CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (6)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


Meus Amores

Com este episódio da história de “O Casarão” termino o primeiro dos dois cadernos que relatam grande parte da sua história.
É curioso notar que esta melindrosa e ousada descrição a Minha Querida e Santa Avó não a incluiu no seu diário disperso em diversos cadernos (todos com o título “Meu Querido Diário” e, mais abaixo, em letra pequenina, o seu nome completo; Maria de Jesus Purificação Jesus).
Estes dois cadernos, pelo contrário, têm apenas o titulo “História do Casarão” e reportam-se a um resumo - se assim lhes poderei chamar - do volumoso livro que existia na biblioteca.
Não se trata, e insisto neste particular, de prosa de minha avó, mas da transcrição, digamos que abreviada, das vicissitudes daquela casa já em completa ruína quando saí de Portugal. 
Para quem não aprecie uma narrativa despida de preconceitos não leia o episódio desta semana.
Eu li vezes sem conta.
E sabem porquê?
Porque esta vossa Maria é uma depravada; Deus me perdoe por tal confissão!
Beijos da senhora D. Mafaldinha (não lhe tenho tirado fotografias. Espero por um fim-de-semana com Maria do Céu)
(E como estamos de férias? Esses Algarves? Passeatas até Badajoz?)
Maria,
Hanoi, 3 de Julho/08

(in Diário da Minha Avó)

O CASARÃO” a páginas 55, 56 e parte da 57.

“ - Uma de cada  vez - “ disse Napoleão. E agarrou-se à divertida Colombina.
Os músicos não paravam de tocar e de pronto aqueles primeiros momentos cerimoniosos, deram lugar a uma lúdica atmosfera de alegria.

“ - Como suporta esse colete Senhor Imperador. A sala estala de calor” - disse Colombina.

Nesse instante um dos serviçais, chamou a atenção de Suas Exas. para as velas de um dos lustres ingleses de cristal e bronze, necessitarem de ser substituídas, por já ser trémula a luz no meio da sala.

“- Não substitui nada! Quem manda sou eu! “ - afirmou-se Napoleão, com ar agastado, para o serviçal - quanto mais escuro...

“- Oh! Imperador. Como uma mulher é feliz por sentir o poder de um homem!” - disse Colombina.

“- E como um homem é feliz por reconhecer o seu poder numa frágil mulher! “

“- Frágil? Esta mulher?- disse Colombina, e afastou ligeiramente a máscara que lhe tapava os lábios vermelhos.

 Mas Arlequim interveio:

“ - Que vos parece a minha chemise sur mesure?

“ - Parece-me não ser própria para se usar no Germinal. Ainda faz frio” - respondeu Napoleão.

“ - Pois se tem frio, eu aqueço-o” - disse Colombina.

O cronista faz aqui uma pausa para se debruçar sobre a conveniência de continuar com os diálogos que preenchem grande parte do manuscrito que está a transcrever; melhor será, por agora, deixá-los por pouco tempo no silêncio. Este livro - que irá decerto perdurar no tempo, correndo os anos ao lado de gerações - é dedicado aos que, depois de ele, desejem inteirar-se dos segredos destas paredes que presenciaram solenes momentos, e continuarem - se assim o entenderem - a narrativa do mais que certo envelhecimento desta casa. O Casarão é uma relíquia agora um pouco em decadência, dando mostras duma austeridade perdida, com beirais carregados de ninhos de andorinhas e estatuetas partidas pelo jardim abandonado.

O cronista está velho. Doente. É-lhe difícil andar. Os ossos do seu corpo murmuram dores. Há muito que não entra no salão de baile; os lustres de origem inglesa são refúgio de aranhas por se lhes terem apodrecido os panos que os cobria. Não pode, disso tem ele como certo, empregar o seu parco rendimento para dar mais luz a esta casa

Nunca viveu a mocidade. Deixou-se levar pelo próprio destino, dando-lhe a mão, resignado, como menino comportado a preceito. Nunca recebeu de Deus a bem-aventurança e ao inferno - que é para ele um outro Deus - agradece-lhe a companhia que lhe fez ao longo de muitos anos, a companhia brincalhona de quem leva a vida a impingir uma lareira que, no inverno, é bem confortante. Disto sabe o cronista de sobra.
Esteve na Índia e na China. Correu mundo. Falta-lhe chegar ao céu.
Quando fechar estes olhos para dormir o sono eterno, o Casarão continuará ao lado da esperança; algum senhor das terras altas há-de ressuscitá-lo da ruína.

Esta casa bem merece ser recuperada; faz parte da história de Portugal. É um património vivo. Por aqui passaram nobres, fidalgos, políticos, reis e rainhas, e julgo saber que também um almocreve.
A vivência desta casa dá-lhe o estatuto do seu nome ser escrito com letra grande.
As maledicências que lhe dirigem devem ser mandadas às bostas das vacas.

Por isso, aquele grande baile oferecido por Monsieur Chevallier a Junot criou fama, divulgou-se como os nomes ilustres, e duma história verdadeira se fizeram milhares falsas exactamente porque o povo gosta de ouvir o que lhe parece mal, ou seja, para repisar o que já foi dito atrás, gosta de bostas de vacas.

Olhando de novo para as sebentas folhas, e relendo o conteúdo, observa o cronista que a descrição do baile de fantasia deve ter sido manuscrita numa data posterior à saída de Chevallier para o Brasil. Assim pôde o autor ou autora dar largas à imaginação dos relatos alheios, vindos das casas humildes ou das senhoriais, das montanhas ou das planícies, dos riachos ou dos rios.

O serão terminou com todos os convidados mortos de cansaço, nus, completamente nus; foi uma noite inteira dedicada ao prazer, à bebida, à cópula, ao deboche. Havendo mais homens que mulheres (as nobres e putas damas de Lisboa), narra-se no manuscrito terem sido elas possuídas, simultaneamente, por dois ou mais homens numa frenética ânsia de orgasmos fingidos ou verdadeiros. As ninfomaníacas apelavam aos gritos para que a dor não fosse insuportável mas os homens inebriados mais se excitavam com as vulvas ansiosas e ensanguentadas. As bocas feridas pelas arremetidas dos erécteis falos, esperavam receber, com sorrisos e lágrimas, esperma doce que engoliam numa saciedade de quem sonha ver um oásis num deserto infinito.

A criadagem aldeã, boquiaberta, queria sair daquele inferno mas as meninas, já sem corpete e saia, de maminhas proeminentes, amarradas às colunas de mármore, deixavam-se lamber da cabeça aos pés, por homens e mulheres, e riam de nervos pela novidade; era a primeira vez na vida que sentiam o corpo vibrar estranhamente com aquelas caricias que pai e mãe nunca lhe tinham dado. Era então verdade as lições do padre Celestino sobre o Jardim das Delicias, da criação da mulher, e dos frutos que o homem podia comer para se procriar com a magnitude de Deus.

Os criados que serviam o vinho temperado com canela, também não escaparam à ânsia da posse. Numa das salas (ficou posteriormente conhecida como a sala dos sodomitas - hoje já não existente) foram despojados das suas fantasias de libré e sodomizados sem saberem o que lhes estava a acontecer. Não fora para aquilo que Chevallier, senhor tão nobre e de fina linhagem, os tinha aliciado. Habituados às frescas madrugadas, atrás da besta no arrastar penoso do varal da nora, com cantigas nos lábios para a água chegar fresca à ínsua, nunca imaginaram em como era penoso tal sacrifício, e juraram, naquele momento de dor, jamais abordar a conversada por aqueles caminhos.

“Oh! rio das águas claras que vai
a correr direito ao mar…”

De madrugada, quando o primeiro galo cantou, e um outro, longe, lhe respondeu, o Casarão principiava a dormir.

Na sala grande e nas outras duas mais pequenas, as máscaras e os trajes de fantasia espalhavam-se amarrotados e sujos. Em farrapos também se encontravam todos os convidados, drogados, saciados, sonâmbulos alguns. Copos e jarros partidos, Um espelho de cristal estalado de alto a baixo. Apenas uma única pálida vela ardia num dos lustres. Pelos cantos das salas, perdidas, travessas em pedaços com restos de peças de fruta.

Os músicos que também entraram no festim depois de todo o repertório repetido até à exaustão, foram encontrados no jardim, na tarde do dia seguinte, encharcados da chuva daquela noite de Abril. Não sabiam onde estavam e o que tinham feito. Um deles, com uma pauta manuscrita, cantava com preguiça o hino da maçonaria.

“Vingai direitos
Da natureza!”

A criadagem contratada tinha fugido quando um de eles descobriu como se destrancava a fechadura do forte portão.
Não reza no manuscrito - neste que o cronista tem entre mãos - como os convidados se encararam sem as fantasias.E quando o sino da igreja, em S. Miguel, badalou na hora da missa, esta casa recebia a sombra da grande árvore.


Queridos (mesmo para os que não sejam Truquistas)

Propositadamente não vos mando esta semana, a continuação da história do “O Casarão”.
Não me é fácil (e não o tem sido desde que decidi transcrever o caderninho de minha Avó dedicado exactamente ao edifício “austero e de paredes severas”, onde eu própria nasci) passar para vós situações “históricas” que na altura provocaram grande escândalo em todo o “reino”.
Se no baile de máscaras aconteceram coisas perfeitamente banais desde os tempos em que o primeiro homem chegou à conclusão ser necessário preservar a espécie e, mais do que isso, ter descoberto que os “preliminares” dessa reprodução lhe provocavam um bem estar na alma e no corpo, nada teria de escândalo.
Mas a história de “O Casarão” ultrapassa esse estado de conforto físico, porque se passou numa época conturbada, com os franceses a entrarem por aí dentro numa atitude política perfeitamente planeada, a corrupção envolvente, as influências, as “lavagens de dinheiro”, a negativa imagem de um reino mais uma vez usado como trampolim para objectivos que em nada foram criados para beneficio dos portugueses.
E lembrei-me (vejam bem isto) daquela fotografia tirada na famosa “Cimeira dos Açores” (se a situação geográfica agora se me não escapa) onde se viam, sorridentes, omnipresentes, os senhores George W. Bush, José María Aznar, o britânico Tony Blair e ao lado, com sorriso airoso e vaidoso de quem presta um grande serviço à Nação, o vosso Barroso, de porta chaves na mão com todas as chaves do arquipélago.
Três dias depois o Iraque foi invadido numa curiosa operação de charme; a de se descobrir “armas de destruição maciça”. Para lá dos milhares de mortos, dos palácios destruídos, da colecção de automóveis de luxo feitos em pó (e eu sem um único carrinho!), da corda à volta do pescoço de Saddam, uma coisa parece ser certa; não há, no Iraque, “armas de destruição maciça”.
O Casarão, nos tempos de minha avó, foi uma casa de bem; De gente honrada, trabalhadora, amiga do seu amigo e, muito embora no “Diário” ressaltem conflitos com os trabalhadores, apenas poderei acrescentar serem situações pontuais, senão mesmo banais se equacionar-mos não ter havido, até hoje, desde os primórdios da criação do Universo, um único dia de paz.

Em termos de emprego tenho agora uma oportunidade; Respondi a uma empresa que exporta “Amêijoa do Vietname” apanhada nas frias águas do Pacifico.
Sendo Portugal um grande importador deste bivalve vietnamita, poderei eu ter alguma esperança?
A ver vamos; Portugal tem um povo sereno (disse Pinheiro de Azevedo) e passou ao lado dos milhões de mortos e estropiados que os americanos fizeram por aqui.

Maria, Hanoi, 27 de Junho de 2008


(in Diário de Minha Avó)

“ O Casarão” a páginas 53 e 54.

