INDICATIVO
São de António Franco Alexandre os poemas que ilustram este programa.
MÚSICA
António Franco Alexandre nasceu em 1944, em Viseu, onde viveu até ir para Toulouse em França, estudar Matemática, aí vivendo até 1969. Partiu depois para Harvard, EUA, para continuar a estudar Matemática. Regressou em 1971 a França, desta vez Paris. Em 1975, com um doutoramento em Matemática, voltou a Portugal e foi convidado para leccionar Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreou se como poeta ainda na década de sessenta, mas foi sobretudo a partir da publicação de "Sem Palavras nem Coisas" (1974) que a sua obra se afirmou, com um «discurso centralmente inovador», segundo Joaquim Manuel Magalhães, numa poesia que cruza diversas referências culturais.
MÚSICA
Considerado por Óscar Lopes a melhor revelação poética dos anos oitenta, António Franco Alexandre surpreende por uma ostensiva negação dos valores lógicos do discurso: não se trata nem do não sentido surrealista que encontra a sua ordem na própria desordem do inconsciente, nem do nonsense que procura pelo absurdo colocar em causa a possibilidade de comunicação da linguagem gasta pelo seu uso quotidiano; mas, como propõe Óscar Lopes, de um "pré sentido, ou pré percepção, um breve indício de sentido", que confere a impressão de "uma poesia do subliminar, mas de um subliminar que todavia acede à palavra, como configuração semi inteligível e todavia flagrante".
MÚSICA
António Franco Alexandre, em 1996 reuniu toda a sua poesia (com excepção do primeiro livro, "Distância") no volume "Poemas", e em 1999 publicou "Quatro Caprichos", ao qual foi atribuído o Prémio APE de Poesia 1999.
Franco Alexandre, que na poesia portuguesa contemporânea não se sabe situar dizendo "Não sei quem é a minha família, não sei se existe..." , continua a tomar como influência maior os grandes textos bíblicos. Foi para os poder ler que esteve diversas vezes em Jerusalém a estudar hebraico.
Vamos, de seguida e sem interrupção, ouvir cinco poemas de António Franco Alexandre.
MÚSICA
Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar se no mundo.
MÚSICA
Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro da água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
MÚSICA
Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
Já te espantou o lume, quando viste
uma língua no sonho da saliva,
e te riste, de ser tão branco o sangue
que nas beiras da noite adormecia.
Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma humana,
e resolver enfim, mas para sempre,
se ser o sacro emblema do horror
ou o primeiro verso de um poema.
MÚSICA
Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar me um lugar qualquer mais adiante,
despir te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
MÚSICA
Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.
MÚSICA
Ouvimos, neste programa, notas biográficas e cinco poemas de António Franco Alexandre. Os poemas que ouvimos podem também ser escutados e lidos na página Palavras d’Ouro da Truca: www.truca.pt.
Até ao próximo programa.
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