INDICATIVO
Estúdio Raposa, um dos primeiros 10 podcast em língua portuguesa, está on line, semanalmente, há três anos.
MÚSICA
Há muitos anos que a Truca passou a incluir uma página de poesia dita, a que deu o título de “Palavras d’Ouro! Sabia a pouco mas o estúdio instalado, desse tempo só permitia gravações quando as aves dormiam e os cães não entoavam serenatas.
Um dia, no início de 2005, nos Estados Unidos, foi anunciada a criação dos podcast e logo, em Junho, Julho, meia-dúzia de carolas arrancaram com a criação dos programas, em português. Entre os primeiros estava o Estúdio Raposa, agora com um estúdio de som profissional e com o preço de alojamento, no estrangeiro, a baixar drasticamente comparado com os preços praticados em Portugal.
Criadas, pois, as condições para o meu regresso às lides radiofónicas, não às actuais, dominadas pela música pop, mas às dos anos cinquenta quando a palavra ainda convivia pacificamente com a música nas ondas da rádio.
No dia 6 de Julho de 2005, o Estúdio Raposa estava à disposição do mundo onde se fala português.
MÚSICA
Porque se tratava de uma novidade, rapidamente chegou às 2.000 visitas diárias, número que foi baixando até aos actuais 4.212 hits por dia, fruto do aparecimento de centenas de podcasts com predominância das rádios. televisões e jornais, alguns dos quais vaticinaram o rápido desaparecimentos do podcasting.
Três anos depois, são já 317 os programas disponibilizados, todos on line, Entre eles, 131 Palavras de Ouro, 16 episódios de audiobooks, 90 Lugar aos Outros, 52, histórias tradicionais portuguesas e 27 programas onde de ousa poesia erótica.
E centenas de autores lidos. Desde os mais consagrados aos desconhecidos, aquelas que, ainda, escrevem, apenas, para a gaveta.
Nos três primeiros dias de Julho, não posso precisar o dia exacto, estava on line o programa zero, uma espécie de apresentação. No programa nº 1, colocado on line no dia 6 de Julho podia ouvir-se um poema de Bethold Brecht e uma lenda. O seguinte, o terceiro, já com a decisão tomada de apresentar, sobretudo, autores de língua portuguesa, dava a ouvir Fernando Pessoa e Edson Ataíde.
MÚSICA
Este programa de comemoração dos três anos do Estúdio vai repetir os autores de língua portuguesa com que começou: Fernando Pessoa e Edson Ataíde.
MÚSICA
Edson Athaíde, um publicitário muito conhecido em Portugal e no Brasil, é dos poucos profissionais da indústria publicitária que publica. Depois de alguns livros que recolhiam as crónicas publicadas na imprensa, acaba de escrever a sua primeira obra de ficção, intitulada “O Endireita” com a particularidade de ser, provavelmente, o primeiro livro em língua portuguesa exclusivamente disponibilizado na internet e gratuito.
Sobre esta obra de Edson Atahíde escreveu Pinto Balsemão no seu prefácio:
Um livro que se lê depressa, ao ritmo de um mundo cada vez mais fragmentado pelo abuso das novas tecnologias e mais devastado pelos desequilíbrios da globalização. Mas um livro que, se quisermos deter-nos um pouco sobre o significado de cada um dos contos, nos obriga a pensar sobre o que somos e para que servimos. Para chegarmos à conclusão de que somos muito pouco e que o mais provável é que não sirvamos para nada.
MÚSICA
Se quer obter o livro, em formato PDF, aliás, único formato em que pode ser lido, escreva no Google, “ o endireita” lá vai parar. Entretanto aqui fica um dos contos de “O Endireita” para lhe abrir o apetite.
MÚSICA
Inconstitucional era um rei triste. Disputava com o seu irmão Paralelepípedo o trono do País das Palavras. Era uma refrega sangrenta. Com um incontável número de línguas mortas em combate. Houve mesmo palavras que de tão estropiadas caíram em desuso. E crescia cada vez mais, naquele
empobrecido país, a quantidade de blasfémias e termosx chulos.
Inconstitucional preocupava-se. Paralelepípedo perdera a última batalha mas não a guerra. Paralelepípedo era duro como uma pedra. E, junto com a sua amante chamada Quimera, a despeitada marquesa careca, tramava o seu regresso ao poder com um plano de guerrilhas, executado
por um grupo de mercenários chamados Gírias. Segundo rumores, o Reino dos Números ajudava-o de maneira camuflada, infiltrando zeros, disfarçados de ós, em palavras dúbias como Orangotangos e Quiproquós.
Os números desejavam destruir o País das Palavras. Eram invejosos. Sempre foram ricos, somavam e multiplicavam cifras ao infinito, mas sabiam que as palavras quando queriam eram muito mais simpáticas. Os números odiavam principalmente o Exército das Poesias, pois sabiam que era
o mais poderoso.