A descrição do baile de fantasia que teve lugar no dia seguinte ao do jantar de cerimónia descrito no anterior capítulo, num manuscrito vulgar, não oferece ao cronista grande confiança. Por vezes, na história desta casa, as fontes são parcas mas este narrador tenta esclarecer-se o mais que lhe é possível; E assim, sempre com a intenção de registar os factos tal como se passaram, pesquisou em muita correspondência e apontamentos diversos (inclusive nos diários de algumas senhoras e familiares directos das demoiselles que estiveram no baile) e nos relatos circunstanciais dos fidalgos que participaram na grande soirée. Maledicências habituais entre a grande nobreza de Portugal.
Por fim em dois panfletos sobre “O Baile de S. Exa. Chevalier no Casarão de S. Miguel”, onde se lhe afigurava ter suficiente matéria que desse alguma credibilidade ao conteúdo do manuscrito que refere nas primeiras letras deste capitulo. Mas nem num simples período, por mais breve ou tímido, os referidos panfletos se referem ao escândalo social que se veio a propagar de um dia para o outro.
O manuscrito preenche duas folhas de papel sebento, escrito de ambos os lados a pena fina, com caligrafia que mais se lhe afigura de mão de mulher mas, por outro ponto de vista, a narração é por demais escandalosa para se lhe dar a autenticidade feminina, muito embora se deva ter em conta que, por descuido ou precaução, o manuscrito é anónimo.
De qualquer modo, sendo ou não verdade a narrativa que segue, aquela noite espalhou-se de boca em boca, pelos quatro cantos de Portugal. Monsieur não levou em conta um elementar pormenor; o da criadagem recrutada na aldeia, analfabeta nas letras e nos segredos da alcova, vestida a trouxe-mouxe para a festa, que tinham por principal missão cumprir ordens dum chefe contratado que falava francês.
Ao assistirem aterrorizados, pela noite dentro, ao desenrolar dos acontecimentos, depressa se esqueceram das promessas de absoluta confidencialidade que tinham prometido em contrato verbal. No dia seguinte a aldeia inteira sabia do escândalo e dois dias depois a noticia do baile de máscaras chegava a Lisboa.
Compete-lhe fazer uma advertência; Monsieur Chevallier sabia que o vinho, a dança e o mistério das máscaras nas faces das esplendorosas“Damas de Lisboa”, iria propiciar um clima afrodisíaco para o qual os seus convidados ansiavam, desde o convite em papel impresso em dourado; uma orgia colossal como nos remotos tempos de Dionísio.
A fama do baile de fantasia, como se já referiu a páginas atrás, deu também azo e um infinito número de desenhos, alguns dos quais de tão gritante relevância que a “Sancta Sedes” fez saber, por “edictu”, que considerava proscrito da cristandade todo e qualquer cidadão que tivesse ou viesse a ter gravuras daquelas vergonhosas colecções de obscenidades. Curiosamente, anos mais tarde, alguns eclesiásticos ajudaram Chevallier, a escapulir-se para o Brasil, integrado na comitiva portuguesa.
As folhas de papel rezam então, o seguinte:
“O salão de baile estava esplendoroso e recuperou, nessa noite, o passado esquecido. Os três grandes candelabros, cada um com cento e trinta velas acesas, reflectiam-se nos espelhos das altas paredes. Os músicos, num palanque que não ocupava espaço no salão, principiaram a tocar mesmo antes das primeiras máscaras entrarem na sala.
Rosas amarelas e vermelhas, em jarras altas, duplicavam-se mil vezes nos reflexos dos espelhos de cristal.
E assim, na solenidade da seda carmesim que cobria parte das paredes, começaram a entrar os convidados com máscaras à moda de Florença, Veneza, Nice, Roma, Paris, aos mesmo tempo que os musicos tocavam os primeiros acordes de ensaio.
As ricas máscaras, algumas jocosas e rebeldes, eram uma provocação: nas perfumadas demoiselles, de decotes sublimes, onde não faltava um travesso sinalzinho vermelho, a grande atracção para os homens era o de adivinhar qual a dama que estaria por detrás da face oculta.
Seria de bom tom, tom de cerimónia, o primeiro par dar o primeiro passo; e essa honra deveria caber a Junot com Antoinette. Mas, no meio de tanta fantasia, quem desse o primeiro passo por respeito ao acto cerimonioso, seria naturalmente identificado.
Mas a dado momento entra na sala um criado de libré com taças de ponche há onze dias preparado: Estava uma delicia de bebida, inebriante e fresca.
E o baile começou sem a habitual cerimónia e sem grande graciosidade, quando a pequena orquestra atacou um minuete de Boccherini já sobejamente conhecido.
E nesses primeiros passos entra na sala Napoleão Bonaparte: A melhor e mais perfeita fantasia da noite! Perante tal verosimilhança o baile parou e todos se curvaram.
Apenas uns dos criados, de fantasia ribatejana, se atreveu a rir descaradamente ao ver aquela patusca figura com a mão direita dentro do colete, sobre o estômago e, na cabeça, um imponente chapéu.
“Napoleão” olhou para a grande tapeçaria, simbólica invocação da Revolução Francesa, e disse:
“ - A Revolução acabou. Agora sou eu a revolução! No baile os homens não são nada; é um homem que é tudo. Quem me deseja para par?”.
Três demoiselles correram para ele.


(in Diário da Minha Avó)

O CASARÃO” a páginas 50, 51 e parte da 52.

Dobrou o pequeno papel que se lhe oferecia uma noite de repasto amoroso e meteu-o no bolso do seu colete.
Mademoiselle Marquise disse-lhe:
“ - Que pena este Chevalier não ter aqui em Portugal, nesta hameau, uma espécie de Petit Trianon, em vez deste casarão com cheiro a bafio. Se assim fosse pedia-lhe, a si mon Junot, mon petit chéri, para me ir buscar um lenço ao cabinet de toilette de Marie Antoinette”.
Mais uma vez o convidado de honra olhou para as belas mulheres que ofereciam à comprida mesa um ambiente de calor e doçura.
Já longe iam os tempos das perucas cheias de pó e de vestidos com muitos metros de fazenda. A mulher sentia-se mais livre e até ultrapassava a “moda Antoinette” na sua fase campesina. Um adeus ao espartilho para que o corpo se liberte daquele amaldiçoado torniquete e possa mostrar as suas formas naturais, bem nutridas e moldadas ao gosto dos homens.
Mas, nesse momento, vindo na sala contígua, ouviu-se tocar a Marselhesa; os músicos, enfim, tinham chegado.
“ - Só agora?!”- perguntou Chevalier ao serviçal que mandara a Lisboa.
Sua excelência - disse-lhe o serviçal - estava com inteira razão mas os músicos tinham tido um problema com a mala-posta; Um dos cavalos partira uma mão e a muda ainda ficava a milhas. Depois algumas horas numa taberna emborcando copos de vinho para fazer passar o tempo... mas ali estavam muito honrados por servirem o ilustre Monsieur.
“ - E o especialista em cunnilingus? Por onde anda?
Infelizmente esta grande e importante tarefa não a pudera cumprir com rigor, ou melhor, falara com o fidalgo, isso era certo, mas ele não podia aceitar tão honroso convite porque estava com os dias ocupadíssimos; uma portuguesa do paço, duas francesas e duas austríacas.
“ - Eu disse-te que lhe pagava a dobrar! - interroupeu-o Chevalier, visivelmente irritado.
O serviçal também tinha informado o fidalgo da bondade de S. Exa. mas ele respondera que a imagem de Monsieur, quanto a pagamentos, não era muito satisfatória lá por Lisboa.
“ - Desanda! -
Os músicos tinham terminado de tocar o hino.
“ - Merde, Chevalier, nesta casa ainda não se sabe que esta música é proibida? - disse Junot referindo-se à Marselhesa - O Imperador aboliu-a, como aboliu o feudalismo. Percebeu?” - E bebeu mais um copo de Reno. - “- Mas canto-lha, quer? quer que a cante? Fica feliz se lha cantar?
Levanta-se, inseguro, e caminha para o lado oposto da mesa onde o esperava Chevalier que entretanto tinha afastado o velho Fauteuil.
E pelo caminho Junot passava a mão suada pelos seios das senhoras…

“Allons enfants de la Patrie,
Le jour de gloire est arrivé…”

Nesse momento (o cronista não pode deixar de sorrir ao ler esta narrativa) entra a espanhola contratada, pois julgou ser aquele o momento da sua entrada para animar a festa com um numero de seguidillas.
Oferece a Junot uma terrina de Sèvres com “pechuga de pollo con mucho aceite” e, de castanholas e traje típico, dança e canta para todos:

“Ai que ti quiero
Ai que ti quiero
La noche que me quieras
De cuerpo entero…”

Jean-Andoche explodiu. E agarrando num copo de vinho deixa cair ao chão a terrina de Sèvres.
“ - Estou metido numa conspiração! Primeiro la merde de la music, agora os espanhóis. Chevalier Monsieur! foi para isto que me convidou? Para me humilhar?!”
“ - Oh! meu bom amigo! Para se divertir o máximo que quiser! Fiz todo o possível…”
“ - Ah! sim?! - e virando-se para a espanhola - deixa as castanholas e tira a roupa…”
A mulher desprendeu-se das castanholas mas fugiu pela sala, esbaforida, aos gritinhos.
Chevalier considerou ser oportuno interromper aquela postura do seu convidado de honra.
“ - Junot, mon ami, o baile de fantasia é amanhã, com boa música, sem Marselhesas nem castanholas. Está prometido!”.
“ - Mas a espanhola fica ou vai? hem?!”
“ - Pode contar com ela. Será sua se a quiser!”.
“ - Bom, se me foi dado ouvir bem, assim já é falar. Um homem… a imaginação dum homem que quer comer uma mulher, deve ultrapassar o não consentimento dela. Deve ser virgem, não lhe parece? Fugiu!”
“ - Deve ser, sim! Deve ser!”.
Monsieur Chevalier olhou para a terrina partida. Comprara-a a um judeu polaco, em Paris, por bom preço. Bem sabia que não a pagara logo. Poderia mesmo dizer que ainda a devia.
Enfin, c’est la vie.


(in Diário da Minha Avó)

Tarde calma, com temperatura amena
Uma ou outra nuvem passageira quase se dissipa para que o astro não nos prive da sua luz que enriquece o campo e os nossos corações.
Espreguicei-me na balaustrada do caramanchão, agora coberto de madressilvas, e julgo que adormeci um pouco no cadeirão de meu pai.

Meu marido está por Abrantes. Teu avô, depois da sua pequena sesta que o reanima para o resto do dia, foi fazer uma visita à “ilustre Casa dos Canaviais” como ele tanto gosta de alcunhar os vizinhos de Rossio ao Sul do Tejo. Acho-o melhor agora, depois de ter ultrapassado a última maleita que quase o levou para o jazigo da “Família Jesus”.
O físico, que há anos o acompanha, disse-nos; “o Senhor Purificação deve cuidar-se em não apanhar resfriados, especialmente em dias de maior humidade”.
Nós sabemos que assim o deve fazer, mas já o temos visto em frescas madrugadas com um simples capote de pastor, passeado-se pelo jardim com o obediente e fiel labrador a seu lado; Teu avô não encara a velhice como qualquer mortal. Tantas vezes nos tem dito;

“-Nascemos para cumprir uma missão. Ela atingida e nada mais nos resta! Somos exactamente como os toiros; quando eles entram na lide devem saber que o fim os espera. O pior de tudo é que não têm forma de escapar!”.

Esta manhã recebi uma carta tua; escreveste dois períodos para tua mãe, um para teu pai.
Queria estar uma tarde inteira a ler a tua letra, saber mais um pouco de ti nessa Lisboa que amas.
Aguardo ansiosamente pelas próximas férias porque me parece não ser possível irmos até à capital em dias próximos.
Mas vou buscar o caderno dedicado à história do Casarão e continuar a transcrever parte do “Livro dos Livros”.

Tem presente, minha querida Remédios (quantas vezes já to disse!) que esta casa é tua. Irás fazer parte da sua história com o teu marido, com os teus filhos (netos queridos que gostarei de acarinhar se Deus me der vida e saúde, mesmo já velhinha e trôpega!), com os teus amigos. A história duma casa é exactamente a história das famílias que nela se abrigam ao longo dos anos; quantos nascimentos e quantas mortes, quantas lágrimas de desgosto ou alegria, quantos dias felizes ou infelizes, quantos amores ou desamores.
A minha relação com o teu pai (que tu tão bem conheces) só o Casarão a sabe na integra... mas estas tão largas paredes não revelam segredos em voz alta.
Vou então para a biblioteca (nesta altura o Sol já por lá não bate), abrir o cartapácio, e continuar a fazer cópia com novo aparo. Ouve-me.


“O CASARÃO” a páginas 48 e 49.

Junot foi apanhado de surpresa. Não esperava encontrar nesta casa a atraente Antoinette, a lindíssima neta de Marquise de Pompadour. E quando de braço dado com a jovem entra no salão de jantar, tem a inesperada alegria de ser recebido por um prolongado aplauso de boas vindas. De entre todos os convidados destaca-se uma voz de barítono; “Vivre la France! Vivre Napoléon!”, grita com a garganta embargada pela emoção.
“Monsieur, Dames, le dîner est servir” - disse um dos criados de libré , num péssimo francês.
Jean-Andoche foi encaminhado para o cadeirão numa das cabeceiras da comprida mesa, ficando Chevalier no lado oposto. Todos os convidados, aos pares, sentaram-se então nos seus lugares. E as conversas romperam o ar até aí cerimonioso...
Nos existentes documentos da época - papeis rascunhados, algumas cartas posteriores à partida da família real portuguesa para o Brasil, na assumida postura do Conde de Linhares quanto líder do “partido inglês” e, especialmente, no diário de Junot - pôde o cronista resumir, como segue, os desvelos esforços postos naquele jantar e pormenorizar  todo o faustoso encontro de grandes senhores no baile de fantasia e de libertinagem.
Monsieur Chevalier, três anos depois, precisamente no dia 29 de Novembro de 1807, embarcava para o Brasil no brigue Vingança, graças a este esplendoroso acontecimento que conseguiu romper as linhas das confidências e tornar-se num elemento chave da sua fuga desordenada.
Pelo Brasil veio a falecer, julgo que dois anos mais tarde, levando com ele o saudosismo do “Ancien Régime” da querida França, e o conformismo de nunca ter conseguido cumprir os seus “compromissos de honra”; Em Portugal deixou uma dívida superior a toda a província ribatejana.
A festa em “honra de Junot” - como ficou conhecida na história do Casarão -  custou-lhe uma fortuna e, por pouco, não teria resultado num fracasso.
Foi o caso de alguém entendido em coudelaria ter confidenciado a Jean-Adoche - quando este se preparava para atacar um soberbo peito de pato - que o potro de Alter, que Chevalier lhe oferecera logo à chegada, deixava-lhe algumas dúvidas de pureza. E do outro extremo da mesa Monsieur conseguiu ouvir as palavras que Junot lhe dirigia, em voz alta e azedada.
“- Mon cher ami Chevalier. O pato é digno de Sua Majestade, mas o cavalicoque não deve servir para puxar um arado. Ou estou enganado?.
Não teve resposta. Na mesa os gritinhos das damas eram por demais estridentes e ao lado de Junot mademoiselle Marquise não o largava com segredinhos de menina mimada.
Também nesse momento, por debaixo da toalha de forte linho, chegava às mãos de Junot, um pequeno papel, dobrado em quatro, vindo das mãos de um familiar de Rodrigo de Sousa Coutinho que, na mesa, lhe ficara à esquerda.
O papelinho rectangular tinha um desenho delicado; Era uma linha horizontal, onde se sobrepunham traços na vertical. Por debaixo destes traços irregulares, todos de diferentes alturas, umas iniciais em letra gótica; LA, SC, D.J. C.B e mais dois ou três indecifráveis.
Mas o mais resplandecente era uma misteriosa frase que dizia assim:

“O traço mais alto representa o melhor orgasmo que até hoje atingi na minha vida. As iniciais referem-se aos nomes dos homens que comigo se deitaram. Espero com ansiedade desenhar um traço ainda mais alto. Sei que tenho muito para dar”.

