; e, somente ao despedir-me, disse que, a seu tempo, o saberiam os nossos descendentes e, dizendo-lhe eu nos consolasse ao menos declarando o tempo, nos disse que Deus o sabia.
Vários discursos fizemos sobre este homem, conservado por tantos anos naquela Ilha, e agora caminhando por tais desertos, e nos persuadimos ser coisa maior. Deus o leve e traga a salvamento.
Esta Relação, que alguns curiosos guardam ambiciosamente, se publica para que chegue a todos notícia tão particular e se castigue deste modo a avareza dos que ocultam semelhantes memórias. E o ser fielmente trasladada do original, o juro aos Santos Evangelhos.

MÚSICA

Ouvimos, neste programa, uma das histórias narradas na obra “História Trágico-Marítima” editada pelos Amigos do Livro e de cujo prólogo retirei algumas das palavras iniciais.

INDICATIVO