É que as Poesias usavam armas ardilosas, eram difíceis de atacar, ao colocar as palavras foram do
habitual contexto. Para ter uma ideia, uma vez os números despejaram uma carga na simplória palavra «cesto», sem saber que fazia parte de um poema de um desconhecidoescritor bissexto. Quando perceberam já era tarde, o «cesto» afinal representava o próprio universo, num sentido, é claro, pouco concreto. Não foram poucos os pares e os ímpares que no ataque desapareceram, como que engolidos por buracos negros.
Com tantos problemas, Inconstitucional sentia que algo estava errado. Qual seria o futuro do seu país? Como não poderia deixar de ser, ele era um rei letrado. Mas o que aprendera xno passado já de nada servia. Os tempos eram outros.
Recordava-se amargurado de antigos aliados. Suspirava de saudades por Aristóteles e Platão. Os gregos, esses sim, é que eram bons. Mas o que fazer num tempo em que dominavam os fundamentalistas do Calão, uma estranha religião, um tempo em que nada mais era estupendo, glorioso, magnífico, no máximo era giro, era fixe. E o pior, Inconstitucional já não tinha mais sequer adjetivos bons para expressar o tamanho da sua tristeza. Se ainda mantinha a realeza era porque os adjuntos, adverbiais e nominais, ajudavam.
Mas eram cada vez maiores os problemas de conjugação.
Inconstitucional estava diante do espelho a refletir, metaforicamente falando, sobre a situação, quando o palácio foi invadido por uma horda de ícones chineses, liderados por um indecifrável anagrama alemão. Inconstitucional quis resistir mas fora abandonado por todos. Só lhe restava a fidelidade
da sua secreta amada Esperanto, mas que era, obviamente, uma língua inútil. Desesperado, ainda tentou escrever uma carta de suicida mas lhe faltaram palavras. E assim morreu Inconstitucional. Ao lado do seu corpo foi encontrado apenas um papel com o seu nome, umas aspas e um ponto final
MÚSICA
Tal como aconteceu no dia 6 de Julho de 2005, no 2º número do Estúdio Raposa, vamos agora ouvir o segundo autor: Fernando Pessoa.
MÚSICA
Que posso eu dizer sobre Fernando Pessoa? Que graças à comemoração que agora se faz dos 100 anos do seu nascimento e muito devido ao facto de a Inês Ramos, no seu blogue de Poesia Porosidade Etérea tem incluído, em cada um dos 30 dias de Junho, um poema de Fernando Pessoa lido por mim, este poeta foi escutado alguns milhares de vezes a partir do Palavras d’Ouro da Truca. Hoje, não vou repetir nenhum dos poemas já gravados. A comemoração dos três anos do Estúdio Raposa far-se-à com três poemas, menos conhecidos, de Fernando Pessoa.
MÚSICA
Quero dormir. Não sei se quero a morte,
Nem sei o que ela é.
O que quero é não ser submisso à sorte,
Seja ela lei ou fé.
Quero poder nos campos prolongados
Meu ser abandonar
Aos seus verdes silêncios afastados,
Que amo só de os olhar.
Quero poder imaginar a vida
Como ela nunca foi,
E assim vivê-la, vívida e perdida,
Num sonho que nem dói.
Quero poder mudar o universo
De um para outro lado,
Como quem junta o seu viver disperso
E o ata com o fado.
Quero, por fim, ser coroado rei
Do nada a que enfim vou.
Será minha coroa o que serei,
E o ceptro o que sou.
MÚSICA
No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campo e céu,
Se é tarde ou cedo, deixo dt: notar.
Nada me diz de si qualquer coisa que eu
Possa gozar.
Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, estranho todo a mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem ter fim,
Ou se minto.
Na inútil hora
Eu, mais inútil que ela, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma coisa mora
Para eu fruir.
Apenas, vaga
Não uma esp'rança, mas uma saudade
Do tempo em que a esperança, como vaga,
Dava na praia da minha ansiedade,
Me toma e um surdo marulhar meu ser alaga
De vacuidade.
Mas acordo e com vão
Olhar ainda, mas já diferente,
Por 'star ausente dele o coração,
E eu outra vez, nem mesmo descontente,
Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão
Inconsciente.
Nada, só o dia-
Se é tarde ou cedo continuo a errar -,
Alheio a mim, a tudo dá a alegria
De não ter coração com que agitar
O corpo. E, quando vier a noite, tudo esfria
Mas sem chorar.
Isto e eu comigo
Posto no eterno aquém das coisas calmas
Que a vida externa mostra ao céu amigo -
Campos ao sol, vivas flores almas.
Isso só e não ter o coração abrigo
Nem sol as almas.
MÚSICA
No fundo do pensamento
Tenho por sono um cantar,
Um cantar velado e lento,
Sem palavras a falar.
Se eu o pudesse tornar
Em palavras de dizer
Todos haviam de achar
O que ele está a esconder.
Todos haviam de ter
No fundo do pensamento
A novidade de haver
Um cantar velado e lento.
E cada um, desatento
Da vida que tem que achar,
Teria o contentamento
De ouvir esse meu cantar.
MÚSICA
E, por hoje, neste programa comemorativo do III aniversário do Estúdio Raposa, é tudo. Até ao próximo no início do 4º ano de transmissões
INDICATIVO