Junot, bebe dum trago um copo de vinho e olhou para todas as lindas mulheres.
De quem seria o papelinho?


(in Diário da minha Avó)

“O CASARÃO” a páginas 46 e 47.

Jean-Andoche Junot, com mais dois secretários, chegou ao Casarão num bonito landó de capota abaixada; quando saiu de Abrantes a noite próxima já se anunciava fresca mas, ao transpor o largo portão de ferro forjado do Casarão, os dois cavalos brancos, que ele próprio comandava, estancaram.
O caminho estreito que levava até à porta principal estava esplendorosamente iluminado por tochas que o serpenteavam e as gardénias deixavam fugir das suas flores brancas um perfume inebriante. Ao fundo, enquadrado por um arco de palmeiras, a casa de Monsieur Chevalier, jóia de um império, cheia de luz, destacava-se do cinzento chumbo do céu. E mais ao longe, vindo do interior daquelas paredes nobres, ouvia-se um etéreo som de harpa.
Junot desceu do landó e caminhou devagar ao lado das gardénias, deixando-se atrair pelos acordes que o recebiam como uma saudação de boas vindas.
E à porta, ao cimo dos três degraus que antecediam a entrada para uma pequena sala, Chevalier esperava-o embevecido pela chegada do seu convidado de honra, e para ele estendeu os braços num efusivo cumprimento, perguntando pela saúde de S. Exa. e a de Madame Laure Permon.
Jean-Andoche inclinou ligeiramente a cabeça com um sorriso, e disse-lhe:
- O facto de ter aceite este seu amável convite não me faz esquecer a sua atitude ao fugir do“Ancien Régime”, e pelo que me é dado observar continua a preservar os seus velhos e faustosos costumes.
Chevalier, com um sorriso, limitou-se a um ligeiro encolher de ombros e retorquiu-lhe:
- Tentei salvar a pele, meu amigo! O Senhor, no meu lugar, não o teria feito?
- Talvez Chevalier, talvez! Mas sempre defendi os ideais da independência, e V.Exa,, pelo que se vê, continua com os “divinos” prazeres da nobreza. Mas fez bem Chevalier! Está livre dos credores que ainda o procuram nos arredores de Paris e escolheu para viver o resto dos seus dias no seio duma realeza que é, talvez, a mais corrupta da Europa.
- Sei que posso contar com V.Exa para...
- Para quê meu bom Chevalier? - interrompeu-o com voz irónica - Para o livrar das dividas que semeou pelo campesinato? E aqui em Portugal? Como tem conseguido os expedientes... - mas parou para admirar uma estatuária clássica; corpo de homem nu encostado a um tronco donde se desprendia uma serpente que lhe tapava o sexo.
A estátua (que hoje o cronista não sabe onde se encontra) dava entrada para o grande salão de baile há tantos anos fechado à claridade do dia.
Agora, naquele momento, era um esplendor de luz com algumas quinhentas velas que se multiplicavam nos espelhos, todas acesas, numa feérica iluminação que encandeava os olhos.
Na parede do fundo uma grande tapeçaria exibia Napoléon Bonaparte, de uniforme, a assinar o “Código Civil”.
- Julgo saber - disse Chevalier perante o espanto de Junot - que o novo “Código” da minha Pátria, sancionado pelo Imperador, respeita a propriedade privada, a igualdade para todos os burgueses, o direito à liberdade...
- Mas o meu anfitrião não é burguês, pois não? - disse Junot - A propósito Chevalier! Já ouviu falar de Wellesley? Arthur Wellesley? Um súbdito inglês, magro, alto. Não?...
Chevalier não ouvira falar, nem conhecia. Era a primeira vez que ouvia aquele nome. Mas nesse instante, vinda de outra dependência, entrou no salão uma alegria esfuziante, uma mulher de lindas cores, jovem, vestida de branco e diadema nos cabelos soltos;
- “Mon chéri, mon chéri, enfin arrivé la mienne fortune. Ah! Je t’aime Jean, Je t’aime! Como podia estar feliz se não chegasses? - e mais em segredo - eu digo-te qual vai ser a minha fantasia para o baile de amanhã”.
Era mademoiselle Antoinette Poisson, neta da famosa Madame de Pompadour uma das famosas amantes do rei Luís XV.


(in Diário da Minha Avó)

“O CASARÃO” a páginas 44 e 45.

O grande baile organizado por Monsieur Chevalier realizou-se na data prevista mas, uns dois dias antes do acontecimento que ficaria na história do Casarão para todo o sempre, alguns fidalgos, atraídos pela fama dos arredores de S. Miguel que se diziam ricos em javalis, lebres e galinholas, chegaram dois dias mais cedo, pela noite, em carruagens lustrosas e arreios de requinte.
Chevalier, conhecendo os hábitos da fidalguia portuguesa, tinha quase tudo pronto a receber os seus convidados; depois de uma profundíssima limpeza a todas as divisões da casa, desde os grandes salões aos quartos de dormir, com novo papel e cortinados de veludo, alargou os seus cuidados ao jardim que descuidava, mandando cortar as ervas bravias, podar o roseiral e plantar craveiros.
E na cozinha, onde exigia o máximo asseio nas afazeres das iguarias, reuniu os seus criados e mais outros que tinha requisitado na aldeia e, aos que o serviam desde que chegara a Portugal, deu-lhes uma moeda como prévia recompensa dos serviços e exigências que especialmente lhes pedia para aquele grande acontecimento. A criadagem rejubilou com a oferenda pois não se lhes lembrava terem recebido fosse o que fosse de Monsieur Chevalier desde que para ele serviam, para além das refeições que cozinhavam com os tubérculos e outros vegetais que eles próprios cultivavam...
Essa primeira noite não tem história, salvo pequeno registo duma tremenda bebedeira apanhada por todos os fidalgos que, exaustos da jornada e com a porta da adega franqueada por Chevalier, enalteceram a qualidade do vinho ribatejano que tão bem se ajustava aos enchidos que S. Exa. mandara servir.
E o vinho, aquecendo a alma, acompanhou um longo jogo de cartas, onde, a par do trunfo  de espadas, se falou dos romances adúlteros, de política, das mulheres de Lisboa, de duelos, de etiqueta estilo inglesa ... mas a propósito de mulheres ninguém dos presentes sabia que damas tinham sido convidadas para o baile.
Um dos presentes ainda se atreveu a dizer,

“... bem espero que não apareça por aí a da Rua das Trinas. Dessa estou eu farto...”.

Os restantes ripostaram que Chevalier teria levado em conta a reputação das senhoras uma vez que Jean-Andoche Junot iria estar presente na festa.
Todos concordaram. As senhoras deveriam ser de boa linhagem, graciosas e esbeltas...
O que se regista com desvelo cuidado por o próprio narrador ter passado por desgosto semelhante, foi a aflição do dono da casa ao ver estilhaçar-se uma jarra da companhia das Índias Orientais quando um dos fidalgos, ao dirigir-se ao quarto que compartilhava com mais dois nobres, tropeçou num dos primeiros degraus da escada de pedra, indo cair, desamparado, na coluna onde a jarra se exibia.  O fidalgo praguejou.
E quando Chevalier, alertado pelo estrondo, reparou no estrago irremediável, ficou lívido. Aquela jarra tinha-lhe custado uma fortuna.
No dia seguinte a fidalguia levantou-se muito tarde. Os farnéis estavam prontos desde manhã.
Os cavalos esperavam por debaixo da sombra de duas altas árvores.
E todos partiram para Almeirim na esperança duma boa caçada,

“O Casarão”, cheio de sol, vivia momentos de glória.


(In Diário da Minha Avó)

"O CASARÃO" a páginas 42 e 43:

Lisboa estava uma cidade radiante. As cinzas do grande desastre tinham sido varridas. O rio Tejo era leito de grandes avenidas onde pessoas e carruagens se cruzavam numa azáfama de grande metrópole.
Alguns mendigos tocavam charamelas e vendedeiras de violetas imperiais coloriam a luz única de Lisboa.
Depois da morte do Carvalho e Melo a Companhia de Jesus e a alta nobreza, com a piedosa ajuda da Senhora D. Maria I, recuperavam o seu prestigio tão fortemente abalado pelo falecido ditador.
A própria Inquisição era uma sombra do seu exemplar passado e sentia-se a sua extinção para breve. Os antigos delatores que forjavam armas contra a heresia estavam extintos.
As touradas reais voltavam a abrilhantar as praças de toiros.

Embora as relações com Espanha não fossem muito pacíficas e não se visse o fim no processo de Olivença que o patriotismo reclamava como terra portuguesa (não compete ao cronista fazer uma análise politica da exactidão popular), a estada pacífica de Junot em Portugal, homem de confiança do maior génio militar da história, dava a Lisboa a paz necessária.

O enviado de Monsieur Chevalier não tinha olhos para tanta maravilha; Até as ruínas do antigo Convento da Ordem do Carmo, das quais restavam uns finos e elegantes arcos que sustentavam o destruído tecto, parecia-lhe uma jóia milagrosa, tendo em conta que mesmo em frente, na mais alta colina da cidade, o castelo de S. Jorge, de pedra bruta, continuava completamente desfeito.

As recomendações de Chevalier eram muito claras; deveria o seu serviçal pernoitar numa recomendável hospedaria e apresentar-se bem lavado e de traje limpo a um dos gentis-homens de confiança da rainha D. Maria, com uma carta. Em caso algum deveria referir, fosse a quem fosse, o interior daquela folha de pergaminho dobrado, lacrado e com sinete.

Era assunto sério e de estado.

A carta rezava assim;

... e como deve saber, por força das relações entre este País e França (a minha querida Pátria desfeita e por quem choro lágrimas de sangue), convém receber com dignidade o senhor Jean-Andoche Junot, nesta casa que também é sua.
Junot está habituado a altos primores e V. Exa. sabe que os meus bons costumes foram sempre muito apreciados pela alta sociedade parisiense, nas minhas festas privadas de Paris que proporcionavam - especialmente quando habitava na rua de Saint-Honoré - grandes alegrias a todos os presentes.
O meu convidado e os seus acompanhantes (V. Exa. está desde já também incluído) merece que se lhe proporcione uma estada com dignidade. Esta casa que habito tem grande salão para o baile de fantasia, três outras dependências para conversa, uma enorme cozinha donde saem gulosos manjares e, acima de tudo, fica suficientemente isolada; apenas lá em baixo, a cerca duns quinze minutos a trote largo, vê-se a aldeia de S. Miguel do Rio Tinto, com ignorantes e pobres camponeses que se recolhem cedo e por quem respondo.
De resto é o campo aberto a montarias e pique-nique, especialmente para os lados de Almeirim com matas frondosas e javalis à espera de bacamartes.
O que modestamente peço a V. Exa. - favor que de nenhum modo posso algum dia retribuir - é o de me fazer chegar pelo mesmo serviçal, os nomes das damas da alta sociedade lisboeta, umas 10 ou mesmo 12, que desejem abrilhantar o baile de máscaras. Já se sabe que sem o perfume de mulheres jovens e bonitas, de finas toilettes, não necessariamente cultas mas suficientemente espertas e experientes, um baile não tem qualquer brilhantismo.
Quanto a problemas de dinheiro não tem V. Exa. que se preocupar; irei receber brevemente, de França, grande parte da minha fortuna.....

E mais à frente Monsieur Chevalier conclui;

 ...Calendarizo a festa para o dia 12 de Abril, exactamente dois meses depois da morte do Sr. Kant, que tanto apreciou a ignóbil revolução da minha Pátria.
Nesse mesmo dia oferecerei a Junot um poldro de Alter-Real.
Apelo à influência de V. Exa., e fico respeitosamente e ansiosamente esperando o resultado do seu esforço.
C'est dans le besoin qu'on connait les ami...
Votre,
Monsieur Chevalier
S. Miguel, 18 Février 1804


Queridos Truquistas

Não se assustem!
A imagem da minha querida Avó não é minimamente manchada por ter transcrito algumas páginas da história da casa da qual vos tenho mandado fotos. Refiro-me a "O Casarão".
Estou plenamente convencida que ao escrever "cunnilingus" não sabia o significado da palavra.
Aliás, todo o caderno que ela reservou exclusivamente para descrever aquela casa, muito embora tenha algumas situações arrojadas para uma senhora tão recolhida e tão pura, é quase exclusivamente retirado do grande livro que já vos descrevi.
Parece-me, numa análise baseada apenas na minha intuição, que são dois ou mais os autores de “O Casarão”; estilos de escrita diferentes e até lapsos históricos (a avaliar pelas tais notas manuscritas em francês que chamam a atenção para algumas imprecisões), fazem-me crer nesta minha suspeita.
Mas o melhor é lerem tudo até ao fim. Depois falamos.
Esta vossa Maria tem uma hipótese de emprego numa empresa distribuidora de arroz.
Para a próxima semana já saberei se a minha candidatura tem aceitação.
Maria, Hanói, 8 de Maio de 2008

(in Diário da Minha Avó)

Depois duma interminável lista de pratos para o jantar da festa, adianto-me até à página 39 e seguintes, onde o cronista se sente deleitado na sua pormenorizada descrição.

 “O CASARÃO” a páginas 39, 40 e 41:

Escreve assim:

“Chevalier queria a sua pessoa bem vista aos olhos de Jean-Andoche na sua curta estada em Portugal, naquele ano de 1804. Andoche, ao serviço do grande Napoleão, tinha comentado há dois meses que, com excepção do príncipe herdeiro, toda a família real portuguesa era duma fealdade que o impressionou. Chegou mesmo a ficar perturbado mentalmente e resolveu pedir consulta ao físico privado da corte. Estaria ele, Junot, a sofrer de alucinações?
O físico tranquilizou-o confessando-lhe que, de facto, na casa reinante de Bragança, que vinha desde o reinado de D. João IV, duzentos anos passados, não havia notícia duma geração tão feia. A misericórdia Divina apenas tinha contemplado com beleza o esbelto Rei-Sol Português.
Andoche não apreciou a comparação com Luís XIV e despachou o físico atirando-lhe uma forte picada;
"- Parece-lhe ser comparável o nosso Château de Versailles com o Convento de Mafra?-".
Monsieur Chevalier, depois de ter conhecimento destas ofensivas mas certeiras palavras, magicou ser oportuno demonstrar a Jean-Andoche Junot e ao seu corpo diplomático que a beleza em Portugal, e muito inteligentemente, a beldade da mulher portuguesa, rivalizava com o charme das francesas. Mandou a mestiça chamar um dos serviçais de confiança e bem acreditado nas altas patentes, e ordena-lhe o seguinte recado:
"- Muito me convém que mandes por Lisboa a engajar mulheres da melhor sociedade. O próximo baile de máscaras tem que perdurar na demente cabeça do meu compatriota Junot.
Quero-as recatadas, de colo generoso, com o seu terço nas delicadas mãozinhas e de impecável vestuário para duas soirées. Podes convidar uma ou outra madame francesa e também uma espanhola com salero e castanholas.
Mas portuguesas são as que mais importa; Desejo-as frescas, saudáveis, delicadas, maliciosas, picantes.
Muito gozo, duas libras, todas as refeições e cama lavada; dois dias de convívio e
outros tantos para viagens. Vai!"
"- E putas? - perguntou o serviçal.
" - Putas? Não estão elas no seio da melhor sociedade de Lisboa? E não esqueças da boa luminária, junquilhos, rosas. E as fantasias! E os músicos..." - depois duma pausa ainda acrescentou. - "...Como se chama o fidalgo especialista famoso em cunnilingus? Elas adoram-no! Procura-o e convida-o! Pago-lhe a dobrar".
Monsieur Chevalier queria ficar recordado nesta casa para todo o sempre como o cidadão francês que rejuvenescera a alegria da vida na pasmaceira portuguesa. Ambicionava remodelar S. Miguel de Rio Torto à majestosa opulência da sua cidade Parisiense antes de esta passar pela triste revolução da qual ainda lhe custava a acreditar.
Como tinha sido possível a burguesia protestante destruir a aristocracia católica?
Enfim, tinha tempo. Via no horizonte uma enorme claridade de esperança. Com Jean-Andoche em Portugal tudo lhe parecia fácil. Havia de retomar os seus bens (em que sala iria arrumar o bufete Luís XIII ?), as suas propriedades e a sua vida de fausto.
Via-se já retratado por Tomás d'Anunciação, em grande tela, dependurado nas austeras paredes desta casa, ao lado de antigos e famosos proprietários. Pena fora algumas das pinturas terem sido danificadas aquando do desastre de Lisboa que destruíra grande parte da ala sul do Casarão.
Com o seu tempo e o seu dinheiro tudo se arranjaria.
Agora convinha a festança com a fina flor Lisboeta e o corpo diplomático de Junot".


Truquistas

O velho ditado "quem não aparece esquece", é aplicado neste dia 26 de Abril em que vos escrevo.
A esta hora ainda os portugueses estão a viver o histórico 25 de Abril, dia em que eu nasci... mas em 1964... E não houve um único Truquista, incluindo o meu amigo Luís Gaspar, que se lembrasse desta vossa amiga.
Não importa!
Recebi, desde Saigão, um longo telefonema de Maria do Céu e de Mário.
Cláudia, de Macau, também me telefonou.
Jill nada disse... eu esperava o seu silêncio. Ainda bem que o tive!
Vinte e cinco de Abril, data histórica, pouco me recordo...eu tinha apenas 10 anos.
Mas pelo que li e contínuo a ler, ouvir e ver quase tudo o que se relaciona com Portugal, julgo que bastante se deve ao movimento militar que pôs fim a um regime ditatorial de tantos anos.
Depois há coisas com muita piada que uma verdadeira democracia pode e deve proporcionar. Conhecem esta que vos vou contar?
O presidente de uma Câmara da Beira Alta sempre foi um grande admirador de toda a obra do beirão Aquilino Ribeiro (confesso-vos que nunca li este escritor mas é considerado um grande prosador das letras portuguesas). Aquilino, opositor ao regime de Salazar (que um dia disse mais ou menos isto; "Leiam Aquilino Ribeiro. Dir-lhe-á mal de mim mas não importa. É um grande escritor") num dos seus livros, descreve a mestria dum almocreve de nome "Malhadinhas" que, entre outras enormes virtudes jogava, com exemplar mestria, o "jogo do pau". A sua enorme agilidade e golpe de vista punham em sentido qualquer opositor que lhe fizesse frente. Um dia, num jogo de forte escaramuça, o Malhadinhas atou um canivete à ponta do pau e, com golpes certeiros, foi cortando os botões da camisa do seu opositor.
Pois o presidente da Câmara, acabando de assinar uns ofícios e de enxotar uma mosca que teimava em pousar-lhe nos óculos, olhou para a larga janela e deduziu não ser necessário ao edifício camarário possuir três mastros para outras tantas bandeiras. Estas ficavam muito bem num único mastro. E, sem mais aquelas, leva os dois mastros para, com um sobrinho motorista de táxi e com dinheiros depositados na Suíça, treinar o tal "jogo do pau" segundo as regras do Malhadinhas.
Mas o povo não achou graça nenhuma à brincadeira de ver três bandeiras num único mastro e toca de fazer uma ruidosa manifestação "exigindo a imediata recolocação dos mastros". O grave atentado contra os direitos democráticos do edifício da Câmara está em tribunal.
E esse País lá se vai divertindo.
Mando-vos mais uma página sobre a história do "Casarão". Minha avó resolve transcrever, com a sua letra, algumas passagens do cronista.
Merece a pena lê-la... e ainda a procissão vai no adro.
Beijos da Maria de Hanói
26.04.08

(in Diário da Minha Avó)

Quando me referir ao grande livro desta casa, identifico-o em maiúscula e entre aspas para que entendas que se trata de períodos transcritos e não prosa de minha autoria. Haverei de chegar a bom porto, embora reconheça não ser tarefa fácil acasalar a família do nosso ramo genealógico com as viravoltas do casarão, até ao seu actual aspecto. Omitirei a ortografia da época e um ou outro período inútil só percebível pelo cronista.
De resto, estando o livro sempre à tua disposição (teu avô não aprecia que o manuseies pelas gravuras muitas vezes despropositadas e vergonhosas com se para ti fossem obstáculo de monta), este propósito de te contar a história do casarão tem o objectivo de me aconchegar à tua imaginária companhia, nestes serões frios (o inverno vai rijo) enquanto não se adivinha no horizonte um fim-de-semana com a querida filha, vivido aqui, entre nós, em S. Miguel de Rio Torto. São cada vez mais raros, minha menina!
As últimas obras de restauro desta casa têm uns trinta anos; foram limpas as telhas onde proliferavam ervas daninhas, colocadas grades nas janelas do rés-do-chão pela denúncia de assaltantes à solta que bem podem cobiçar os nossos bens, sólida porta com ferrolho de três voltas, madeirame carunchoso substituído e, no interior, teu avô decidiu fazer mais quartos (13 no total) para albergar os senhores de outros latifúndios que nos visitam amiúde, e apagar do casarão a fama dos bailes de máscaras onde, em tempos idos, se praticavam carnudas orgias nos grandiosos espaços dos três salões.

"O CASARÃO" a páginas 37:

"Monsieur Chevalier, indisposto, entrou de madrugada na sala dos sodomitas, sentou-se no cadeirão Luís XIII, de veludo avelhado, arrotou com estrondo e olhou para as vigas de madeira negra do tecto da divisão.
O faisão assado, na ceia em casa de Mademoiselle Fleur, nessa noite particularmente generosa, não lhe caíra muito bem. Ou talvez tivesse sido o ordinário “Vin de Table”. Os dinheiros com que ele retribuía os seus favores mereciam melhor sorte...E olhou para o óleo da devotíssima Madame Ramolino, sorrindo, ornamentada de colares de oiro, jóias ofertadas pelos seus clássicos amantes do "Ancien Régime". A ostentosa mulher, em Portugal desde a nacionalização dos bens do clero francês, não aguentou a notícia do massacre dos padres refractários vinda da sua querida cidade de Paris, e enforcou-se com um forte rosário em ouro no dia 19 de Setembro de 1792, ficando tombada no parapeito do lago...E naqueles olhos abertos que nunca tinham vertido lágrimas, reflectia-se a estatueta de Baco, que deitava para o lago quase seco, por entre pernas, umas tímidas gotas de água.
Monsieur Chevalier acabou por adormecer e acordou muito mais tarde sentindo na boca um mamilo fresco que se lhe oferecia. E enquanto almoçava frugalmente mandou um serviçal tomar boa nota dos grosseiros pormenores duma próxima festa. Chevalier orgulhava-se dos bailes realizados no palacete, das cortesãs famosas que o enchiam, do aroma das saias de sedas voluptuosas que cobriam bons nacos de pele macia..."
Pois minha filha; no jardim também se pôs cuidados no pequeno lago ornamental, de pedra escura, ficando esta completamente limpa, reparada a estátua de um Baco borracho, pisando uvas, deitando para o lago, à laia de bica, um fio de água por entre as pernas. Os carolinos regalavam-se debaixo daquela veia de água. Peixes vermelhos aboquejavam à superfície e largas folhas de nenúfares sustentavam o peso das rãs com um coaxar infernal em noites de lua cheia.
Mas, sem se saberem as causas, os patos carolinos deixaram de procriar e morreram de velhos. Agora são os pombos, cada vez em maior número, que arrulham e regurgitam antes do coito praticado na pedra húmida salpicada por Baco. Consumado o acasalamento, voam para os beirais, saracoteiam-se e abrem as asas ao Sol.
São raros os peixes. Os nenúfares deixaram de dar flor. As rãs e sapos raramente aparecem.
O grande jardim, com excepção do pequeno roseiral que desabrocha à vista das janelas do meu quarto, também foi deixado ao Deus-dará.
A razão é simples e tu sabe-lo; O supérfluo, o que não contribua para a força da lezíria, para a casta dos toiros, para a qualidade hortícola, é olhado como um filho bastardo.
Esta família aprecia o trabalho e adora a fortuna.


Truquistas, notícias desta vossa Maria,
A Caminho de Saigão, a "antiga" cliente a minha amiga Cláudia (simplesmente Cláudia), fez escala por Hanoi e passou connosco o fim-de-semana.
Adorou a minha nova casa e especialmente a querida Mafalda que está cada vez mais princesa.
Tivemos longas conversas, recordámos Portugal enquanto bebíamos umas cervejinhas de Singapura.
Cláudia - que tão bem representa profissionalmente o grande anunciante de Macau - contínua a dar-se bem com o trabalho de "Mercado em Movimento" - e ainda não percebeu completamente o que se passou entre mim e Jill. Mas não importa!
Importa sim recordar os Truquistas que esta portuguesa Cláudia, quando se encontra comigo, contínua a contar-me "histórias" de antigas pessoas que trabalharam em publicidade nas agências de Portugal. Tenho tomado nota de coisas curiosas que espero um dia revelar-vos se o Luís achar por bem publicá-las.
Mas para hoje, e pela primeira vez desde que vos principiei a revelar o "Diário da Minha Querida e Santa Avó", inauguro (!) o que ela deixou escrito sobre o tão falado "Casarão".
A história daquela casa onde eu nasci, é duma grande hilaridade...Mas vai levar algum tempo a contá-la.
Preparem-se para a narrativa e admirem duas fotografias: Minha filha (tantando neste País encontrar a RTP) e, pela primeira vez na Truca, uma das últimas fotografias do Casarão, tirada nas vésperas da nossa saída para Abrantes.
Beijos para todos e desculpem-me tanto tempo sem dar noticias; Arrumar uma casa e procurar emprego não são tarefas fáceis.
Maria
Hanói, 18.04.08

(in Diário da Minha Avó)

No passado fim-de-semana, quando estavas sentadinha a meu lado no banco de pedra do largo fronteiriço ao Casarão, com o friorento Anacleto enroscado nas tuas pernas e, em repouso, um pequeno livro, perguntaste-me a história desta grande casa. Elucidei-te abreviadamente porque eu própria sempre me resignei à ignorância de não saber as suas origens e como chegou à posse da nossa família.
Mas, logo pela fresca manhã desta segunda-feira, subi à austera biblioteca ainda com as duas largas janelas cerradas. O aroma a livros, especialmente a livros antigos, está colado ao meu corpo desde criança. A essência daquela sala com perto de oito mil títulos, é um misto de encadernações em pele de carneira e da soberba madeira de castanho francês cujas prateleiras nunca se abaixaram ao peso das obras.

São vastas as matérias que se guardam nas páginas daqueles livros; medicina, direitos civil e eclesiástico, física, química, astrologia, raridades bibliófilas como o famoso ensaio do Dr. Willis "Como tratar D. Maria I de Portugal", numa tradução de Pina Manique, e uma outra, não menos rara, "Consulta Básica de Autopunição para Expiação dos Pecados", curiosidades históricas tais como a “Vilafrancada”, a “Abrilada” e a “Viradeira” (esta numa edição única datada de 1777), e um achado primoroso deparado em Olivença "Ensinamentos Básicos para um Eficaz Contrabando". No entanto, o mais antigo livro da tão bem organizada biblioteca, parece-me ser o de um autor puritano "O Direito Divino dos Reis", ricamente ilustrado com pinturas de monarcas.
Eu sei que não aprecias a biblioteca de teu avô.
"Falta-lhe a luz duma enciclopédia, os ideais socialistas e, principalmente, os filósofos humanistas", dizes-me com alguma frequência.
Seja como for, minha filha, se um dia o cachimbo de meu pai caísse de fornilho aceso no chão da biblioteca e lhe pegasse fogo, ele morria calcinado no estéril esforço de salvar os "amigos de toda a sua vida".
"O Casarão desde os tempos da Senhora D. Maria da Glória, Rainha de Portugal, hospedaria de Jean Andoche enquanto Duque de Abrantes, loja de Pedreiros-Livres, casa de prostitutas, e onde se conta os espíritos malignos que se escondem nas caves ocultas " recolhe-se na última prateleira onde se chega com recurso a escada própria.
Peguei no cartapácio encadernado a inteira de pele; Na lombada, em rótulo carmim, numa letra dum gótico grotesco, a ouro, apenas se lê "O Casarão". A meio da lombada uma flor-de-lis, também a ouro mas ligeiramente descentrada. O calhamaço é omisso quanto ao autor, mas esta harmoniosa simbologia pode sugerir uma aturada pesquisa dum brasonado.

É um volume pesado e o único maltratado; folhas amarelecidas, muitas margens dedilhadas em gordura, e apontamentos a tinta, em francês, nas entrelinhas. O bicho do papel entranhou-se em quase todas as páginas sendo visível o seu insaciável apetite através de milhares de pequenos orifícios mais finos que uma agulha de costurar. Mas as litografias do “Casarão” são magníficas, adivinhando-se um artista de fino traço e de grandes conhecimentos de perspectiva.
Mas, minha querida filha, a acreditar nos desenhos que se observam, tão grande é a diferença entre a casa que hoje habitamos daqueloutra doutros tempos! Mas que diferença, meu Deus! Nos dias de hoje o Casarão é um edifício de paredes pouco severas ao contrário das do antigamente, que tinham apenas três janelas de sacada viradas para o largo. Do que resta da antiga casa, talvez a trepadeira caduca, no jardim traseiro, que resguarda bandos de pardais e quase oculta um brasão em pedra, fragmentado, que ninguém até hoje conseguiu identificar.
O livro foi impresso no ano de 1878 na Livraria Internacional de Ernesto Chardron, ou seja, um ano antes de ter vindo ao mundo o meu avô.
Dou-me por feliz. Descobri tema para estar contigo durante as duas próximas semanas através deste caderno.
Se escrever uma ou duas páginas nos meus recolhidos serões, terás a história completa desta tua casa para a leres nos momentos em que embales um netinho que um dia me irás oferecer.
Apenas teu pai pode interromper esta minha escrita com a sua cristalina voz a desejar-me do fundo do corredor "...uma noite bonita, minha querida esposa! Beijo-a!"
Recolho o aparo e deito-me na cama já aberta...
Vamos então as duas recuar uns anitos.


Truquistas.

A página do "Diário" desta semana foi tirada à sorte como se se tratasse da acção do "movimento DADA".
Peguei no livro com os olhos fechados e, ao abri-los, deparou-se-me um tema apaixonante e revelador duma personalidade impar mas, paradoxalmente, dum misticismo que desconhecia em minha avó. Julgo tratar-se dum momento de desusado recolhimento devoto porque nunca presenciei, nos anos que com ela vivi, uma tão abnegada fé.
A avaliar pelo conteúdo, esta página foi manuscrita em qualquer mês de 1945, ou seja, dois anos antes da morte de seu marido Barrete Salvação de Jesus.
Minha avó tinha, portanto, os seus 38 anos.
É curioso notar que no caderno original estão coladas duas fotografias que decerto se reportam ao local onde minha mãe nasceu e que minha Avó mantinha cheio de flores. Como está num plano "picado" deveria ter sido sacada em cima do cavalo.
Não me é difícil deduzir que uma das fotos (muito embora o enquadramento seja exactamente o mesmo) foi colorida pelo pintor Victor Figueira com o auxílio do seu pequeno caderninho de folhas coloridas "Nicholson's Peerless Transparent Water Colors".
Também ficamos a saber que o S. Gabriel (o tão elogiado "Lindo Cavalo Negro") não aguentou a enfermidade já há tempos contada numa das edições da Truca.
Mando-vos também uma velhinha fotografia do equídeo.
A minha nova casa, aqui em Hanói, está quase pronta para vos receber.
O quarto de Mafalda está um primor, pintadinho dum branco pérola.
Numa das paredes vou decalcar a "Mafalda" de Quino e pintá-la com saia azul, cabelos muito negros e um laçarote também azul. Quero uma Mafalda rebelde, contestatária, enfim, exactamente o oposto da minha filha, princesa e diva.

E agora, posto isto, tenho mais que fazer do que vos aturar.
Beijos da Maria
Hanói, 27.03.08

(in Diário da Minha Avó)

Sinto uma grande necessidade de te escrever. Sou mais eu quando molho o aparo na tinta azul, inclino ligeiramente para a esquerda o caderno aberto num fólio limpo, pautado, sem os meus desenhos de florinhas.
O dia (o Sol acaba agora de se esconder pintalgando o céu de vermelho-vivo tão deste Ribatejo), teria sido simplório se não fora o casual passeio que dei com teu pai, a pé, pelo campo.
Cada vez mais me apraz servi-lo. É um homem que não envelhece; os seus 48 anos resplandecem de juventude, soberbos de vaidade pelo seu porte garboso e invejável aos olhos dos vizinhos.
Admiro-o, estimo-o, amo-o. Namoramos as estações da nossa incompreensível vida de casal solteiro aos olhos de Deus. Continuamos, à noite, afastados por 13 quartos neste infinito corredor do casarão. Mas, à medida que se aproxima a data que nos prometemos (e faltam ainda uns dois anos, minha filha!), mais se reforçam os nossos laços de amizade, de tal modo que para mim Barrete Salvação de Jesus é o maior amigo que elegi dentre todos os homens do Mundo para que desbrave a minha tímida entrega sobre a alvura dos virgens lençóis de mulher casada, há vinte anos resguardados na arca com saquinhos de alfazema.
Quando esse dia chegar, quando por fim corporalizarmos os segredos recitados a Sol-posto, com toda a certeza que irei ter saudades destes tempos de romance, porque perco o fascínio desta vida de amor bravio e retraído. Receio nunca mais sentir o encanto desta paixão ansiosa, recatada e pura, vivida ao ar livre, na alegria do esvoaçar dos pássaros, na ondulação da seara doirada, dos luares de verão, nos passeios à beira do rio, de mãos dadas, dedos entrelaçados que segredam promessas.
Oh! Salvaterra, ainda tão longe e tão perto! Tão perto da minha tristeza, tão longe da minha alegria.
Nas tuas apressadas visitas, (o namorado que te aguarda em Abrantes não pode esperar muito por ti) coíbo-me de te dar detalhes do meu íntimo mas, nesta liberdade de letra cursiva, deixa-me dizer-te que nunca se me desvaneceu a noite mágica da minha idade tardiamente púbere e, nas sombras escondidas ou na claridade doirada do local onde nasceste, durante anos, chorei copiosamente e sentia em cada lágrima o calor do mariachi, a sua voz, a vihuela e a serenata que me levou ao seu encontro.
Sabes, minha Remédios! É rara a noite de todas as noites em que não recordo o imprevisto dia do teu nascimento nestes campos de semeada. Esta mãe, então com 16 anos de idade, olhou para a filha rodeada de papoilas e, nesse instante de indescritível felicidade, pereceu-lhe ter ouvido, na voz boçal dum campino, não um fandango mas uma melodia igual à que me atraiu na noite de lua cheia em Guadalajara.
Então, durante anos, esquivei-me ao contacto físico do marido que me escolheram e, com a ajuda de Juliana e o conforto de Amaro que Deus tem, andarilhei os infortunados caminhos do meu destino. Amaro, na sua eterna crença da minha concepção imaculada, limpava-me as faces molhadas com um sanguinho, e dizia-me que "o meu marido iria ser um verdadeiro pai e um amante eternamente apaixonado".
E assim reconheço ele ser! Agradeço a Deus o verdadeiro milagre de ter regenerado aquele homem boémio, de noitadas por hospedarias, de bebedeiras monumentais, de toiradas, de cornadas que lhe transfiguraram o corpo para sempre.
Toda essa sua antiga forma de vida foi arrumada no álbum das más recordações, devagar, bem sei... mas, por amor a nós, entregou-se de alma inteira a recuperar parte da juventude perdida, e devotou-se abnegadamente ao estudo, dedicou-se aos negócios da família e aprendeu a amar.
Meu pai, de idade avançada, já pouca responsabilidade tem nas ocupações dos negócios. Entregou a meu marido a "chave" das propriedades. Foi uma atitude de coragem mas em boa hora a teve; Os nossos seminais são soberbos, os toiros vingam por esse mundo taurino, a coudelaria cultiva o Lusitano, os vinhos exportam-se com facilidade. Cereais, tomate e melão não chegam para as encomendas.
Mas o que importa agora que eu diga a esses teus quase 23 anos, é que se materializou, nesta minha cabeça serena, a ideia de que afinal sempre fui apenas de um homem; com meu marido, longe destas lezírias e charnecas, tivemos um dia, em jovens, uma entrega recíproca para te concebermos. Depois entrámos numa abstinência secular por quaisquer desígnios da Providência.
E tu, minha filha, és um produto deste amor cândido e santo.

........... Meu marido batera ao de leve na porta desta minha salinha:

"- Prepare-se para uma notícia triste, minha querida mulher; o seu "Lindo Cavalo Negro" morreu".
Pressenti-o esta manhã quando o visitei na cavalariça. O S. Gabriel estava deitado, sem forças, respirando com sacrifício.
O droguista, de ideias limitadas e ultrapassadas, que tinha também acabado de chegar, já não lhe ministrou o fármaco.
O meu cavalo morria. Num último esforço ainda olhou para mim quando sentiu a minha mão na crina do pescoço. Depois afastei-me e vagueei pelo campo durante horas. Não quis assistir à morte daquele companheiro de tantos anos.
Foi a oferta mais linda que tive na minha vida!
Uma oferta de teu pai!


Queridos Truquistas.

De Hanói as minhas primeiras notícias.
Desta capital, com quase três milhões de habitantes, vos hei-de ir contando o que for vendo e sentindo, pois o meu actual estatuto de desempregada deixa-me tempo de sobra para descobrir uma cidade que se abre a quem a queira visitar.

Mas agora julgo ser tempo de vos confidenciar a assumida atitude de sair de Saigão. Simplesmente (e juro que bem o tentei) não estava a conseguir adaptar-me à mentira vergonhosa e nojenta que Jill engendrou. Neste momento de confidência – e ainda não sei se escrevo para mim se para vós – a razão reclama uma audiência jurídica insuspeita.

Se houver um Truquista que não entenda as minhas palavras, também fica com o direito de me julgar; O Mundo, como se sabe, é feito de equívocos.

Principio pela coisa mais simples: Quantos anos são necessários para transmitirmos uma imagem positiva da nossa personalidade? Uma imagem de pessoa saudável, amiga, simples, tolerante, transparente, que goste de rir e também de chorar? Bastante tempo, parece-me!

Mas o problema não está aqui, no tempo ou na imagem que pretendemos transmitir. O problema reside na nossa total ignorância de não sabermos como os outros nos vêem.
Temos então milhares de imagens, quanto a nós sempre distorcidas da que julgamos ser a nossa realidade. As leituras e as interpretações são díspares e ninguém, à nossa frente, é capaz de nos esculpir a cabeça – este cofre fortíssimo onde jamais alguém conseguirá desventrar – em pedra ou barro, com imparcial jeito de artista, por um simples e banalíssimo facto; a imparcialidade não existe.
E se não há imparcialidade não há justiça.

Bem sei que podemos avaliar como somos aceites no nosso mundo de amigos e conhecidos; se a nossa presença é bem-querida, se registamos como verdadeiras as pequenas ou grandes manifestações de afectos, se a nossa companhia é requisitada com prazer, com amizade, com intenção.

Este estado de espírito sentia-o eu na Agência, e depois no "Mercado em Movimento", para, por modéstia, não vos recordar a sensação magnífica de ter sido aceite na comunidade da minha rua – a rua mais famosa desde os tempos da guerra – passados que foram os primeiros dias de natural desconfiança pela portuguesa que engravidou dum português em terra vietnamita.

A mentira de Jill – nojenta e torpe como já lhe chamei – manchou o meu nome.
Mas não fugi de Saigão por mim ou pela mentira. Fugi de Saigão por minha filha.
Quero-a afastada de calúnias inexistentes, da difamação porque passou sua mãe, da perda da minha boa fama.

Veremos o que me reserva o futuro. Profissionalmente não está posta de parte a ideia de ingressar na "145 Worldwide", ou abrir uma sucursal da loja "Fashion" de Maria do Céu, ou ainda – quem sabe?! – ingressar no grande cliente de Macau; Cláudia já me disse que, na vida de uma pessoa, há sempre uma porta aberta.
E se voltar para Portugal?
Que saudades desse Sol, dessa floresta de encantos que é esse País "à beira mar plantado" (Tomás Ribeiro teria sido também publicitário?).

Julgo que recuperei parte da paz de espírito necessária para vos continuar a escrever, já que mais não seja enviando-vos as maravilhosas páginas do "Diário". Um simples risco autógrafo de minha avó vale por mil crónicas desta vossa Maria.

Beijos para todos, em correio registado com aviso de recepção.
Hanói, 20.03.08 (Na foto o rio Saigão que não voltarei a ver tão cedo)


Caro Luís Gaspar

Quando abri as "Fofocas" desta semana (exactamente na terça feira dia 12) alarmei-me ao reparar na sua justificada preocupação; o de não ter recebido nenhuma notícia destas suas amigas.
Simplesmente, meu amigo, eu escrevi, lá isso escrevi! Mas esqueci-me completamente de lhe enviar a minha requintada prosa.
Ela aqui vai para ser publicada na próxima edição da Truca, muito embora se refira ao passado dia 15. No final acrescentarei o que tiver que acrescentar.
Escrevi, então, o seguinte:

"Maria da Purificação está em Hanói. Foi ontem no voo VN 314, da Vietnam Airlines, o que levanta às 15,30 horas, sem fazer escala em Da Nang. Apenas duas horas de viagem separam Saigão (como Maria tanto gosta de lhe chamar) de Hanói, ou seja; podemos almoçar calmamente, apanhar um avião, beber um chá com Maria à hora do lanche, e voltar ao nosso ninho ao fim da tarde.
A minha querida amiga foi escolher um dos três apartamentos que lhe reservaram. A malta da 145 Worldwide é fixe.
Amanhã volta. Já me telefonou umas 5 vezes para falar com Mafalda.
Entretanto, eu e o meu Mário, estamos calmamente a fazer algumas malas da Maria, muito embora a Muffy não nos deixe trabalhar grande coisa; chora, quer mimos, não come por birra, enfim uma faceta desta criança que não conhecíamos.
E não tenho mais nada para lhe contar. Por outro lado Mário necessita do computador; quer procurar um "pedregulho" para ilustrar um ensaio.
Um abração a todos os Truquistas e um também para si.

Maria do Céu
Ho Chi Minh, 15.02.08

Maria não veio dia 16 como estava previsto, mas sim a 18 (dia em que a edição da Truca 540, já estava on line).
Mas como tem uma agenda super carregada, nem se lembrou de ver o que escrevi. Ainda bem. Teria ficado desiludida com a minha falta! Claro que lha vou contar; foi imperdoável este meu esquecimento porque, para ela, a sua TRUCA é sagrada!
Mas aqui entre nós Luís; É verdade que fica mesmo seriamente preocupado com a falta de notícias? Se de facto não se trata duma expressão convencional, peço-lhe as minhas sinceras desculpas.
Ela está encantada com a casa que já alugou em Hanói (onde, veja bem o meu amigo, lhe sobra um quarto para nós; adivinham-se bons fins-de-semana para matar saudades).
O apartamento em Hanói está mobilado, embora se vá desfazer de um ou outro móvel e de toda a mobília que se encontra no quarto que destinou a Mafaldinha. Esta criança é tratada como uma princesa. Bem o merece, está cada vez mais linda.
Maria, que já retornou a Hanói levando desta vez a Mafalda (veja bem Luís; a menina também tem que opinar se gosta da nova casa e da cidade) nada me deixou para lhe enviar, mas sei que tem entre mãos uma sequência do famoso "Diário" que é de "estalo". Esta manhã, no aeroporto, ainda me disse: "escreve ao Gaspar, diz-lhe que lhe prometo páginas maravilhosas do diário da minha Querida e Santa Avó".

E pronto, nada mais para lhe contar. Estou na cama com o portátil, clico no "enviar" e isto aí vai até si com uma foto minha ou de Mafalda; ainda as vou seleccionar enquanto espero por Mário.
Ai, malditos "pedregulhos"! O que uma mulher sofre! (escrevi isto a rir, palavra, mas de facto aquele homem vive para as pedras. Que saudades tenho das noites da Índia...).
Nem mais! Mando uma fotografia minha, no quarto do Lytton Hotel, em Calcutá, dois dias após a aventura com o "tigre da Malásia". Depois desta foto tirada por Mário não me recordo muito bem o que se passou!

Grande Abraço
Maria do Céu
Ho Chi Minh, 22.02.08


Queridos Truquistas

Ouço a "Patética" de Tchaikovsky.
Este talentoso compositor escreveu a Nadezhda von Meck "Oh, como é difícil fazer que alguém veja e sinta através da música o que vemos e sentimos dentro de nós".
Como nada sei de música e de escrita pouco arranho, peço-vos para juntarem dois ingredientes; o tema da sinfonia e as palavras da crónica de hoje.
Em lume brando se fazem favor. O caldo apurado deve ficar com o sabor da minha angústia.

No dia 6 deste Fevereiro do ano 2006, "entrei, com o pé direito", como então vos escrevi, na 145 Worldwide (uma das grandes agências de publicidade do Vietname), para assumir o perfil de funções de secretária da directora, minha amiga desde os tempos das singelas apresentações no Pavilhão Tailandês, ao Bairro Alto, em Lisboa.
A cidade de Ho Chi Minh (a que sempre chamei de Saigão) recebeu-me bem, de braços abertos e vénias cerimoniosas.
Durante estes dois anos (como o tempo passa!) aconteceram-me muitas coisas; fui-vos contando o dia-a-dia (com algum recato como convém nos meandros da publicidade), desde as "investidas" do account predador, ao cliente da "pilinha de amendoim".
Toda a Agência, com a emblemática frase do Tio Ho "Não há nada mais precioso do que a liberdade e a independência" escrita na recepção que um dia "demoli" para tirar uma fotografia, recebeu-me bem e estimou-me.

Deu-se depois a dissidência de alguns profissionais que criaram uma nova agência com perfis de trabalho inovadores, em ricas instalações na Rua Nguyen Tat Thanh, com a passividade da sede em Hanói.
Recordo as minhas práticas de "Tai Chi Tenssen", da chegada de Maria do Céu que compartilhou o meu apartamento, o pequenino Bó, cãozito à guarda duma prostituta veterana da guerra mas, acima de tudo, acima de todas as montanhas do mundo, recordo o dia 3 de Novembro de 2006, cerca das 11 horas, recordo, queridos Truquistas, o nascimento da minha Mafalda. Ela é a minha alegria e o meu tesouro.
Do pai de minha filha sabem vocês; nada vos escondi.
Mas nem tudo são rosas, ou melhor, as rosas têm sempre muitos espinhos.
O projecto "Mercado em Movimento" estava a ir tão bem!... O cliente de Macau gostava do nosso trabalho, Cláudia ajudava com os seus profundos conhecimentos do produto que tínhamos entre mãos... quando aquelas cartas anónimas que começo a receber, deitam tudo por água abaixo. Jill Murdock continua convencida que a atraiço-o com o seu já assumido amante, o das sombras chinesas.

Estou completamente fora de mim pelo descaramento e pela mentira nojenta.
A minha imagem foi destruída e não tenho coragem para enfrentar as pessoas com quem convivia diariamente.
Fizemos as nossas contas; saio do projecto com os Dongs a que tenho direito, e os amigos em Hanói (de tantas idas à sede da 141) já por lá me arranjaram um apartamento cómodo e mobilado.
Deixo a Maria do Céu e a Mário a casa onde vivi, sem todavia me desvincular do arrendamento.
Vou deixar o hábito de assinar as "crónicas" com Saigão, tantos de tal....

Mas antes de partir com minha filha (que está como a podem apreciar na foto que junto) no sábado próximo, tomo um banho de espuma, visto a t-shirt "Good Night Vietnam", blue jeans, sapatilhas, e vou passar um bom bocado na discoteca "Apocalypse Now", sozinha, e recordar aquela noite em que sou amparada por José Manuel Figueiroa de Meneses que, nessa noite, passou a ser o pai de minha filha.

Queridos Truquistas. Esperem notícias minhas. A estima que todos me dedicam é-me muito importante. Que bom saber que tenho amigos.

 Maria, Saigão, 8 de Fevereiro/08


(in Diário da Minha Avó)

Na madrugada do dia 1 de Novembro de 1946, uma sexta-feira de Todos-os-Santos, o nosso padre Amaro faleceu. Na véspera, minha filha, tinhas vindo de Lisboa para te arejares na alegre expectativa dum bonito fim-de-semana. Os teus 19 anos compartilhados com o 2º ano da faculdade, faziam de ti a harmonia perfeitíssima duma mulher que nos enchia de orgulho. Sentias-te feliz, estudavas bem, tinhas uma nova relação – uma relação "à moda de Lisboa", como lhe chamavas – livre de compromissos mas cimentada em forte amizade que pode conduzir a um caminho mais ajuizado.
Mas às 3 da madrugada, como depois vieste a saber, abri a porta do meu quarto às pancadas soluçantes de Juliana. Estava inteiramente transfigurada; não falava mas gesticulava e tremia. Os olhos inchados de choro, relampejavam. Os cabelos em desalinho. Um capote de oleado cobria-lhe o corpo desnudo.
Aqueles seus 44 anos pareciam farrapos humanos, saídos das trevas onde o demónio conjectura artimanhas para seu próprio prazer.
Esta tua mãe adivinhou o que tinha ocorrido. Não eram necessárias palavras. E quando cheguei ao celeiro, abrigo de amor do padre e Juliana, onde anos antes os descobri numa posse frenética em monte de palha, não estranhei ao ver uma sotaina negra a tapar um corpo já frio.
O padre Amaro há muito que tinha caído em desgraça mas a sua morte – como quase todas as mortes – calou as vozes deste povo e, com o tempo, foram-se esquecendo os últimos maus anos do clérigo para enobrecer os tão bons serviços de um tão bom homem. Afinal, a povoação de S. Miguel, no ano de 1914, tinha então recebido com alegria o bom Samaritano, o pastor abnegado, o celebrante de palavras cheias de fé, que devolveu às gentes uma renovada esperança de existência numa aldeia já esquecida; "Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores", diz Mateus.
E foi a imagem cheia de força da sua mocidade que perdurou para sempre; Foram-lhe perdoados os desvios à doutrina que defendia e todos os anos, no Dia dos fiéis defuntos, se devotam flores à sua sepultura.

Aqui, no Casarão, o padre Amaro foi recordado durante anos, tantos quanto os da própria Juliana que, dias depois do enterro do padre, decidiu-se por nos deixar e regressar à sua terra natal. Sem palavras, apenas com lágrimas silenciosas a correrem-nos pelas faces, agarrámo-nos num forte abraço de despedida; Entrou para a carruagem e o comboio partiu numa nuvem de fumo branco. Nunca mais a vimos ou dela soubemos, até hoje em que te escrevo.

Amaro amava como Jesus, mas padecia como homem. Quando nas noites de maior solidão, pálido da luz do círio, se humilhava perante a sua Virgem, blasfemava por não ser cumpridor do celibato.
Mas qual a força capaz de resistir à Virgem que se lhe desnudava, que se lhe entregava, que lhe exigia a consumação do seu amor? Muitas vezes se julgou abandonado por Deus mas, numa noite, fria e húmida, tão fria e tão húmida como a sua alma sofredora, olhou para Juliana que enfim lhe apareceu como um milagre há muito pretendido:

"- Porque te demoraste tanto Juliana? Esperei longas noites por ti!".

Possuíra a sua Virgem, cumprira uma ordem Divina; Juliana tinha sido enviada pelo Altíssimo.
Consubstanciava-se Nela e em Cristo como se fora as três pessoas da "Santíssima Trindade".

Na jantar que antecedeu a sua morte, Amaro comera e bebera bem; e, depois, no serão, na sala de fumo, os homens falaram da sociedade hipócrita, dos desordeiros, do respeito pela Concordata, da fabulosa recuperação económica deste País, dos inimigos do regime do nosso chefe do governo há dez anos no poder, de toiros e de toureiros para a nova temporada. Amaro, alheio às conversas, olhava com ar ascético para a réplica do escandaloso quadro de Courbet, "A Origem do Mundo" (uma muito antiga aquisição de teu avô num antiquário sem escrúpulos) rodeado de óleos do pintor Victor Figueira.

Tu gostas daquele polémico quadro, minha filha. Eu não o posso ver! Sou uma defensora do recato feminino e meu pai sabe-o. Como também sabe que nunca entro naquela sala para homens; Deixá-los embevecerem-se com o pincel de Courbet, charutos, porto, brandy, anedotas picantes e recordações da mocidade...

Mas quando Juliana entrou na sala a indagar se os "senhores necessitavam de mais alguma coisa", ouviu teu avô perguntar ao sacerdote enquanto este se extasiava a olhar para "A Origem do Mundo".

- Em que pensa, Amaro?

- Oh! Senhor Purificação! Quando olho para este quadro recordo uma passagem do Apocalipse; "Babilónia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da Terra"- e olhou para Juliana, sinal há muitos anos entendido entre ambos.

Levantou-se, despediu-se, ("Tenho confissão, amanhã, pelas dez. Dóminus vobíscum! Boa-noite!") entrou no nevoeiro, e seguiu o atalho para o celeiro. Juliana surpreendeu-o uma hora depois, já sem batina, tremendo de frio e ansioso de prazer.
A alegria da posse foi tão arrebatadora que pareceu a Juliana uma despedida eterna. O seu amante Divino, único homem da sua vida, estava esplendoroso naquela noite. Abraços e beijos sôfregos, dois corpos possuindo-se numa recíproca entrega de todo o sangue, de todo o ar com bálsamo a feno húmido, de suspiros e palavras de ladainha, umas sumidas outras gritadas; "Sangue de Cristo, inebriai-me ", "Paixão de Cristo, confortai-me ", "Ó bom Jesus...".
Exausta de tanta entrega, de tanto desejo consumado e sentido, lembrava-se de lhe ter dito: "Amor, eu não posso mais!"
Então Amaro, num esforço de paixão e sofrimento, implora numa voz sepulcral: "Na hora da minha morte, chamai-me e mandai-me ir para Vós".
Juliana amante, mulher e Virgem, sentiu um peso maior em cima do seu corpo esgotado. Amaro desfazia-se em prazeres e estertores. O seu corpo abandonara-se como um descanso de guerreiro invencível.
E ela voltou-lhe a dizer, baixinho, enquanto lhe afagava os cabelos revoltos; "Amor, adoro-te, não posso mais, meu Deus!".
Mas quando prenunciou a última palavra sentiu que Amaro não se mexia, não se lhe ouvia o coração, não respirava...
Então, com as suas derradeiras forças, afasta de si o corpo morto, beija-lhe os lábios, fecha-lhe os olhos, tapa-o com a negra sotaina, levanta-se e veste um capote que por ali estava esquecido.
No nevoeiro daquela noite, despertou.
E correu, correu com pernas aladas, pelo caminho atoleiro que nunca mais percorreria, até chegar ao meu quarto desfeita e inconsciente da realidade vivida.

Durante essa tarde do dia de Todos-os-Santos, enquanto o cadáver do padre Amaro era retalhado para se saber exactamente qual a causa da sua morte, as crianças pediam o pão-por-Deus, de casa em casa, com saquinhos de pano para guardarem as oferendas.

Dei-lhes romãs, o fruto mais lindo do Mundo.


(in Diário da Minha Avó)

Com este aparo novinho em folha – as canetas de tinta permanente que meu marido me oferece nunca escrevem à primeira – dá gosto escrevinhar sobre o padre Amaro.
Passaram a ocorrer coisas estranhas na igreja; O rouxinol que tão bem cantava pela manhã, desapareceu com a chegada de Nossa Senhora de Fátima mas, por outro lado, um bonito ninho dum casal de andorinhas começou a ser construído no beiral; coisa costumeira na Primavera mas nós estávamos em Janeiro; Um Janeiro de frio cortante e chuva copiosa. Desde logo o povo atribuiu àquele acasalamento extemporâneo um milagre da Senhora, tanto mais que o ninho, além de palha e lama, tinha também raminhos de tenras flores.
Além das andorinhas surgiu no interior da igreja um jovem morcego que, por desdita do destino, entrara no templo por uma das duas portas e nunca mais atinou com o caminho da saída.
Fortunata e Genoveva viam no bicho um sinal agourento, de mau prenúncio; arrepiavam-se quando o enxergavam a voar com aquelas asas que mais pareciam velas dos barcos antigos. Lembravam-se das arrepiantes histórias dos vampiros bebedores de sangue humano e combinaram entre si acabar com o bicho quando o vissem a dormir, de cabeça para baixo, pendurado num dos braços de Cristo, e todo enroscado nas tais asas que lhe serviam de cobertor.
Se bem o pensaram melhor o fizeram. Tanto quanto puderam, Fortunata de escadote e Genoveva de chibata, chegaram-se ao crucifixo e zás no Senhor até que, por fim, acertaram no morcego que, ferido pela violenta vergastada, tomba do poleiro e voa em agonia, vindo a cair, já morto, às patas de "Sua Santidade Pirilau". Deus me perdoe mas escusado será dizer-te que o gato, surpreso por tão gentil dádiva do Altíssimo, lhe chamou um figo.
O padre Amaro entrou nesse instante, vindo da sacristia, e depara com Fortunata a limpar Jesus Cristo com a chibata, enquanto Genoveva segurava no escadote. Comenta de passagem que, embora o Senhor há muito necessitasse duma limpeza, elas já não tinham idade para aqueles trabalhos; podiam cair, partirem algum osso, enfim, o diabo!
E sai da igreja pela porta principal sem reparar que "Sua Santidade" se lambia de prazer.
A história do morcego podia acabar aqui mas ainda há um importante pormenor do qual Amaro não tem culpa alguma mas, para o povo, foi mais um acontecimento nefasto na já desacreditada imagem do sacerdote.
Por debaixo do banco do confessionário, tinha sido posta a velha almofadinha de "ponto cruz" para as sestas e sonolentas noitadas do gato. Acontece que o morcego não caiu muito bem no estômago de "Sua Santidade Pirilau" e, num desusado descuido o gato, cujo asseio era um exemplo para todos os Micaelenses, não teve tempo de evitar uma repentina descarga intestinal mesmo em cima da cabeça de Cristo, no Jordão.
No dia seguinte a esta infeliz ocorrência, Amaro tinha que ouvir uma das raras pecadoras que ainda nas suas palavras se reconfortava. Mas, ao entrar no "tribunal da penitência", quase foi acometido de uma síncope.
Um cheiro nauseabundo envolvia todo o pequeno espaço. E foi então que reparou no "presente" de "Sua Santidade Pirilau". Sem mais demoras, pega na almofadinha com os dejectos do gato, percorre a nave em passo firme e, resoluto, entra na sacristia onde estava Genoveva e, com a sua voz omnipresente, anuncia-lhe: "Nunca mais – ela que ouvisse bem – nunca mais queria ver o maldito gato na igreja. Se isso voltasse a acontecer matava o animal. "Verbum Dómini" – e virou costas.

Ao fim da tarde, quando ambas se ocupavam com as rocas, não deixaram de comentar o estado do velho gato, que há mais de 15 anos era uma preciosa sentinela do esconderijo dos ratos, não os deixando pôr pé em ramo verde, e agora, no fim da vida, se via amaldiçoado pelo Sr. Padre Amaro. Elas também estavam a sentir que a velhice era a pior estação do ciclo da vida.
Longe iam os tempos em que os deliciosos doces do Ribatejo eram cobiçados pelos arredores; "Palha de Genoveva", "Celestes de Fortunata", "Tigeladas de Ambas"... agora já nem dos ingredientes certos se lembravam! Mas o altar e todo o espaço da igreja, verdade seja dita, mantinham-se como nos velhos tempos e os paramentos do senhor padre, embora com visível uso, permaneciam sempre limpos.
Mas que saudades tinham dos seus tempos de raparigas, do cenário de lua cheia na eira da desfolhada, dos bailaricos da aldeia – nos verões, aos domingos – das cantigas ao desafio:

 Amor aperta-me a mão
Que é um sinal encoberto
Antes que o mundo murmure

Ninguém o sabe decerto

 O anel que tu me deste
Era de vidro e quebrou
O amor que eu te tinha
Era pouco e acabou


(in Diário da Minha Avó)
Aquela sombra gigantesca era o prenúncio da sua desdita.
Não faço, como sabes, juízos temerários. Mas a vinda de Nossa Senhora de Fátima para S. Miguel foi esfrangalhando, dia para dia, a popularidade de Amaro. O homem santo que trouxera para esta aldeia o rejuvenescer de uma nova fé, cheio de alegria, de projectos e ambições, impondo a sua autoridade como chefe supremo de todos os Micaelenses, foi empalidecendo à velocidade duma estrela cadente.
Culpo-o inteiramente; Se não fora a sua abnegada postura em desfazer os mais que comprovados milagres de Fátima, talvez ainda hoje em que escrevo estas linhas, o veríamos sereníssimo na consagração da hóstia.
Nunca aceitou que a sua Virgem, aquela que se encarnava no corpo quente da nossa Juliana, fosse relegada para um plano secundário por uma mulher que enfeitiçara três crianças que apascentavam.
Por último tudo lhe saía mal; poderei mesmo escrever que uma neblina lhe foi escurecendo a memória, de mansinho, como o clarear da manhã e, com os anos, tornou-se num poço de desdém e de desprezo.
Estou convencida, minha filha, se a morte não lhe chegasse nas circunstâncias que todos vieram a saber, o nosso Cardeal Cerejeira tê-lo-ia exonerado.
Sentindo-se perdido na incerteza da fé, genuflectia-se perante a sua Virgem de sempre, implorando-lhe um beijo, um afecto, uma devota oração, e suplicava-lhe indulgência por ele, o seu único amante, ter permitido que Fátima se regalasse no pedestal, dominando a nave. Quando, no calor da emoção, lhe dizia "Ecce enim, in iniquitátibus concéptus suum: et in peccátis concépit me mater mea (como não sabes latim, traduzo-te: "Porque eu nasci na culpa e minha mãe concebeu-me em pecado") era sabido que no dia seguinte Fortunata tinha que substituir o pano branco que a Virgem segurava na santa mão direita.
O povo de S. Miguel e o das pequeninas aldeias em redor com capelas envelhecidas, vinham à missa por uma distracção.
Ora um dia – vê bem, minha filha! – num frio domingo de Fevereiro, quando Amaro se preparava para dissertar sobre a "Festa dos Tabernáculos", o manco sacristão achegou-lhe ao ouvido para lhe dizer que "a feijoadazinha da Genoveva já fumegava no tacho"; num ápice, o padre Amaro profere "Ite, Missa est" e dispara para a Sacristia. Os presentes entenderam tratar-se duma inoportuna indisposição do celebrante, mas o pior foi uma forte corrente de ar que fez sair do leccionário uma série de estampas de santinhos e duas ou três gravuras obscenas. O povo, ao ver tais indecorosas imagens, ficou sem articular palavra durante uma semana inteira, enquanto os miúdos, matreiros, exibiam as obscenidades pelos arredores de S. Miguel.
Foi uma verdadeira vergonha para Amaro; no mesmo momento, infeliz decerto, cometera dois pecados: o da gula e o da luxúria.
Eu, minha filha, acabei por as ver muito tempo depois mas foi assunto que nunca se falou aqui em casa; eram demasiado feias para serem comentadas. O próprio padre Amaro dizia estar a ser vitima duma perseguição demoníaca e pedia com redobrada insistência que todos rezassem sem descanso. O Diabo podia bater à porta de cada um sem prévio aviso.
Mas nada lhe corria bem e, com os anos, julgo que passou a delirar.
Um dia – no funeral do comerciante a quem comprámos os novos reposteiros para a sala de fumo – quando o caixão descia à cova, teve este desplante:
"Sou a ressurreição e a vida. Quem crê em Mim, embora vivo, morrerá. Quem crê em mim nunca viverá. Ámen".
Quando deu pela troca das palavras, quis emendar, pedir desculpa, mas era tarde. A família enlutada olhava-o com desprezo total, ignorando-o.
Soubeste a do casamento do filho de um dos nossos campinos?
Dizem que em pleno altar, em frente aos noivos (ela tinha um vestido muito bonito, sabes?!) o padre Amaro passou por um vexame.
"Delfim Martins, aceitas Antónia Salomão como tua legitima virgem para amar e respeitar, na doença e na riqueza, na saúde e na pobreza, até que uma zanga os separe?"
Enquanto a noiva desmaiava, o noivo respondia:
- Nessas condições não aceito, senhor padre!
Eu não acredito na maior parte das coisas que se ouvem contar mas, durante muito tempo, dizia-se que ia a Lisboa às casas de meninas, disfarçado de maioral. Juliana desmente em absoluto.
No meu caso apenas me interrogo. Como disfarçava a tonsura?

Mas há mais minha querida Remédios. Hoje fico por aqui.
O Caderno chegou ao fim e este aparo principia a riscar o papel. Por outro lado o meu marido quer inaugurar a nova maquineta de projectar filmes, especialmente os que temos feito nos tão raros fins-de-semana com que nos brindas com a tua visita.
Prometo-te continuar, amanhã ou depois, logo se verá.


(in Diário da Minha Avó)

Amaro deveria ter despachado os cacos da Virgem, mas ordenou que os restos de Fátima fossem postos no andor e se continuasse a procissão, com as quatro mulheres em desatino pranto carregando os fragmentos de Nossa Senhora - braços, cabeça, corpo, nuvem - e, mais atrás, a filarmónica que tocasse um requiem mesmo mal ensaiado.
Foi o dia mais triste na história de S. Miguel. Mas o povo depressa exigiu nova Fátima e, de porta em porta, as crianças descalças pediam uma esmola para a "Senhora mais brilhante que o Sol". Em pouco tempo arranjaram o necessário para um santeiro aprimorado.
Minha querida filha; no dia em que se esperava a nova imagem deu-se um milagre que ficou conhecido como "o milagre do palavrão". Já to contei, decerto, mas aqui fica.
O adro estava engalanado com papéis coloridos, a igreja com flores, e o povo aguardava a chegada da nova Senhora, abrigado na sombra da grande árvore. Estalou um foguete e logo outro.
E chegou enfim a imagem na carrocita do Evaristo que a tinha ido buscar a Abrantes.
Em sinal de respeito, solenemente, as gentes ajoelharam quando Fátima foi posta num pequeno trono improvisado por debaixo do alpendre da igreja. Quando o padre Amaro proferia a sua alocução de boas vindas o "maluquinho da aldeia", que durante tantos anos exigia que todos fossem para a cama às dez da noite, sobressaiu-se do silêncio e, em voz alta, disse sentir um calor imenso vindo das suas entranhas e proclamou já não ser o maluquinho a partir daquele preciso e solene momento. Mas alguém perguntou ao velhote como podia saber tal coisa, ao que ele respondeu; "Vai à merda, ao aldeão!".
Todo o povo em redor ficou boquiaberto. Tinha-se dado um milagre; durante tantos e tantos anos, nunca ninguém ouvira daquela boca de punhos de renda uma palavra obscena.
O próprio maluquinho se espantou da audácia - "Eu disse merda, disse merda, estou curado meu Jesus, Graças à Tua Virgem Mãe! Estou curado! Estou curado!". E abalou para fora do adro aos pulos de contente.
Na verdade, havendo ou não milagre, nunca mais se viu naquele homem, até à sua morte, qualquer sinal de loucura.
Mas aquele dia ainda ficou marcado por mais dois acontecimentos; um contado por Juliana e outro trazido pelo correio vindo de Guadalajara; minha irmã anunciava-me o nascimento do seu terceiro filho, uma menina de olhos negros, a quem ia por o teu nome; Maria dos Remédios. Mandava uma fotografia para ver-mos a menina com os meus outros dois sobrinhos; Juanito e Madrigal, escondidos no canto inferior da foto, sorriam para a recém-nascida que mal se via e, mais atrás, desfocada, minha irmã com ar feliz. O tecto do quarto sobressaía em quase todo o espaço do quadrado.
Nunca percebi a falta de jeito do teu tio para centrar na chapa o motivo principal. Enquadra no visor da sua Kodak uma coisa e depara-se-lhe outra na revelação. Ainda hoje, passados tantos anos, continua a manifestar a sua completa inoperância mas defende-se airosamente ao afirmar que se trata do seu ponto de vista artístico.
Não vejo tua tia desde a cerimónia do seu casamento, no México. De vez em quando escrevemos algumas linhas onde falamos das coisas mais banais deste mundo. Não sei se a voltarei a ver embora teu pai me garanta que, na nossa "Lua-de-mel", podemos dar um pulinho ao México como se uma viagem às Américas fosse o mesmo que ir a Santiago de Compostela.
Mas voltando ao dia do milagre; Amaro visitou-nos nesse fim de tarde acabando por jantar ao mesmo tempo que se inteirava do nosso parecer quanto à cerimónia que prestara à nova imagem de Fátima.
Estava com um apetite devorador e, dum trago, bebeu o caldo de galinha e depois agarrou-se à carne estufada e a vários copos de vinho tinto.
Já seriam umas dez da noite quando começou a chuviscar. Temendo borrasca tomou a pileca que, agora, apenas conhecia o passo. E foi debaixo duma imensa carga de água e de grande trovoada que Amaro chegou, encharcado, à porta da Igreja. Num relâmpago mais luminoso descortinou um pequeno objecto no degrau; era um Cristo esculpido numa madeira tão carcomida que mais parecia ter passado milénios nas profundezas dum oceano. A cabeça tinha rosto sumido, embora se adivinhasse uns pequenos sulcos sinalizando a boca, os olhos e o nariz. Os braços desengonçados, um deles até partido pelo cotovelo. A cruz quase desfeita que dois ou três pregos muito ferrugentos tentavam em vão segurar.
Amaro, lívido, compreendeu a mensagem; Era Ela, a quem nesse dia tinha prestado homenagem, que se sobrepunha ao próprio Filho. Era Fátima, a mãe de Cristo, que lhe anunciava ser Ela que passava a ser rainha na sua "Catedral". Aquela esfrangalhada imagem de madeira, qual Cruz com o Seu sacrificado Filho do Homem, prenunciava-lhe que a Mãe era-lhe superior, por ter sido o seu bendito ventre que gerara o Salvador.
O Padre Amaro, tremendo de frio, entrou na igreja com aquela pequena imagem do Senhor apodrecido.
E nesse instante, a luz deslumbrante dum grande relâmpago, rompeu pela rosácea e projectou na parede do altar a negra e gigantesca sombra do sacerdote.
Minha Querida Filha; Vim a saber isto por Juliana depois da morte de Amaro.






(in Diário da Minha Avó)

A nova almofadinha para o banco do confessionário agradou ao senhor padre Amaro. Genoveva e Fortunata dividiram o trabalho de ponto cruz, cada uma a seu gosto e jeito. O bordado representava desta vez uma pomba planando em vez de Cristo nas águas do Jordão.
Amaro, ao sentar-se, usufruía assim do conforto do Espírito Santo tão necessário na inspiração da palavra mais apropriada para a absolvição dos pecados do seu rebanho.
A toda a volta da almofada as santas mulheres ainda a embelezaram com um simples bordado em linha lilás a condizer com a cor do pano que tapava a entrada para o recolhimento do pároco.
O velho gato que se deixara engordar, atingira com os anos a máxima dignidade na hierarquia cristã; de simples "Pirilau" chamavam-lhe agora de "Sua Santidade Pirilau". E também ele apreciou a nova almofadinha; Mas Amaro foi ríspido e peremptório; o gato que dormisse na velha almofada. Na nova, na da pomba, na do Espírito Santo, só nela ele se sentava.
Também o padre se tinha deixado engordar e o teu avô, por brincadeira, já lho disse numa destas noites;
- "Você, Amaro, anda a multiplicar o pão, ou é o bolo de chocolate da nossa Juliana que lhe faz crescer essa barriga?"
Que saudades eu tenho, minha filha, daquele jovem e moreno moço vindo das terras transmontanas, com os seus 25 anos, cheio de projectos para a sua nova igreja. Logo nas primeiras celebrações anunciou-se como um homem de imenso temor a Deus e, na mesa da palavra, deixava boquiaberta a assembleia com as suas primaveris homilias, sempre cheias de esperança, de alegria e de fé.
Todos o adoravam; o senhor Padre Amaro tinha aparecido em S. Miguel conduzido pela mesma estrela que anunciara o nascimento do Menino.
Ressuscitara a paróquia envelhecida do anterior celebrante padre Francisco, pintara a igreja de alvo, alterara a disposição dos santos, substituíra a desgastada corda do campanário, restaurara a casa de telha vã, e exigira a Fortunata, esta mais expedita que Genoveva, que mantivesse os vidros das janelas sempre lavados porquanto a Casa de Deus não podia estorvar a entrada da Luz Divina.
E para a sua Santa Virgem, Virgem das virgens, Virgem de todas as virtudes cristãs, a quem se dedicara desde o seminário, com quem se refugiava na contemplação daquele olhar que o seguia nas suas deambulações pela nave, escolheu o lugar mais recolhido da sua "Catedral Gótica"; Junto ao baptistério, quase escondida, só dele, envolta naquele manto azul, plena de amor por ele, seu eterno escravo.
Quando se ajoelhava perante aquela imagem em tamanho natural, proferia a sua mística frase; "Per omnia saecula seaculorum, eu te amarei".
Não posso precisar, minha filha, quando começou o declínio do padre Amaro. Há quem afirme que as aparições na Cova da Iria tiveram nefasta influência no comportamento do sacerdote.
Na década de vinte, salvo erro meu, a imagem de Nossa Senhora de Fátima passou a estar presente em todas as igrejas de Portugal e aqui, em S. Miguel, foi recebida com grande pompa; Durante dias o nosso padre Amaro, com profundas olheiras, afirmava ser a "nova Mãe de Deus um delírio eclesiástico".
Agora a sua Virgem, a Virgem das suas noites, era relegada para segundo plano porque "a outra", acarinhada por todo o episcopado, haveria que ocupar um lugar de honra nos altares, de vestido branco e manto branco, lábios rosados, brincos de ouro, mãos em oração, pés descalços em nuvem branca.
Amaro não sabia como disfarçar o seu desagrado, o seu infortúnio, o seu ciúme.
A nossa Juliana, numa heróica tentativa de atenuar aquele visível desgosto, dobrou alguns ingredientes do seu famoso bolo de chocolate mas, mesmo assim, os encontros no celeiro com o padre passaram a escassear.
Quatro meses depois da chegada de Fátima a S. Miguel de Rio Torto, teve lugar a habitual festança ao Santo Padroeiro mas Amaro não autorizou que a sua Santa saísse da Igreja na acostumada procissão. Que fosse a outra, a nova, a espaventosa.
Ainda hoje, minha filha, se fala no acidente. É quase lenda, bem sei. Mas foi o princípio do fim do nosso amigo padre.
"Tocou o sino na torre da igreja". Saiu a procissão composta por três andores.
Num momento do percurso, uma das mulheres que carregava a ornamentada padiola de Nossa Senhora, escorrega no xisto e, em desequilíbrio, a imagem da Virgem Santíssima de Fátima cai ao chão, ficando em cacos.
Todo o povo chorou vendo naquele trambolhão um presságio de desgraça.
Hoje ainda se comenta – e já lá vão uns anos – que foi Amaro o causador daquele nefasto acidente pois houve quem visse, em contraste com as lamúrias de todo o povo, um sorriso sarcástico na face do sacerdote.


Saudades de três semanas.

Obrigo-me a escrever duas linhas sobre o silêncio a que me submeti.
Pois julgo ter o dever, e até o direito, de dar alguma justificação aos Truquistas que me lêem.
A descrição do sucedido não é fácil. Eu própria não descortino a maneira mais cómoda para não me expor, perante vós, ao ridículo e à vergonha.
"O nosso corpo suporta muito mais do que julgamos". Confirmo-o!
Foram uns dias difíceis, meus amigos.
Contar-vos pois – tal como agora penso que devo fazer para o aberto confessionário da Truca onde por vezes me refugio – vai ser doloroso.
Não para vós, mas para mim.
E tudo se resume a um epílogo: a amizade que se perde e o amor que se desperdiça.

Como vos andava contando, recebia quase diariamente cartas de amor; cartas apaixonadas, intimas, à solapa. Tinham um simples e inofensivo defeito; eram anónimas.
Chamo-lhe inofensivo porque o anonimato é qualquer coisa que não existe, que não tem rosto nem nome, que se esconde cobardemente na sombra da noite.
Eu própria, na expectativa de descobrir qualquer sinal que me desse uma pista do remetente apaixonado, já aguardava o correio, diariamente, para em voz alta ler as "declarações de amor".
Já tinha admitido a hipótese de se tratar de nosso vizinho que desde o serão das sombras chinesas se não cansava de me convidar a visitá-lo.
Reflecti e retirei-o do pensamento. Como Jill o visita com frequência não fazia qualquer sentido o homenzinho escrever-me.
Mas, no dia do primeiro aniversário de Mafalda, quando lia um dos períodos da carta que recebera pela manhã, à frente de todos os presentes, incluindo o próprio "suspeito" Nguyen Rung Tram, o das sombras, notei em Jill um olhar desconfortável. Todos nos rimos, menos ela.

 "...E dizer-te agora que o dossel nos cobre com um manto branco, daquele branco pérola de noiva imaculada e, com a doçura duma carícia pela primeira vez experimentada, explorar o teu corpo que destapo e cuja nudez adivinho através do manto diáfano que o envolve".

Todos fizemos um brinde à frase. Gargalhadas de improviso. Mafaldinha, nessa altura, já dormia.
No dia seguinte Jill não compareceu na reunião agendada com Cláudia. E dois dias depois, quando me preparava para dar banho a minha filha, disse-me em desalinho de voz e gesto "Eu não esperava isto de ti".
Em frases soltas, nervosas, arrepiantes de angústia e ciúme, foi-me dizendo que a atraiçoava, às claras, mantendo e cultivando um relacionamento de amante grosseira, com o homem com quem ambicionava refazer a sua vida.
E esse homem era nem mais nem menos o "suspeito", o das sombras, o Rung Tram.
Perfeitamente amachucada, vexada, vergada pelo enorme peso da mentira, parti no dia seguinte para Macau, com Cláudia.
Regressei quinze dias depois. Jill pediu-me desculpas. Mas o mal está feito. Para mim a suspeição é irreversível.
Em termos de "Mercado em Movimento" não sei no que isto vai dar. Talvez o tempo ajude. Talvez.
Por umas semanas pedirei ao Luís para publicar, se ele assim o entender, algumas páginas do "Diário de Minha Querida e Santa Avó", até tentar refazer-me deste mau estado de espírito.
Um grande beijo da vossa
Maria, Saigão, 6 de Dezembro/07